ENTREVISTAS

1 – Teoria e Debate 1990

 

ENTREVISTA

GOFFREDO TELLES JR.

Aos 75 anos, o lendário professor de Direito do Largo São Francisco, eleitor do PT, democrata e socialista, rememora neste depoimento inédito a sua vida dedicada à justiça e à liberdade.

por EUGÊNIO BUCCI*

Na noite de oito de agosto de 1977, o pátio da Faculdade de Direito do Largo São Francisco sediou a primeira leitura pública da Carta aos Brasileiros: “Para nós, a Ditadura se chama Ditadura, e a Democracia se chamaDemocracia. Os governantes que dão nome de Democracia à Ditadura nunca nos enganaram e não nos enganarão”. Redigido pelo professor Goffredo Telles Jr., o documento foi assinado pelos juristas mais importantes do país, por advogados e políticos, exigindo “O Estado de Direito, já”. Teve repercussão nos principais jornais do mundo e redirecionou a luta pela democracia no seio da sociedade civil. Raros foram os momentos de tamanha unanimidade naquela escola especialmente diversa.

Quase nada é unânime nas “arcadas”, de onde saíram nada menos do que onze presidentes da República 1. De lá emergiram, além de presidentes, seres humanos disparatados: artistas modernos, como Oswald de Andrade, e comunistas do porte de Caio Prado Jr.; trotskistas como Plínio Mello, caçadores de esquerdistas, dedos-duros e monarquistas temporões. Ao seu país, a São Francisco deu políticos de todos os matizes, deu bêbados de inúmeras estirpes e até mesmo formou advogados. Alguns de importância histórica. Muitos poucos se tornaramunanimidades.

Goffredo Telles Jr. é um desses. Em 1988, ele foi advogado dos professores e funcionários da Universidade de São Paulo no primeiro mandado de segurança coletivo da história brasileira, logo após a promulgação da atualConstituição Federal. Impetrado contra o governador e seu secretário de Segurança, o mandado pretendia abrir o acesso dos servidores em greve às mais altas autoridades do estado para dar curso às negociações. O professor Goffredo foi pessoalmente despachar sua petição no Tribunal. À sua presença, um desembargador levantou-se do seu lugar – uma atitude absolutamente contrária ao rígido protocolo -, atravessou o salão, e foi abraçar seu ex-professor. Ali, simbolicamente, o Judiciário homenageava uma instituição: um homem livre com sede de justiça.

“Eu sou apenas um estudante”, costuma repetir o professor. Pois é isto mesmo: acima de tudo, estudante é o que ele é. E por ser um estudante, como seus alunos, é um professor tão amado. Para quem passou por aquela faculdade, ouvir aplausos nas salas do primeiro ano, depois das aulas de Goffredo, era algo tão corriqueiro quanto ser abordado por um colega distribuindo panfletos. Tão corriqueiro que parecia que teria sido sempre assim.

Claro que não foi. Formado em 1937, Goffredo só começou sua carreira de professor em 1940. Após 45 anos de docência, foi terminá-la, compulsoriamente, por força de lei, quando completou seus setenta anos, no diadezesseis de maio de 1985. Entre os alunos que aplaudiam suas aulas, paira a tentação de uma pequena brincadeira: a lei que o aposentou é uma lei ilegítima, dizem eles. E nenhum aluno de Goffredo pode se permitir a confusão entre o legal e o legítimo. De qualquer maneira, aos 75 anos, ele é hoje um velho mestre aposentado. Mas aposentado somente à luz da legalidade, bem entendido. À luz da legitimidade, o eterno estudante continua professor. Todas as quartas-feiras, ou quase todas, por volta das cinco horas da tarde, lá está ele, cercado de jovens discípulos, em alguma sala da Faculdade, ou no Centro XI de Agosto, na sala que leva o seu nome, conversando sobre a dignidade do ser humano, o Direito e os destinos do país. É o chamado “Círculo das quartas-feiras “, no qual todos têm a palavra e no qual o mestre também fala, mas despretensiosamente.

São lições de uma vida intensa e diversificada. Primogênito entre cinco irmãos, filhos de Goffredo-pai e Carolina, viveu com fartura a sua infância. Foi aprender a ler e escrever em Paris. Aos cinco anos falava francês e inglês, e este último “melhor que o português”. De volta ao Brasil, em 1922, conviveu com alguns dos grandes nomes do modernismo. Adolescente, em 1933 entrou para a Faculdade de Direito da qual não saiu nunca mais. É sob o prisma das pulsações políticas que tiveram lugar nessa escola que devem ser compreendidos os movimentos de sua vida. Na década de 30, Goffredo aderiu ao integralismo, ao lado de dois de seus irmãos e muitos amigos. “Nós não éramos fascistas, tanto que muitos dos nossos saíram diretamente do integralismo para entrar no PC”, lembra, lamentando a interpretação histórica segundo a qual todos os integralistas eram reacionários empedernidos. Em 1946, elegeu-se deputado constituinte. Durante o regime militar, chegou a elaborar dois projetos de Constituição que, entregues a Costa e Silva e Médici, em nada resultaram. Ao mesmo tempo, esteve ao lado dos estudantes em várias atividades durante a histórica ocupação da Faculdade. Desde o surgimento do PT, tem estado junto dos trabalhadores nas grandes campanhas cívicas,como as diretas-já, ou nas jornadas eleitorais. Eleitor de Lula, desde o primeiro turno em 1989, não abriu mãode apoiar os candidatos do PT em 1990.

Um pouco de tudo isso ele conta nesta entrevista, que exigiu de sua agenda um generoso espaço para duas longas conversas. Ele recebeu Teoria & Debate no seu escritório, onde trabalha com sua mulher, num prédio alto da avenida São Luís, em São Paulo. Ali mesmo, um andar abaixo, ele mantém sua residência, onde vive com a esposa, Maria Eugênia, advogada pelo Largo São Francisco, com quem é casado há 23 anos, e com a filha do casal, Olívia, dezoito anos, estudante do segundo ano da mesma escola (o professor tem um outro filho, o cineasta Goffredo Telles Neto, de 37 anos, de seu casamento com a escritora Lígia Fagundes Telles). Em casa e no escritório, cultiva plantas e tem pássaros e gatos. Adora a natureza, diz. Além disso, tem livros. Muitos livros por todas as paredes. Alguns deles, certamente, são as melhores testemunhas da vida de Goffredo Telles Jr., alguém que tem a discreta elegância de uma família tradicional, a paixão de um jovem estudante e a dignidade de um trabalhador que quer mudar o mundo.

Quantos livros o senhor tem aqui professor?

Creio que temos cerca de 10 mil livros. A biblioteca cresce todos os meses. Direito, política, história, filosofia, biologia, física, aqui no escritório. Ficção e poesia, ali em casa. Como não é possível viver todas as vidas do Universo, procuramos viver todas as vidas lendo nossos livrinhos.

É verdade que a primeira vez em que o Lula veio aqui, ele teria perguntado se o senhor já tinha lido tudo?

(risos) O nosso escritório de advocacia não pode deixar de ser um centro político. Aqui nós recebemos os líderes das mais diversas tendências. A visita do Lula foi uma festa para nós. Sempre será recebido como um querido amigo. Lembro-me que, efetivamente, na hora de sair, ele parou diante das estantes, ficou olhando, pensativo, e me disse: “É livro, hein, professor.. Sabe, eu também tenho, na minha casa, uma estante. É uma estante de uns setenta, oitenta centímetros, e tenho uns livros ali. Meus companheiros olham para aquilo e me perguntam, espantados: ‘Lula, você já leu tudo isso?’ Daí eu respondo que vontade não falta, mas quando começo a ler, lá pela página vinte ou trinta, me dá um sono… Não posso dizer que tenha lido tudo.” Aí, eu perguntei ao Lula: “Mas, então, me diga: como é que você sabe tantas coisas, todas as coisas de que você fala?” Ele me olhou, sorriu e disse: “O senhor quer saber como eu sei dessas coisas? É muito simples: aprendi com vocês. “

E então, professor, o senhor leu tudo mesmo?

