As Arcadas curvam-se, respeitosas, para o Mestre

Miguel Matos

Quem não se lembra de seus primeiros mestres? Ditosos tempos em que as preocupações nem existiam. Os cheiros da infância, como lembraria Marcel Proust. De fato, o fascínio dos momentos iniciais da existência são inigualáveis. Nessas saudades, seguramente os mestres ocupam lugar sobranceiro. Talvez muito também pelo deslumbramento da descoberta de um mundo que se apresenta.

Mas como “tudo é composto de mudança”, os anos passam mudando as visões. Já na juventude, o charme do magistério não é mais o mesmo. E, em tempos ginasiais, com as ansiedades, os mestres vão sendo olvidados. Mais adiante, no colegial, viram meros instrumentos do aprendizado. E no banco da faculdade, apesar de alguns poucos calouros lobrigarem novamente o encanto pelo professor, o dia a dia, as tarefas, os exames, enfim, tudo contribui para dissipar aquela fugidia lembrança.

No entanto, alguns mestres não passam por tal vicissitude, no coração de seus alunos. Um deles, indubitavelmente, é o Professor Goffredo da Silva Telles Jr.

Nestes últimos dias, pelos seus noventa anos, muitas foram as homenagens. E por que então Migalhas, que bem reconhece ter parcos atributos, quer agora fazer sua mesura? Porque Migalhas quer homenageá-lo não pelos motivos que muitos já conhecem – de defensor da democracia, de filósofo, de advogado, e até mesmo de mestre aposentado das Arcadas – mas pela razão talvez não muito conhecida, a de que ele, com seus dezoito lustros, ainda é Professor. Sim, completando noventa anos neste dezesseis de maio, Goffredo da Silva Telles Jr. é ainda Mestre. E exerce o magistério com vigor invejável. Não, infelizmente não em suas Arcadas do Largo de São Francisco, pois a compulsória o pegou em 1985. Entretanto, Goffredo Telles Jr., mestre na acepção máxima do termo, continua ensinando o Direito, que para ele, na definição perfeita, é a Disciplina da Convivência. E leciona para os amigos que à volta de sua mesa – em seu escritório – insistem em se juntar, em seus valiosos livros e ainda por meio de seus inúmeros discípulos.

Falar da história do nonagenário mestre seria impossível. Disso ele mesmo se encarregou em “A Folha Dobrada – Lembrança de um Estudante” (Nova Fronteira, 1999). Livro marcante, cujo primeiro capítulo com as memórias de sua avó – a grande dama paulistana Olívia Guedes Penteado – pode ser considerado um dos mais belos textos da literatura brasileira. Querer desabusadamente resumir os estudos do Professor seria um vitupério. E para evitar isso, ele próprio tratou de fazer a síntese, sempre lógica, no recém lançado “Estudos” (Juarez de Oliveira, 2005). Mas fica aqui o registro para uma ímpar obra no mundo: “O Direito Quântico” (1970). Ligar a biologia à ética, aos costumes, quando DNA era uma novidade, foi uma verdadeira revolução. Com a obra o mestre ganhou, num primeiro momento, apenas o desdém de alguns de seus pares. Hoje, mesmo que não às escancaras, certamente estes voluntariosos reconhecem seu vanguardismo.

Mas, afinal, onde Migalhas funda a categórica assertiva de que o Mestre Goffredo não é esquecido por aqueles que passaram diante de sua mesa ? Ah! E como é doce essa resposta.

Já eram quase seis horas da tarde da última segunda-feira, quando um leitor notou a atitude de um primeiranista no hall de entrada na Faculdade de Direito da USP. Vendo que figuras bem-apessoadas entravam na Academia e se dirigiam para o primeiro andar, curioso, ele seguiu uma delas, para ver o que se passava. Subiu às escadas e divisou que à direita havia um certo bulício. Ele, que já tinha explorado o prédio, sabia que era ali o Salão Visconde de São Leopoldo. Conquanto admitisse não estar devidamente trajado, resolveu ir em frente, e apurar melhor. No cartaz, descobriu ser uma festa de aniversário de um professor. E viu o nome: Goffredo Telles Jr. Apesar de novo na academia, já tinha ouvido qualquer menção a respeito do Mestre.

Com ares doutorais, relembrando a parenta do interior que se gabava em contar aos vizinhos que seu sobrinho fazia “adevocacia”, sentiu-se encorajado a ir adiante. Numa fila na entrada, viu que os participantes compravam um livro. Tirou as economias do bolso, pois não podia fazer feio, e adquiriu os “Estudos”. Pegou a obra, e armado com sua soberba juvenil, entrou pisando firme no salão. À noite, com aquelas pessoas, o salão parecia ainda maior e mais belo. Foi a um canto, para melhor observar.

Como o relógio ainda não tinha dado as dezoito badaladas, hora em que estava marcado o acontecimento, decidiu folhear o livro, única coisa que o faria não ser notado. Era um legítimo penetra!

