A Folha Dobrada, de Goffredo Telles Junior – Celso Lafer

Celso Lafer
Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

“A sede da alma está na memória”, dizia Santo Agostinho, numa frase que Hannah Arendt costumava citar. Nas lembranças recolhidas pelo Professor Goffredo Telles Junior em A Folha Dobrada (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), encontramos a alma do autor. Ou sua alma mater , já que a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde estudou e lecionou o Prof. Goffredo, é uma das personagens principais do livro. De fato, como ele mesmo afirma, o Largo de São Francisco é sua Casa (p. 400) e a sede mobilizadora do perfazer de sua vida e do seu destino – para valer-me de um verbo que, segundo a sua lição, exprime a lei do mundo (p. 638).

Em sua tese de livre-docência, “Introdução à Ciência do Direito” (1940), o Prof. Goffredo observa, com o rigor e a clareza habituais, que a palavra Direito remete a três conceitos diversos: as chamadas normas jurídicas (o Direito Objetivo); as permissões jurídicas (o Direito Subjetivo) e a qualidade do justo (p. 172). Como Professor de Introdução durante várias décadas, até a sua aposentadoria em 1985, o Prof. Goffredo cuidou com todo empenho dos três conceitos, sem deixar, no entanto, de salientar sempre aos seus alunos – entre os quais tenho a alegria de incluir-me – a qualidade do justo. Sua lição recorrente, no correr dos anos, foi a lição do Direito como “guia para a liberdade e a justiça” (p. 70) e, portanto, como escola de cidadania. Ensinou-nos, assim, a importância de “cultivar rosas em nosso pátio de pedra” – para socorrer-me de suas palavras sobre Spencer Vampré, seu antecessor na cátedra de Introdução e, também como ele, sábio guardião das memórias , e, portanto, da alma da nossa Academia. Por isso ele foi e é não o professor de Introdução , mas o Mestre da Iniciação ao Direito. Não é por acaso, pois, que seu mais recente livro, longamente pensado e apenas há pouco publicado, intitula-se precisamente Iniciação à Ciência do Direito (São Paulo, Saraiva, 2001).

A palavra iniciação é uma palavra carregada de sentido. Eu a emprego pensando no que dizia Políbio, quando apontou que em todo assunto a principal preocupação deve ser a de bem começar. Por esta razão, afirmava Políbio, o começo não é apenas a metade do todo, mas entranha-se no fim (Políbio, História , V, 32). A hierarquia da Ética, da Justiça e da Liberdade é a lição que o Prof. Goffredo soube inserir e entranhar na sensibilidade das sucessivas gerações dos seus alunos.

Como conseguiu ele levar adiante esta tarefa de iniciação? Através de suas aulas – aulas ideais – , nas quais sabia ” acordar o aluno, ou seja, abrir-lhe os olhos para um assunto que merece sua atenção” e ” acender-lhe no espírito a centelha do interesse” (p. 75). A boa aula, ensina o Prof. Goffredo no capítulo V, requer ” conhecimento do assunto, simplicidade de exposição e amor aos estudantes” (p. 76). O seu magistério reúne estas três virtudes e as suas aulas sempre foram “o sumo límpido da longa destilação de um pensamento” (p. 76). Elas têm a beleza da obra de arte posto que associam a “eloqüência desataviada, provida do sal de uma emoção” (p. 76). Daí a onda de calor humano que perpassa a sala de aula com a presença do Prof. Goffredo. Daí a sua comunhão com os estudantes e o poder persuasivo da sua mensagem de compreensão e de entendimento entre os seres do mundo que têm como horizonte a ordem jurídica como disciplina da convivência e garantia de liberdade (p. 70).