Durante meu curso, li muito. Estudei com amor as disciplinas do Direito. Utilizei-me principalmente de autores franceses ou de autores traduzidos para o francês – naquele tempo eram poucos os bons livros em português. Com máxima dedicação, estudei filosofia, sobretudo a metafísica, a lógica e a psicologia. Li os filósofos gregos. Li Homero, Horácio, Lucrécio e Virgílio. Li o que pude da grande literatura mundial. Até hoje, sou um inveterado. Leio e releio meus poetas preferidos. Li recentemente O sorriso do lagarto, de João Ubaldo Ribeiro, e O Mulo, de Darcy Ribeiro. De lápis na mão, reli agora as Odes, de Horácio. Há vinte anos, venho estudando química, física e biologia. Convenci-me da unidade do mundo. Convenci-me de que a ordem jurídica é um simples setor da ordem cósmica.

Pois é, professor, desde o aparecimento do Partido dos Trabalhadores a sua posição tem sido de apoio e solidariedade. Digamos que entre muitos líderes que andaram aqui pelo escritório, o senhor acabou fazendo uma opção pela de esquerda. O senhor é socialista?

Sou socialista sim. Mas atenção! A palavra socialista é uma palavra que os filósofos chamam de analógica, porque ela se aplica a coisas diversas, embora análogas. Ela é o nome de pensamentos diferentes, mas que guardam certa relação entre si. Há vários tipos de socialismo e de socialistas, e aqui não estou dizendo nenhuma novidade. Eu sempre tive uma tendência natural, uma simpatia voltada para o socialismo, no seu sentido mais genérico. Em resumo: meu espírito e meu coração tendem para a esquerda.

O que o senhor pensa de Gorbatchev?

Parece-me que Gorbatchev é a quinta-coluna capitalista dentro da URSS. Talvez eu esteja enganado. Mas esta é a minha impressão.

Mas então o senhor acha que a vitória da perestroika é a destruição do socialismo no mundo?

Vou tentar resumir meu pensamento. Você se lembra do célebre lema dos revolucionários franceses: “Liberdade, igualdade, fraternidade”? A luta pela liberdade criou os chamados Direitos Humanos, que constituíram uma barreira contra a prepotência dos governos absolutistas. Depois, a luta pela igualdade é a nossa luta atual, contra a exploração do homem pelo homem, contra a prepotência dos economicamente fortes sobre os economicamente fracos, isto é, nossa luta pelas liberdades democráticas e pelos direitos concretos dos trabalhadores. Agora, a luta mais alta é nossa luta pela fraternidade, que é a luta por uma humanidade melhor, por um regime chamado socialismo. Fraternidade entre os homens é socialismo. Socialismo, em última análise, é fraternidade. A perestroika teve um grande papel. Multidões de trabalhadores tinham sido imobilizadas pela burocracia soviética. Imobilizadas no processo político de socialização. Libertados pela perestroika, os proletários unidos se puseram novamente em movimento, e é isto o que mais importa. O que os trabalhadores querem não é o capitalismo. O que eles querem é eqüidade e bem-estar. Mais do que nunca, estamos caminhando em direção da fraternidade universal, ou seja, em direção ao socialismo.

Que tipo de socialista é o senhor, professor? O senhor não é um marxista, certo?

Não, mas Marx é um dos pensadores que mais me impressionaram.

Quando o senhor leu Marx?

Há muito tempo. As primeiras leituras foram feitas enquanto cursava a faculdade. Eu me formei em 1937. Comecei a dar aulas em 1940. Desde estudante, eu já me preparava para meu futuro concurso de professor. Fiz muitas leituras durante a mocidade. Mas essas leituras da juventude não costumam ser muito bem feitas. Nós não as entendemos direito. Pensamos que estamos entendendo, mas não. Isto se dá tanto com os livros sobre política quanto com os livros de filosofia. É curioso como a releitura, mais tarde, dos mesmos livros tem um outro sabor e, muitas vezes, tem também um outro sentido. Vou citar um exemplo bem típico. Ainda me preparando para o concurso de livre docente, li A crítica da razão pura, de Kant, que me abalou profundamente. Eu me lembro que eu dizia a mim mesmo: “preciso reler este livro”. Muito bem: quando fui fazer meu concurso para catedrático, em 1954, fui reler. Tive então dois anos fora da Terra. O arrebatamento intelectual que ele me causou foi indescritível. Aí é que eu realmente entendi Kant. Isto me aconteceu com Kant, mas também me aconteceu com Spinoza e Descartes. Depois, outras releituras marcaram muito o meu espírito. Marx, Lenin e Engels, todos eles tiveram grande repercussão em mim. Imensa impressão me causou a releitura de Jean-Jacques Rousseau.

Me parece que o senhor é socialista em decorrência de ser democrata…

Vamos ser claros. Para mim, a democracia é o processo político que assegura a permanente penetração da vontade dos governados nas decisões dos governantes. É um processo de abertura de canais por onde os anseios do povo penetram, para atingir o governo e nele influir. Com esses canais, a democracia tende a ser o caminho da fraternidade entre povo e governo. Com o aperfeiçoamento do processo, a democracia se faz socialismo. A meus olhos, o socialismo é a perfeição da democracia.

Seria correto afirmar que o socialismo é a materialização dessa mesma democracia?

Eu não tenho dúvida nenhuma. A tendência da democracia é uma tendência socialista. É uma tendência para a esquerda.

A sua vida também é um pouco assim, não é professor? Sempre tendendo à esquerda, cada vez mais tendendo para o socialismo.

É verdade. O ser humano tem a pretensão de ser inteligente. Ora, a inteligência é uma faculdade muito exigente. Ela nunca está satisfeita. Sempre quer mais e melhor. Ela se acha atraída pela perfeição. Como a perfeição é inatingível, a inteligência está sempre em movimento, à procura de um bem que ela almeja, mas nunca alcança inteiramente. Está sempre à procura de justiça, de eqüidade, de fraternidade. Ora, os políticos de direita dão férias à inteligência, instalam-se nos cômodos existentes, não querem mudar nada, ou fingem fazer mudanças, mas somente para garantir que nada vai mudar. Proclamam que a justiça está feita, e, entre eles, qualificam a revolta, a indignação, o clamor dos infelizes, de baderna e subversão. Por outro lado, os políticos de esquerda, ao invés de dar férias à inteligência, fazem a inteligência funcionar a todo vapor. Não preciso dizer mais nada.

Em 1946, o senhor foi eleito deputado constituinte por São Paulo. Na sua vida, que pode ser vista como uma caminhada na direção da esquerda, o que representou aquele momento? O senhor foi pelo Partido de Plínio Salgado, um direitista, não?

Não. Eu fui eleito por uma coligação de partidos: o Partido Social Democrático e o Partido de Representação Popular.

Bem, ao menos na juventude, o senhor esteve alinhado a Plínio Salgado, durante o movimento da ação integralista brasileira. O senhor foi integralista?

Nunca fui “alinhado” com homem nenhum. Durante toda a minha vida, somente estive a serviço de minhas próprias idéias. No apogeu do fascismo e do nazismo, escrevi o seguinte: “Chamamos Estado Moderno o Estado Ético, antiindividualista e antitotalitário. (…) Criado para servir ao homem, orienta-se para os alvos que estejam em conformidade com o destino supremo do mesmo. (…) O Estado Moderno é antitotalitário porque faz prevalecer o Moral sobre o Social e o Espiritual sobre o Moral. Reconhecendo a iniqüidade da tirania, proclama o princípio da intangibilidade da pessoa humana.” Estas palavras estão escritas aqui, você está lendo, páginas 31 e 32, do meu primeiro livro, Justiça e júri no Estado moderno, elaborado durante os anos de 1936 e 1937, e publicado em 1938. Para a defesa destas idéias, é que fiz política na minha juventude, e que, em 1945, fui eleito deputado constituinte. Estas, e só estas, são as minhas idéias – idéias que estão escritas e publicadas, e que sempre foram sustentadas por mim. Não me venham agora atribuir idéias que nunca tive. Sempre fui antifascista, antitotalitário. Dentro do integralismo, sempre fui antifascista, antitotalitário. Para mim e para meus colegas integralistas, o Estado Integral era precisamente o Estado que se opunha ao Estado Totalitário. Há quem diga, bem sei, que o integralismo era fascista. Hoje, eu sei que o integralismo não era um movimento unificado. Havia uma ala fascista dentro dele. Mas nós, estudantes universitários, nunca tomamos conhecimento desta ala discordante. Nós defendíamos o integralismo para combater o fascismo. E também para combater os partidecos inexpressivos de uma burguesia apática. Esta é a verdade nua e crua. Esta é a verdade comprovada pelo que escrevi em meu citado livro.