Nas orelhas do livro, conheceu a rica biografia do autor. Curioso, como aliás devem todos ser, começou a compulsar a obra. Deteve-se no índice. Tudo ali era novo: normas, sanção, justiça, filosofia. De repente, um capítulo quase o fez cair de costas : “O DNA e o Direito”. Meu Deus, o que era aquilo ? Foi direto à página 205 para ver se o DNA a que o autor se referia era o mesmo ácido desoxirribonucléico que teve de estudar para ingressar na faculdade. E era! Preferiu, ao invés de ler primeiro aquele capítulo, começar a saborear a obra pelo seu início.

Nas primeiras linhas, ele que era um ledor voraz, percebeu que o profundo conhecimento das palavras, combinada com uma concatenação lógica, criava uma raríssima perfeição na escrita, tornando a leitura agradável e fácil.

Em poucos minutos, terminou o primeiro capítulo. Achou, apressado, que o Mestre tinha deixado alguma coisa no ar. Faltava algo… Dizer que o “amor constitui a inspiração do Direito”, para ele, petulante, não bastava.

Mesmo assim continuou a leitura. À medida que os convivas iam chegando, ele avançava lendo. Quando aportou um ex-ministro, que só na televisão havia visto, ele aprendia no livro que “a norma jurídica é um imperativo autorizante“.

Agora estava em companhia de um deputado, e mais outro. Um senador, um grande jornalista, vários advogados, professores, artistas e estudantes. Aquilo, para ele, parecia uma desordem.

Tentava, na medida do possível, ficar absorto para ler o instigante livro. Assim feito, aprendeu a diferença entre sanção e coação; a validade das leis; a legitimidade das leis (e que lição importante tinha ali!); o direito subjetivo; os direitos humanos; a justiça. E podia agora explicar para a tia do interior que ele cursava, em verdade, a Disciplina da Convivência Humana.

Apesar de ansioso, sentia-se compelido a parar por uns instantes a leitura. Ah! Justo na hora que saberia, afinal, o que o DNA tem a ver com tudo isso.

Alguém iria falar.

Nossa! O grande salão agora era pequeno. Pessoas que nunca tinha sonhado em ver estavam ali, junto com ele, dividindo aquele espaço. Todos, com um brilho no olhar, com o mesmo espírito acadêmico. Aproximou-se de onde iriam falar para descobrir quem era aquele mestre que conseguia levar tanta gente assim, e de tão alto valor moral, para uma festa de aniversário.

O presidente da Associação dos Antigos Alunos, José Carlos Madia de Souza, faz a abertura. Explica que o mestre, emocionado, não estaria ali. Os presentes pareciam já prever isso. E aí novo susto. Ora, mesmo assim foram! O que era aquilo?

Ao lado da esposa do Mestre, dra. Maria Eugenia, e da filha dra. Olivia, o diretor da Faculdade, Eduardo Cesar Silveira Vita Marchi, falou do professor. O representante dos alunos, Fernando Borges Filho, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto ressaltou a importância do mestre.

É passada a palavra ao Professor Tércio Ferraz Sampaio, que pelo que apurou o jovem, tinha substituído o mestre Goffredo na cátedra. Ah! o professor Tércio explica como o mestre Goffredo liga o DNA ao Direito. Que bela oração. Vem Flávio Bierrenbach. Demonstra seu encantamento pelo Professor.

E o Professor Celso Lafer lê uma emocionante mensagem enviada pelo mestre.

Talvez um barítono, Bierrenbach entoa uma trova acadêmica. De súbito, senhores, senhoras, moços e moças, juntos, acompanham emocionados. Os olhos do jovem contemplam a multidão em branco e preto atualizar-se colorida. Sublimada, a imagem do mestre destacava-se, ainda que ausente. E com olhos marejados, depois de tantos ditos, tantas palmas, tantas músicas cantadas, o acadêmico via curvas as arcadas.

Curvas como são e, ainda, curvadas. Como se imitassem o mesmo gesto comovido, agradecido da multidão, que, agora, a ele reconhecia ordenada.

De fato, deslumbrado com a cena, o jovem entende que aquele heterogêneo grupo estava, em verdade, ordenado. Estava em ordem! Eram suas referências que não lhe mostravam o que, agora, era patente: antes, “aquela desordem era uma ordem que não lhe convinha”.

Entretanto, havia ainda um mistério a ser desvendado. Por que o jovem achava que o mestre Goffredo, sempre lógico, não teria se aventurado a explicar mais a fundo aquele primeiro mandamento : “ama teu próximo como a ti mesmo” ? E eis que estava em sua frente a chave do mistério : Goffredo da Silva Telles Jr. Era ele a síntese da entrega desse carinho, desse afeto, desse amor. E as pessoas que ali estavam, com seus corações abertos, tentavam apenas fazer justiça, ou seja, “retribuir com equivalência aquilo que lhes foi dado” pelo mestre.

O jovem despia-se naquele momento de sua presunção e se sentia ordenado com todos. Era mais um novo aluno do Professor Goffredo da Silva Telles Jr.

[*] Artigo publicado no informativo Migalhas de 18 de maio de 2005.