A relação entre ordem e liberdade é o tema por excelência do percurso intelectual do Prof. Goffredo. É a interrogação que o acompanha desde a sua juventude (p. 283). Ele vem meditando sobre esta relação no atento estudo dos grandes pensadores da Filosofia, do Direito, da Política e da Ciência, confrontando suas percepções e conclusões, levando em conta sua experiência de vida e a de sua família, sua atividade profissional de advogado, sua atuação política e parlamentar e seu conhecimento do Brasil. A Folha Dobrada é, nesse sentido, não apenas um livro de lembranças e memórias de uma vida rica e interessante, inserida no cenário político e cultural do nosso país dos anos 20 até os nossos dias, mas um Memorial das razões do seu pensar e do seu agir, admiravelmente bem escrito. Escrito por quem priva da intimidade das palavras e sabe, como afirma Maupassant a propósito de Flaubert, que “as palavras têm alma. É preciso encontrar essa alma, que aparece em contato com outras palavras, e que estala e ilumina certos livros, com uma luz desconhecida” (p. 43).

Qual é, na História das idéias do Brasil, a família intelectual do Prof. Goffredo? É, no meu entender, para valer-me da reflexão de Antonio Candido, a do radicalismo , ou seja, a do conjunto de idéias e atitudes que no Brasil formam um contrapeso ao movimento conservador, um modo progressista de reagir ao estímulo dos problemas sociais prementes. Gerada, como diz Antonio Candido, na classe média e nos setores esclarecidos das classes dominantes, como no caso de Joaquim Nabuco, essa postura representa um fermento transformador. Este tem o potencial de ampliar o nível da consciência política do povo e de ser um agente do possível mais avançado (cf. Antonio Candido, “Radicalismos”, Estudos Avançados 4/8, janeiro/abril 1990, pp. 4-5).

Esta presença do povo na ação e na meditação do Prof. Goffredo revela-se na sua preocupação constante com a representação política e nos modos de assegurar a permanente penetração e influência da vontade dos governados nas decisões dos governantes. O momento mais alto desta preocupação, no qual se associam ação e reflexão, virtude e fortuna, foi a Carta aos Brasileiros de 1977, lida no pátio das nossas Arcadas, que catalisou, no país, a consciência do imperativo da restauração do Estado de Direito e anunciou a inapelável erosão do regime autoritário implantado em 1964.

A Faculdade de Direito de São Paulo tem uma tradição que, desde sua fundação em 1827, está profundamente inserida na História do Brasil. A tradição é um fio condutor que nos liga ao passado para, no presente, entender o significado da mudança e, deste modo, preparar o futuro. Qual é, na nossa tradição e no nosso passado, o fio condutor – o elo representativo – a que o Prof. Goffredo dá continuidade? Penso que é José Bonifácio, o moço, grande figura da Faculdade no século XIX – o único professor da nossa Academia que tem a sua presença assinalada por uma estátua que nos recebe com braços abertos à entrada do nosso prédio, das nossas Arcadas.

José Bonifácio, o moço, também pode ser qualificado como uma personalidade de cariz radical, na acepção de Antonio Candido, pois a idéia de participação popular – das “massas ativas da população” – foi uma constante do seu pensamento, como aponta Francisco de Assis Barbosa no estudo introdutório do seu perfil parlamentar de deputado e senador no Legislativo do Império (cf. José Bonifácio, o moço, Discursos Parlamentares , seleção e introdução de Francisco de Assis Barbosa, Brasília, Câmara dos Deputados, 1979, p. 21). Era, como relataram Joaquim Serra e Joaquim Nabuco, um orador que arrebatava pela palavra associada à probidade do caráter (cf. Spencer Vampré, Memórias para a História da Academia de São Paulo , São Paulo, Saraiva, 1924, vol. II, pp. 20 e 24). Magnetizava os seus alunos na admiração e no êxtase com o sopro de sua inspiração, como disse Rui Barbosa, dando um testemunho do que foi o seu magistério (Spencer Vampré, op. cit. , vol. II, p. 21). “Era amável e cavalheiro no trato com os alunos”, como registra Almeida Nogueira em Tradições e Reminiscências (Segunda série, São Paulo, 1907, p. 178). Lidou com a sociedade do seu tempo – nas palavras de Rui Barbosa – “pela eloqüência na tribuna; pela mocidade na cátedra; pela controvérsia na imprensa; pela política no parlamento” (cf. Spencer Vampré, op. cit ., vol. II, p. 26). Assim também o Prof. Goffredo vem lidando com a sociedade do nosso tempo, com a luminosidade de sua presença, à qual A Folha Dobrada dá um acesso privilegiado.