Por favor, professor, ninguém o acusa de fascista…

Realmente, era só o que faltava. Quando saiu a Carta aos Brasileiros, Franco Montoro, que assina a carta também e que era senador, fez um discurso no Congresso Nacional e a leu. Houve lá dentro uma discussão acalorada. Eu, autor da carta, fui, na mesma sessão, chamado de fascista e comunista.

Quem o acusou de fascista?

O coitado já morreu. Chegou a ser vice-prefeito de São Paulo. Tempos antes, ele se encontrou comigo numa reunião política, e me pediu desculpas. Águas passadas… Sobre as minhas convicções, sobre as minhas idéias políticas, desde a minha juventude até os dias de hoje, não é possível manter dúvidas. Está tudo escrito por mim. Escrito e reescrito. Creio que bem poucas pessoas podem provar o que pensavam na juventude. Eu posso. Basta ler o que escrevi em meus livros e em minhas proclamações.

Que idade o senhor tinha no tempo do integralismo?

Eu tinha dezessete anos, em outubro de 1932; eu tinha 22 anos de idade em 1937, quando Getúlio Vargas fechou a Ação Integralista e os demais partidos, e implantou a ditadura do Estado Novo. Em 1938, muitos de meus companheiros entraram para a clandestinidade, na extrema-esquerda. Roland Corbisier, extraordinário companheiro integralista, querido amigo, o maior líder estudantil da Faculdade de Direito e de toda a universidade, por exemplo, foi um desses. Orador fantástico. Foi para o comunismo. Muito natural esta evolução. Como nós éramos contra os melancólicos partidos da burguesia, que não significavam nada e que estavam estorvando a vida nacional, o que nos restava? Fomos caluniados torpemente. Éramos apresentados pelo avesso do que éramos. De boa e má-fé, houve quem nos tachasse de fascistas. Mas como, se lutávamos exatamente contra o fascismo? Foi chocante. Tão chocante que muitos entraram, revoltados, para o Partido Comunista.

E o senhor, por que não entrou no PC?

Não entrei no PC porque não sou comunista. Não tolero o totalitarismo da burocracia soviética. Eu sou um democrata que sonha com a fraternidade universal. Não quero ditadores por cima de minha cabeça. Caminharei para o socialismo por força de minhas próprias idéias.

Como foi sua eleição em 1946? O senhor mesmo costuma dizer que foi uma surpresa.

Eu estava em minha casa quando, às quatro ou cinco horas da manhã recebi um telefonema do Rio pedindo para que eu entrasse para a chapa do Partido Social-Democrático.

Não era esse o Partido de Plínio Salgado?

Não, o Plínio era do Partido de Representação Popular.

Que estavam em coligação?

Depois esteve. Porque eu estava na chapa do PSD e eles me apoiaram. Foi por isso. Mas não foram só eles que me apoiaram. Esta história até me encabula um pouco. Sabe por quê? Aconteceu o seguinte: eu tive a segunda maior votação do Brasil 2, de forma que não seriam os integralistas, que eram minoria absoluta, que iriam me eleger. 

Ou tutelar.

Absolutamente. Tive votos no estado todo. O maior surpreso fui eu. 

O senhor conheceu Luís Carlos Prestes no Congresso Nacional, certo? Eu me lembro de ouvir do senhor que o prestes era uma pessoa que não gostava de ouvir…

Ele era um homem brusco, mas me dava a impressão de ser muito sincero – e eu o admirava pela sua sinceridade. Nessa ocasião, tive a alegria de conhecer pessoalmente nosso grande Jorge Amado. No senador Prestes, o que não me agradava era seu estilo intolerante. Eu nunca tive paciência para suportar gente intolerante, que não sabe ouvir, pessoas que se consideram donas da verdade. Mas, no nosso país, Prestes foi modelo de muitas virtudes: fidelidade, coerência. retidão, coragem.

Mas, professor, voltando um pouco ao integralismo. No primeiro número de Teoria e Debate, eu entrevistei o Fúlvio Abramo. Ele me contou de um episódio em 1934, dia 7 de outubro, na praça da Sé, quando se deu um enfrentamento armado entre integralistas e socialistas, ao qual esteve presente. O Mário Pedrosa, ferido a bala, foi parar no hospital. Ao que consta, era um comício integralista que os socialistas pretendiam desmanchar.

Não houve enfrentamento nenhum. O que houve foi uma repressão policial a uma manifestação de operários e estudantes. Foi uma tristeza. Operários morreram. Uma bala da polícia atingiu Mário Pedrosa.

O senhor estava lá, nesse dia?

Estava. Assisti a tudo. Eu era um estudante da Faculdade de Direito. Tinha dezenove anos de idade nessa ocasião.

Vocês estavam armados?

A manifestação era de operários e estudantes. Naquele tempo, ninguém andava armado.

E no cotidiano do movimento, vocês tinham reuniões, grupos de estudo?

Na Faculdade de Direito, existiam diversas associações, onde se realizavam reuniões animadas e acalorados debates sobre a política brasileira. Na Associação Álvares de Azevedo, na Academia de Letras da Faculdade, no próprio Centro Acadêmico XI de Agosto, reuniam-se estudantes de todas as tendências e de todos os partidos, para esses prélios políticos de grande interesse para a formação de líderes populares. Comunistas, integralistas e liberais ali vinham defender seus princípios. Lembro-me de uma longa polêmica, durante vários dias, sobre o tema “Autópsia de um regime”. Este simples nome revela o desprezo dos estudantes pelo regime vigente naquela época. Lembro-me, também, que, na Associação Álvares de Azevedo e na Academia de Letras da Faculdade, realizavam-se conferências doutrinárias sobre os mais diversos assuntos. Devo dizer que os comunistas e os integralistas eram bons estudantes: liam muito e discutiam muito. Hoje, quando penso sobre esses fatos, verifico que, na verdade, todos eram idealistas, sonhando com um Brasil melhor. Quando nos encontramos na rua, abraçamo-nos comovidos, e com muita saudade. Quanto sonho, quanta pureza, quanto patriotismo, naqueles tempos!

Os militantes do integralismo eram pobres ou ricos?

O integralismo era um movimento de operários e estudantes, contra a burguesia em geral.

E não havia algum tipo de vinculação com forças políticas internacionais?

De forma nenhuma. O integralismo era um movimento essencialmente nacional, com sedes em todo o Brasil.

E na Constituição de 1946, qual era sua plataforma?

Sempre a defesa da democracia. Acontece que durante a Constituinte eu era muito jovem e inexperiente. Eu tinha 29 anos. Quase nunca conseguia a palavra. O Otávio Mangabeira, presidente da Câmara, e bom amigo, achava graça na minha batalha, e de vez em quando me abria uma janela. Uma luta que vale a pena lembrar foi aquela que travei contra o Instituto Internacional da Hiléia Amazônica, em 1947. Uma madrugada – as coisas muitas vezes me acontecem de madrugada porque sou muito madrugador, as pessoas sabem disto – recebo um telefonema do velho Dr. Artur Bernardes, deputado, ex-presidente da República, que me disse o seguinte: “Professor Goffredo, tome um táxi e venha imediatamente ao meu apartamento porque estão vendendo o Brasil.” Chegando lá ele me contou tudo. O governo acabava de assinar um tratado internacional de fundação do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica. Em seguida, me mostrou os papéis sobre as funções e os planos do instituto. Era uma vergonha. O instituto, com sede em Manaus, sustentado por dinheiro brasileiro, reunia delegados dos Estados Unidos e dos nossos países vizinhos. O Brasil comparecia com o mesmo direito deles e com o ônus de todas as despesas. Tudo feito em segredo, sem conhecimento da nação. Uma invasão do território nacional.

Quem assinou o tratado, o presidente da República em pessoa?

Foi. O general Dutra. Nessa madrugada ficou resolvido que eu faria o trabalho no plenário da Câmara, e o Dr. Artur Bernardes trabalharia nas comissões da Câmara e do Senado. No dia seguinte pronunciei meu primeiro discurso de alerta contra o instituto, que era uma intromissão perigosíssima dos Estados Unidos na Amazônia. Era uma cunha, uma ponta-de-lança que poderia se transformar em base militar dos Estados Unidos no meio da região.

E que justificativa foi usada pelo governo?

O pretexto era cultural, de pesquisas e de estudos. Li os documentos na tribuna da Câmara. A soberania nacional estava em jogo. Mas o tratado dependia do referendo do Congresso. Eu fiz o meu discurso. O Parlamento se emocionou. Interesses suspeitos imediatamente se manifestaram. Nesse tempo eu morava no Hotel Serrador, que ficava perto da Câmara. Uma coisa surpreendente aconteceu. A Marinha resolveu, sem me dizer nada, fazer um corredor de marinheiros. Sabendo que eu voltava a pé do Congresso, postou marinheiros dos dois lados da rua São José, e eu passava por ali sem saber que estava sendo protegido pela Marinha. Temiam que eu fosse agredido. Dois dias depois, fiz meu segundo discurso. O Dr. Artur Bernardes trabalhou com grande competência. E conseguimos que o Congresso negasse o referendo. Assim, derrubamos o tratado, que já estava assinado.

E a cassação do Partido Comunista?

Aquilo foi uma vergonha. Votei contra a cassação e apresentei, por escrito, minha declaração de voto.

O senhor recebeu título de professor emérito da Universidade de São Paulo, logo após sua aposentadoria, em 1985. Porém, pouco tempo antes, a Congregação da Faculdade negou o título a diversos docentes, entre os quais o senhor.

Creio que não foi unia decisão contra mim, pessoalmente. Foi uma decisão de ordem geral, e a Congregação acabou fazendo o que, eu acho, não queria fazer. Foi para mim um grande choque, mas entendi o que havia acontecido. Poucos dias depois, o Conselho Universitário, por proposta de um estudante da Faculdade, corrigiu tudo, e me deu uma alegria inesperada e extraordinária. Concedeu-me, por votação unânime, o título de Professor Emérito da Universidade de São Paulo.

O Conselho Universitário reparou o erro da Congregação da Faculdade?

Eu não pedi nada e não mereço nada. A Congregação da Faculdade é soberana, e fez o que quis. Eu sei que não foi contra mim. mas eu acabei atingido. Mas não penso mais nisso. Todos os professores da Congregação foram queridos alunos meus. O Conselho Universitário, num gesto de grandeza e bondade, me conferiu o mais alto dos títulos.

O senhor deve ter vivido seus piores e melhores dias daquela faculdade.

A Faculdade é a minha casa, minha escola, minha insigne academia. Ela é minha. Ali dentro vivi grandes dias e grandes batalhas. Ali dentro dei cursos de Direito e de Justiça para muitas gerações. Lecionei 45 anos.

Que mistérios há naquelas arcadas, professor? A sociedade secreta da Burschenschast, fundada por Júlio Frank, o Maçom, que está hoje enterrado lá dentro, ainda persiste?

Não sei. A “Bucha” sempre foi muito poderosa no Brasil. Ninguém podia ocupar, em nosso país, os altos postos de mando sem pertencer a esta sociedade. Era uma sociedade muito bem estruturada. que prestava auxílios secretos a políticos, estudantes e funcionários.

Como é um auxílio secreto?

Por exemplo: um funcionário tinha a mulher doente, sem dinheiro para a internação no hospital, e de repente recebia um envelope fechado com a quantia necessária para cobrir todas as despesas. O funcionário nunca ficava sabendo de onde velo o auxilio.

Ou portas que se abriam e fechavam misteriosamente?

É. Pessoas que estavam em desgraça eram amparadas, apoios políticos eram decididos, sustentações eram retiradas, mas tudo no maior anonimato.

A “bucha” ganhou força desde o final do século passado?

É o que dizem.

Ela ainda existe, não é?

Eu não sei. Os que pertencem, ou pertenceram à “Bucha”, têm um juramento de não revelar nada.

Durante a Semana de Arte Moderna de 1922, o senhor tinha sete anos de idade. Por mais precoce que fosse, não poderia ser um artista de vanguarda com modernistas. Mas sua família sempre teve ligações estreitas com os modernistas. Como é que o senhor viveu tudo aquilo?

Em 1922 nós não estávamos no Brasil. Estávamos em Paris, já fazia dois anos. Meu pai, o poeta Goffredo Telles, autor de Fada nua e de O Mar da noite, tinha compromissos profissionais na França, e ficamos num apartamento de que conservo uma doce lembrança. Foi lá que aprendi a ler com minha avó. Eu freqüentei um curso, que é célebre até hoje, chamado “Cours Acmèr”. Aprendi francês muito bem. E eu falava francês e inglês, principalmente o inglês, melhor do que o português. Isso me fez muito bem porque me levou diretamente aos grandes nomes da literatura dessas duas línguas. Até hoje prefiro lê-los no original.

E o 22?

Eu tomei conhecimento de 22 voltando da Europa. Eu era muito criança, mas como a nossa casa…

Onde ficava a casa de vocês?

Ficava num lugar poético. Na esquina da rua Conselheiro Nébias com a avenida Duque de Caxias, nos Campos Elíseos, bem perto do Palácio do Governo. A casa infelizmente não existe mais, porque a Prefeitura alargou a Duque de Caxias e desapropriou a casa. Foi uma pena. Ela era rodeada de um jardim com imensas árvores, onde os pássaros faziam ninhos… Eu me lembro também dos sabiás fazendo ninhos nas árvores mais altas, junto ao telhado da casa. E foi exatamente neste parque que a minha avó, Olívia Penteado, criou o Salão de Arte Moderna, depois de 1922, onde apareceram, pela primeira vez em São Paulo, obras de grandes artistas modernos: Picasso, Léger, Braque, Lhote, Brancusi, Lipchitz, Foujita, Marie Laurencin e outros. A minha família não participou diretamente da Semana de 22, apenas estávamos muito ligados àqueles que fizeram o movimento. Meus pais e minha avó eram amigos de todos: Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Villa-Lobos, Menotti Del Picchia, Antonieta Rudge, Cassiano Ricardo, Plínio Salgado, Guilherme de Almeida, Annita Malfatti, Lasar Segall, Gregório Warchavchsky, Di Cavalcanti, Brecheret, Camargo Guarnieri. Lembro-me da Pagu mocinha, aos pés do Oswald, Annita Malfatti era nossa amiga muito querida, fez até um retrato de minha mãe. Segall fez o retrato de meu pai. Não posso esquecer Blaise Cendrars, o grande escritor francês de origem suíça, que também pertencia ao grupo. Nota – importante desse tempo: Segall, pessoalmente, pintou as paredes e o teto do Salão de Arte Moderna, de minha avó Olívia. Outra nota: Villa-Lobos foi meu professor de capoeira, no gramado da fazenda. E não é só isso. Aprendi com ele a fazer pipas. Ele construía papagaios extraordinários, de todos os tipos, tamanhos e formas.
Havia uma pipa com 2,5 metros de comprimento, feita com varetas de bambu. Eu lembro que no grosso papel das pipas, todos nós escrevemos alguma coisa. Eu escrevi: Non plus ultra. Tarsila foi minha professora de desenho. Devo ter sido um péssimo aluno.

E essa roda cultural também se reunia na fazenda de vocês, em Araras?

Ah, Fazenda Santo Antônio… Nossa velha e querida fazenda, fundada em 1833, por Antônio Álvares de Almeida Lima, bisavô de minha avó Olívia. Ele ali está enterrado, sob uma pequena campa original, atrás do grande cruzeiro de peroba. Nessa fazenda é que aprendi a andar e a sonhar. Ali aprendi a linguagem das árvores, das flores e dos bichos. Aprendi o mistério do tempo e das estações do ano. Aprendi o que é paciência. E aprendi o que é a beleza. Ali se reuniram, muitas vezes, os mencionados amigos. Reuniam-se para conversar, discutir, rir, passear.

A fazenda hoje não está repartida entre os irmãos?

Sim. Antes mesmo do falecimento do meu pai, em janeiro de 1980, ela foi doada aos filhos, e então dividida. Cada filho ficou com uma parte.

Professor, não há como evitar uma pergunta que muitos petistas devem estar querendo fazer, ao ler esta entrevista: Não há contradição entre ser fazendeiro e socialista?

A nossa fazenda é antiga, vem passando de pais a filhos desde princípios do século passado. Eu a amo. Mas se eu tiver que entregá-la para a vitória do socialismo, eu a entregarei sem dúvida nenhuma. Com a vitória de minhas idéias, eu tenho muito a perder. Mas com essa vitória, eu ganho a batalha de minha vida. Eu sou um democrata. Eu sou um socialista. Sonho com um mundo de justiça. Sonho com um mundo de fraternidade humana.

É verdade que o senhor foi cotado, pelos próprios governos militares, para redigir a Constituição depois do Golpe de 1964?

Nunca! Que idéia! A partir de 1964, tudo tenho feito para mudar o rumo dos acontecimentos. Sempre combati os governos militares. Não os tolero. Tentei restabelecer a democracia com um projeto de Constituição que foi entregue ao general Costa e Silva, a pedido dos generais da oposição, velhos amigos de outros tempos.

Quais generais?

Não vou dar nomes. Era gente do Rio Grande do Sul. O fato é que estes generais conheciam as minhas idéias. Devo dizer que eu tive um momento de esperança. Pensei que se poderia alterar o sistema de representação democrática em nosso país. Não é preciso que eu diga que imediatamente perdi essa esperança. Mas fui, mais de uma vez, procurado por militares, sempre do Rio Grande do Sul, que me pediram que expusesse por escrito essas idéias para uma nova democracia no nosso país. Houve muita insistência. Realmente redigi um projeto de Constituição. Eu e minha mulher fomos a Brasília e ali fizemos a entrega, no Gabinete da Presidência. Nunca recebi a menor resposta. O que eu verifico hoje é que eu estava sonhando. Estava fora da realidade. Acontece que, antes disso, o Costa e Silva tinha pedido a colaboração das universidades para a instituição de um novo regime político no Brasil. Tempos depois, eu requeri ao Instituto dos Advogados de São Paulo a elaboração de um outro projeto de Constituição. O Instituto aprovou a proposta e nomeou uma comissão, da qual eu fui o coordenador. Trabalhamos na Faculdade de Direito durante cerca de três meses. O projeto foi então encaminhado ao governo pelo Instituto. Não é preciso que eu diga que este projeto morreu sem resposta nenhuma, sem a menor manifestação do governo.

Este projeto que foi ao Costa e Silva não tem nada a ver com aquele outro que o senhor entregou para o Médici?

As minhas idéias e concepções são sempre as mesmas, e são bem conhecidas. Mas o que foi ao Costa e Silva, o primeiro, foi redigido por mim pessoalmente, e o segundo foi elaborado por uma comissão do Instituto dos Advogados de São Paulo. Em verdade, o que nós queríamos era forçar o governo a convocar uma Assembléia Constituinte, e tomar um caminho que levasse à democracia.

O senhor já não tinha, nessa época, notícias das prisões e desaparecimentos dentro da esquerda brasileira?

Esta pergunta merece uma resposta solene. Em minha casa, veja bem, em minha casa, na rua Martins Fontes, é que nós nos reuníamos à noite, nós, professores de diversas faculdades, em sessões secretas, para acompanhar pelo rádio, pela televisão, pelo telefone, as notícias dramáticas de nossas próprias cassações. Nós ficávamos ali, em volta do rádio, em volta da televisão, à espera do pronunciamento dos nossos nomes. Muitos dos nossos companheiros souberam de suas cassações nessas reuniões em minha casa. Eu mesmo esperava, a qualquer momento, a minha própria cassação. Eu me lembro de um telefonema que recebi, às quatro horas da manhã, do próprio ministro da Justiça, Gama e Silva 3, comunicando que o meu nome estava em primeiro lugar na lista de cassações, mas que ele o havia riscado. Eu então perguntei por que motivo ele havia riscado o meu nome. Ele disse: “Eu não suportei, não agüentei a tristeza de vê-lo cassado”. Ele também era professor da Faculdade de Direito e era meu amigo desde nossos tempos de juventude. Portanto, eu não só tinha o conhecimento da repressão política como era alvo dela. Vou contar um caso para vocês terem bem idéia da situação em que vivíamos. Eu estava exercendo a diretoria da Faculdade, internamente, quando fui convocado pelo Tribunal Militar para prestar depoimento no processo movido contra Caio Prado Júnior. Fui prestar meu depoimento e aproveitei a oportunidade para fazer a biografia de Caio Prado, mostrando quem era ele, coisa que os juizes desconheciam completamente. Terminei o depoimento dizendo que nenhum de nós, nenhum dos juizes, dos promotores e nem eu mesmo, nenhum de nós tinha, nem de longe, a importância intelectual de Caio Prado. Pela sua obra, pelo alcance internacional de suas idéias, ele era muitíssimo mais importante do que todos aqueles que estavam sentados ali, em volta daquela mesa de juizes fardados. Eu disse finalmente que seria uma injustiça de repercussão internacional qualquer condenação de um homem como aquele. Ele era livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. E eu só não fui preso porque a multidão de acadêmicos do Largo rapidamente me envolveu e me salvou. 

Em 1968, a faculdade foi ocupada pelos estudantes. São sempre lembrados aqueles que apoiaram a ocupação, entre esses alguns professores da casa, como o senhor mesmo.

Eu estava ao lado deles. De alma, de coração. Sempre estive ao lado deles. Durante a ocupação, organizamos cursos sobre os rumos futuros da Universidade e da Faculdade. Nós nos reuníamos no Centro Acadêmico XI de Agosto, no pátio, na escadaria. Éramos sete ou oito professores: Cesarino Júnior, Ignácio Mesquita, Rocha Barros, Canuto Mendes de Almeida e outros professores. Estávamos ali constantemente, tínhamos entrada e saída livre no prédio ocupado. Eu me lembro que quando isso começou, bem no começo, estava em curso uma espécie de reunião dos professores. Havia uma grande agitação docente. O diretor era exatamente esse…

Não vamos pronunciar esse nome, professor. Eu já vi, numa reunião com estudantes, o senhor evitando pronunciá-lo.

Pois é, ele mesmo 4. Triste figura, de quem não quero falar. Lembro-me que eu lhe disse: “Olha, se os senhores quiserem sair, eu os acompanho até lá embaixo.” Ele me respondeu, profundamente irritado: “Você está louco, nós vamos ser lapidados!” Eu lhe disse: “Não, se eu for com os senhores, ninguém será lapidado.” E continuei: “Vou sozinho, agora mesmo vou falar com os estudantes.” Na qualidade de diretor da Faculdade, ele exclamou: “Não, não vá! Você vai ser morto lá embaixo! “. Sorrindo, saída sala, desci e conversei com os estudantes, meus eternos amigos. A mobilização era pacífica, totalmente desarmada. Conversei longamente com os acadêmicos e combinei a retirada dos professores. E assim se encerrou este episódio. 

E nem uma vaiazinha?

Olha, eu não me lembro de vaia não.

Pois então: o senhor era um participante da ocupação histórica da faculdade de direito em 1968; estava permanentemente ameaçado de ser cassado e tinha o conhecimento da repressão política. Ao mesmo tempo, no entanto, levava um projeto de Constituição ao general Médici. Parecem atitudes opostas. Se o tempo voltasse, o senhor agiria da mesma forma? 

Se houvesse novamente ditadura militar?

Sim.

Olha, se houver ditadura estarei na primeira linha para combatê-la.

Não, professor, disso ninguém duvida. A pergunta é outra: o senhor entregaria novamente projetos de Constituição para um general?

Esteja quem estiver na Presidência da República, inundarei sempre o país com minhas proclamações democráticas. Não será um general na Presidência que irá me desestimular na minha pregação. Eu tinha a esperança de que meus projetos nas mãos do general-presidente pudessem ter o efeito de mísseis atirados contra a ditadura. Vã esperança. Mas iniciativa válida.

O senhor fala muito em fraternidade e dialogou até com os militares, sem se arrepender. Sua vida parece perseguir o bem, se me permite dizer assim. Professor, o senhor acredita em Deus?

Uniforme é o fenômeno da vida. A célula de uma ameba e a célula de um homem são indústrias muito semelhantes. No protozoário, na árvore, nas flores, na lagarta, na andorinha, no meu cachorrinho, em Beethoven; a oficina primordial da vida é sempre a mesma. Somos todos irmãos, nós, os vivos. Somos irmãos, porque somos biologicamente semelhantes. “Todos são iguais perante a lei”, diz o Direito. Tal é o mandamento jurídico mais sublime. Com realismo científico, logo após as descobertas modernas sobre a engenharia uniforme de todas as células, afirmamos, extasiados, que todos nós somos irmãos de todos os seres vivos. Como irmãos, somos criaturas de um mesmo pai. E não seria de surpreender que, em meio do deslumbramento que nos ilumina, nossos lábios se ponham a murmurar as palavras que nos ensinaram quando éramos crianças: “Pai nosso que estais nos céus…”

*Eugênio Bucci é editor de Teoria e Debate.

Notas

1. São eles: Prudente de Morais, Campos Sales, Rodrigues Alves, Afonso Pena, Venceslau Brás, Delfim Moreira, Artur Bernardes, Washington Luís, José Linhares, Nereu Ramos e Jânio da Silva Quadros. voltar  

2. A maior votação foi a de Carlos Cirilo Jr., do PSD de São Paulo, que totalizou 67.633 votos. Goffredo Telles Jr. obteve 39.543 votos. voltar   

3. Ministro do governo Costa e Silva. voltar 

4. Alfredo Buzaid. voltar 

http://www.fpa.org.br/td/colecao_td.htm

2 – Tribuna do Direito 1996

ANO 4 – N° 44 – EDIÇÃO MENSAL – DEZEMBRO DE 1996 

GOFFREDO DÁ LIÇÕES DE VIDA 

Professor Símbolo das Arcadas conclama juventude a ter como lema “seriedade e competência”, conservando “a pureza, apesar de tudo”, sem nunca envelhecer “no espírito e no coração. 

O Direito é a “disciplina da convivência humana e do amor de uns pelos outros”. Além de formar integrantes das carreiras jurídicas, o curso de Direito “forma gente, seres humanos dignos de sua classificação como pessoas”, que passam a ter condições de atuar melhor em quaisquer atividades profissionais. “O legislador autêntico é aquele que vai buscar a lei nos ambientes sociais”, pois as normas devem ser “ditadas pelas necessidades dos grupos”. Esses são alguns conceitos do professor Goffredo da Silva Telles Junior, que lecionou por 45 anos na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde conquistou o afeto de várias gerações de estudantes com o seu forte carisma e elevado preparo cultural e humanístico. Aos 81 anos de idade, ele concedeu longa entrevista exclusiva ao Tribuna do Direito . Nela, Goffredo fala do passado e do presente, revela passagens importantes da História do Brasil, nas quais teve participação marcante, e dá à juventude lições de vida, que o jurista prefere chamar simplesmente de apelos : “Amem a beleza, seja com que forma, em que situação, com que data a beleza se apresente.” Tenham “como lema seriedade e competência”. Não permitam que “a aspereza da vida emudeça o sonho”. Conservem “a pureza, apesar de tudo”. E “não envelheçam, no espírito e no coração”. 

GOFFREDO CULTIVA, COM AMOR, 

SONHO DE UM PAÍS JUSTO 

O professor dos professores. Assim pode ser definido Goffredo da Silva Telles Junior, Professor Emérito da Universidade de São Paulo, catedrático da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde lecionou por 45 anos, na graduação e pós-graduação. Foi aposentado em 1985, ao completar 70 anos de idade, com o título de Professor Símbolo. Fazia da faculdade uma extensão de sua casa. Pelo seu desempenho na Advocacia, o jurista também acabou se tornando Advogado Símbolo, por decisão tomada em 87 pela OAB-SP. Goffredo pertence a uma geração que emergiu em meio à efervescência cultural do Modernismo no Brasil. É um mestre que viveu duas revoluções : a de 32, período de luta pela liberdade, e a de 64, época de cinzentas recordações, em que brados eram calados à força. Mas nada afastou da luta pela democracia o incansável guerreiro, filósofo e poeta, que encara o Direito como a “disciplina da convivência humana e do amor de uns pelos outros”. Em 1977, ele foi o primeiro brasileiro a deixar um documento escrito, a Carta aos Brasileiros , de repercussão internacional, repudiando o regime autoritário. Agora, aos 81 anos de idade, depois de ter sido até deputado federal constituinte em 1946, o mestre continua sendo referência a muitos advogados, mantém idéias para o futuro de sua terra e convoca todos os brasileiros a continuarem sempre lutando para realizar o sonho de um país mais justo. Em entrevista exclusiva ao Tribuna do Direito , conduzida pela repórter Vânia Novelli , Goffredo fala de sua vida e obra. Fotos de Marcio Novaes. 

Tribuna do Direito – Professor, pediria que o senhor falasse um pouco de sua infância e juventude. 

Goffredo da Silva Telles Junior – Nasci aqui em São Paulo , no bairro dos Campos Elíseos, na casa de minha avó e de meus pais. Nasci em 16 de maio de 1915 e a minha vida inteira estive no meio de artistas e pensadores, filósofos, juristas e, de modo essencial, de estudantes. Quando eu era menino a minha casa era freqüentada pelos maiores artistas do Brasil : Villa Lobos, Tarsila, Brecheret, Segall, Anita Malfati, Mussia, Gomide, Di Cavalcanti, Flavio de Carvalho, Gobbis. Romancistas e poetas, brasileiros e estrangeiros, freqüentavam a nossa casa. Entre outros, lembro-me bem de Mario de Andrade, Oswaldo de Andrade, Paulo Setúbal, René Thiollier, Graça Aranha, Coelho Neto, Alberto de Oliveira, Ronald de Carvalho, Ribeiro Couto, Eugenia e Alvaro Moreyra, Guilherme de Almeida, Renato de Almeida. Não posso esquecer de Blaise Cendras, grande escritor francês, que se apaixonou pelo Brasil. Entre minhas lembranças, minha memória conserva, com saudade, a imagem destacada do poeta Aloysio de Castro. Recordo que Aloysio de Castro foi quem me introduziu na poesia de Horácio. Eu era ginasiano e ele se interessou pelas minhas leituras. Falou-me, então, dos poetas latinos. Uma tarde, trouxe-me, de presente, o volume das Odes , em latim, com tradução para o português, feita por José Antonio da Matha, na preciosa edição de 1851. Hoje, Horácio figura, em edições diversas, na minha amada estante de poesia. A casa da minha avó, Olivia Penteado, era um centro de artistas. Ela foi a introdutora da arte moderna européia no Brasil, trazendo os primeiros quadros modernos ao País. Fui aluno de desenho de Tarsila, fui amigo a vida inteira de Villa Lobos. Quando eu era secretário de Cultura de São Paulo, organizei no Teatro Municipal a Semana Villa Lobos. Depois de formado, vivi no meio de juristas, meus colegas da Faculdade de Direito. Devo dizer que a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, as minhas Arcadas, a minha Academia, a minha Escola, constituiu um prolongamento da minha casa. Eu tinha dentro da biblioteca da faculdade, construído especialmente para mim pelo diretor, o meu grande professor Braz Arruda, um pequeno cubículo, onde me refugiava para estudar, pensar, meditar sobre os problemas do Direito e do Brasil. Até hoje, grande parte da minha vida se processa no meio dos estudantes. Esta mesa aqui (sala de reuniões do seu escritório), freqüentemente está rodeada de estudantes, geralmente da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, do Centro Acadêmico XI de Agosto, mas também de estudantes de outras faculdades e até de outros Estados. Não só estudantes, mas também advogados novos, profissionais do Direito no início de suas carreiras. Tenho uma grande alegria de viver no meio de uma mocidade estudiosa, que está sempre em minha casa, no meu escritório, conversando comigo sobre os altos problemas da Filosofia, do Direito e do Brasil. 

TD – Por que optou pelo campo jurídico e pela atividade de professor? 

Goffredo – É a minha vocação natural. Tenho convicção absoluta de que fui levado à carreira jurídica, do Direito, por uma vocação originária do meu patrimônio genético, das minhas células. Meu pai se formou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Embora nunca tenha advogado e nem sido professor, ele era poeta e me ensinou a beleza da ordem jurídica e a necessidade do respeito ao próximo. Isso significa respeito à lei. Fui professor pelo mesmo motivo pelo qual fui encaminhado ao Direito. Sinto que nasci para ser professor, tanto que quando eu estava no terceiro ano do curso, como estudante, eu estava me preparando para os concursos para ser professor da faculdade. Formei-me em 37, como advogado. Antes disso eu era solicitador, inscrito na Ordem dos Advogados e, em 41, eu já estava aprovado em concurso de livre-docente. Já tinha um livro escrito, Justiça e Júri no Estado Moderno . Advoguei ativamente no foro de São Paulo, durante muitos e muitos anos. 

TD – Ao longo de sua carreira de docente, qual a análise que o senhor faz dos cursos de Direito, evoluíram ou retrocederam? 

Goffredo – Só quero falar do meu curso. Quem involuiu fui eu. Os estudantes sempre foram aplicados, atentos, sempre queriam estudar, eram curiosos. O estudante brasileiro é de primeiríssima ordem. O que é preciso é incentivá-los, mostrar a eles a altitude, a grandeza do objeto que eles estão estudando, mostrar que estão estudando algo importantíssimo, não só para eles, mas também para o seu país, sua pátria. A ordem jurídica não pode ser desprezada, menosprezada. Essencialmente é condição da paz social, de maneira que, na hora que os estudantes percebem que estão estudando algo que interessa fundamentalmente não só a cada um deles que vai exercer sua profissão na área jurídica, mas também ao todo social, neste momento eles tomam a sério aquele estudo. Há uma observação que eu preciso fazer quanto ao curso de Direito. Este curso é de natureza excepcional dentro dos cursos universitários. Eu digo isto porque o curso de Direito forma advogados, juízes, promotores públicos, delegados, mas não só isso. É um curso feito para formar gente, seres humanos dignos da sua qualificação como pessoas. Aquele que está fazendo o curso de Direito não precisa vir a ser advogado, juiz ou promotor ; pode ser comerciante, industrial, jornalista ; pode ser político, o que ele quiser, pode ser marido, esposa, pai, mãe. Mas, feito o curso de Direito, tem tudo para ser melhor comerciante, melhor empresário, melhor industrial, melhor político, porque o Direito é o curso sobre a convivência humana, e a convivência é a condição de todos os seres humanos. A vida do homem, o que é senão conviver? Então, aquele que estudou as normas da convivência está melhor equipado para as atividades da vida. 

TD – O senhor é considerado pelos seus ex-alunos como um papa da Ciência do Direito, da Ética. Muitos lembram que o senhor fazia um verdadeiro ritual antes de cada aula, abaixava a cabeça por um momento, se concentrava e só então começava a aula. O que significava o ritual? 

Goffredo – A aula para mim sempre foi um ato quase religioso. De fato, os meus alunos do Largo de São Francisco, extraordinariamente respeitosos, mantinham um silêncio total quando eu entrava na sala. Antes de iniciar a aula, eu passava um olhar pela classe toda. Depois, juntando as mãos, de mim para mim, no fundo de minha consciência, eu pedia a Deus que fizesse daquela aula uma obra de beleza. Era esse meu ritual. Eu dava aula depois de havê-la estudado meticulosamente em minha casa, com muito cuidado. De maneira que, se minha aula não era uma obra de beleza, era certamente uma obra de amor, uma obra de paixão. Eu explicava o Direito e os pontos do programa como quem explica os laços que devem unir as pessoas umas às outras. Porque sempre entendi que o Direito era uma disciplina, mas a disciplina da convivência. Então, o Direito é, forçosamente, uma disciplina de amor e de respeito de uns pelos outros. O Direito é um conjunto de normas, mas que normas? As normas da convivência e, portanto, normas de respeito. E respeito verdadeiro é sempre amor pelo próximo. 

TD – O senhor atribui o relacionamento tão próximo que mantinha com os seus alunos a essa maneira poética de tratar o Direito? 

Goffredo – O meu sistema de dar aulas é esse, brota em mim de um modo natural. Aprendi a respeitar os outros e o Direito é a disciplina desse respeito. Assim como respeito aqueles que eu não conheço, com mais razão devo respeitar os meus estudantes. A mim me parece muito importante, para um professor, reconhecer que tudo aquilo que ele está ensinando é resultado, não só do estudo e da meditação, mas também de uma experiência de vida, própria do professor, e também haurida dos grandes romances, dos grandes escritores, porque evidentemente, não pode uma pessoa ter experiências de todas as vidas. Além da experiência de sua própria vida, é claro que o professor de Direito deve conhecer a grande literatura do mundo, para aumentar seu cabedal de experiência, com as histórias contadas pelos grandes romancistas. O Direito é disciplina da convivência. O professor de Direito precisa conhecer as múltiplas formas da convivência humana. A mim me parece que, ao professor, interessa, sobremaneira, ler livros como Os Miseráveis , de Victor Hugo ; Crime e Castigo , de Dostoievski ; Madame Bovary , de Flaubert ; Crainquebille , de Anatole France ; O Crime do Padre Amaro A Relíquia , de Eça de Queiroz ; O Homem do Povo , de Ibsen. 

TD – O senhor acredita que os novos bacharéis estão preparados para exercer as carreiras jurídicas? 

Goffredo – Depende da escola que fizerem e depende da natureza e do esforço de cada um. Se o aluno estudou bem ou mal, depende de muitas circunstâncias. Como acontece com o médico, o engenheiro. Quanto mais alta a profissão, mais ela depende de uma série de circunstâncias. Há muitas escolas que funcionam sem a necessária possibilidade de ser escolas verdadeiras, autênticas. Mas isso é assim nos diversos ramos, não só no Direito. Tenho dito sempre aos moços que não percam tempo fazendo críticas à sua escola, aos professores etc.. Que usem seu tempo para estudar. Aliás, posso dizer que alguém pode ser um ótimo jurista sem ter feito nenhum curso de Direito. Mas é claro que isto exige vocação jurídica especialíssima. O fato é este : tudo depende essencialmente do próprio estudante. Hoje o importante é ser competente em qualquer profissão. A competência é exigência do nosso tempo. Quem não for competente não está em condições de enfrentar a concorrência e de resolver satisfatoriamente os problemas da profissão. E a competência depende enormemente da dedicação e do esforço de cada um. 

TD – Em quais ramos do Direito o senhor trabalhou mais tempo e de qual mais gosta? 

Goffredo – Eu me iniciei e advoguei muito no crime, aqui em São Paulo , e aos poucos o meu escritório foi atendendo também causas nas áreas do Direito Civil e do Direito Comercial. Eu me interessava tanto pela ordem jurídica que todos os ramos do Direito me empolgavam. Tanto que, tempos atrás, um jornalista veio me consultar sobre se o governo francês tinha o direito de pescar lagostas nas costas de Pernambuco. Eu conhecia muito bem essa questão ; o jornalista saiu do escritório muito satisfeito e disse : “Olha, professor, o senhor deveria fixar na porta do seu escritório um dístico assim : Escritório de clínica geral .” 

TD – O senhor já trabalhou também com Direito Tributário e até escreveu um livro a respeito. Normalmente essa área é considerada por muitos juristas e estudantes como o “dragão do Direito” … 

Goffredo – É um grande problema. No tempo em que eu era deputado este problema era cardeal e continua sendo exatamente o mesmo até hoje. É de difícil solução. É um problema que não está resolvido. Vejo que o presidente da República está querendo a reforma tributária, todo mundo quer. Mas em 45 e 46, quando eu fui constituinte, o problema também era esse, não mudou muito. Naquela ocasião, escrevi sobre o assunto um pequeno livro : O Sistema Brasileiro de Discriminação Constitucional das Fontes de Receita Tributária 

TD – Quando escrevia um livro sobre Direito, fazia isto com fins didáticos? 

Goffredo – Não. O meu livro Direito Quântico , por exemplo, tem 180 páginas iniciais descrevendo os astros do sistema solar. Não estou ensinando isto a alunos propriamente, mas estou dizendo o que eu aprendi sobre esse assunto, isto é, sobre a composição dos astros, da terra e da matéria de que é feito o universo. Isto me parece fundamental nos tempos modernos. Acho que nem todos percebem o valor dessas coisas, mas a ciência atual mostrou que eu tinha razão. Este livro foi escrito em 1971, quando as grandes descobertas da Biologia ainda não haviam impressionado os pensadores da área jurídica. O DNA, o ácido desoxirribonucléico, foi descoberto antes de 1960. Os cientistas receberam em 1966 o Prêmio Nobel por essa fantástica descoberta. Eu vinha estudando este assunto, desde o momento em que Crick , Watson e Wilkins revelaram a extraordinária importância do ácido desoxirribonucléico no comportamento humano. Como o Direito é a disciplina do comportamento, parecia-me fundamental saber o que é que determina o comportamento. Por isso escrevi o Direito Quântico e também a minha Ética , que é um estudo da célula e sua influência na cultura. 

TD – Apesar de ter escrito um livro falando sobre isso, o senhor poderia definir em uma resposta o que determina o comportamento humano? 

Goffredo – Vou procurar responder com poucas palavras. Antes de tudo, devo dizer que o DNA, com seus filamentos hereditários de genes, decide da personalidade fundamental das pessoas, e é o que confere, a cada pessoa, suas predisposições naturais. O DNA é o que se chama patrimônio genético do ser vivo. Mas devo esclarecer que esse patrimônio, por si só, não determina, de maneira completa, cada modalidade da pessoa, cada uma de suas atitudes dentro do mundo, cada ação que vai praticar. Fundamental, para a determinação do comportamento de uma pessoa, é a interação entre o equipamento genético e os fatores mesológicos : a interação do patrimônio celular com o meio ambiente. Os genes não selam o destino. As predisposições naturais podem ser condicionadas. Assim, seres geneticamente doentios se podem submeter a tratamento médico, adquirir saúde e voltar ao trabalho. O ignorante, o boçal, pode instruir-se, conquistar um lugar ao sol, e passar a exercer novos tipos de atividade. O vadio, o marginal, o delinqüente habitual, o facínora se pode tocar, por exemplo, pela pregação, influir pela educação e, conseqüentemente, pode, um dia, mudar de atitude diante da vida. Os genes conferem ao homem sua natureza e até a sua individualidade. Conferem a uma pessoa, por exemplo, uma natureza capaz de aspirações. Mas os genes não determinam cada uma das aspirações dessa pessoa. E não são eles que selecionam e deflagram a ação, em cada circunstância da vida. O que eu quero salientar é que o comportamento de uma pessoa reflete, fundamentalmente, o feitio mental, a índole do agente, e que este feitio, esta índole é obra do DNA particular da pessoa. 

TD – Essas descobertas dos biólogos têm qualquer repercussão na área da Ética e do Direito? 

Goffredo – Sim, evidentemente. Uma parte considerável do que os estudiosos da moralidade sempre buscaram explicar, por meio de princípios “supremos” a priori, a cultura científica dos dias atuais explica pelo “programa” inscrito no material genético hereditário. Diante dessa realidade, não podem mais os filósofos da Moral e do Direito ignorar as contribuições da Biologia, para a correta fundamentação das ordens éticas. E não podem mais os legisladores dispor da sorte humana como se o DNA não existisse. À luz dos novos conhecimentos, muitas concepções e muitas leis envelheceram. Em conseqüência, disposições importantes, nas áreas da Moral e do Direito, precisam ser conscienciosamente revistas e substituídas. Eu quase poderia dizer que uma nova Ética precisa ser criada. Por exemplo, estão a exigir reformulação os conceitos de responsabilidade e de capacidade ; de culpa e de crime ; de pena e de indenização. Estão a exigir completa mudança os regimes prisionais e os processos de tratamento dos infratores. Clama por atualização a velha “tipologia criminal”. 

TD – Hoje em dia, com tanta criminalidade, o senhor pensa que é o patrimônio genético humano ou o meio ambiente que está se deteriorando e favorece o desenvolvimento de tendências negativas? 

Goffredo – Ninguém se iluda! O ser humano é um animal perigoso. De um modo geral, suas atuações manifestam a interação entre o seu patrimônio genético e o meio ambiente. Se o meio ambiente for cruel, suas reações poderão ser cruéis. Desemprego, fome, miséria em casa, falta de teto ou de terra, falta de assistência para os doentes, para os velhos, falta de escola para os filhos – tudo isto pode constituir um complexo de fatores mesológicos que condicionam reações de violência. E se tais fatores não forem enfrentados e mitigados pelo poder público, e se tais reações não forem convenientemente contidas, o meio ambiente se torna palco propício para as expansões descontroláveis da animalidade perigosa do ser humano. E essas expansões, quando não devidamente impedidas, tendem a se tornar de mais a mais ousadas, e a se manifestar em setores sociais cada vez mais amplos. 

TD – Professor, o senhor acredita que o Direito, por ter sido elaborado por homens, tinha objetivos mais elevados, difíceis de ser cumpridos ao se deparar com os fatos? 

Goffredo – A ordem jurídica não deve ser imposta de cima para baixo. A lei legítima é boa quando nasce de baixo para cima como a erva do campo. Ela deve resultar do movimento da consciência coletiva. O legislador autêntico é aquele que vai buscar a lei nos ambientes sociais, nos grupos naturais da sociedade. Vai buscar normas que são ditadas pelas necessidades dos grupos. Não devem os legisladores um dia acordar e decidir criar uma lei. Isto é péssimo. A ordem jurídica criada assim é a ordem da ditadura, dos regimes de força, e nos repugna. Lutamos contra ela, não queremos saber dessa ordem. Essa ordem é uma ordem que se chama “desordem”. A desordem é a ordem que não queremos. 

TD – O presidente da República tem decretado leis de cima para baixo, por meio das chamadas “medidas provisórias”, a que se refere o art. 62 da Constituição Federal. O que pensa o senhor sobre isto? 

Goffredo – Eu penso que, em circunstâncias rigorosamente excepcionais, pode acontecer que o presidente se veja obrigado a tomar medidas imediatas, para acudir sem demora a situações de emergência. De acordo com o art. 62 da Constituição, o presidente tem a faculdade de adotar, nessas circunstâncias, medidas extremas, chamadas “medidas provisórias”. Mas somente deve fazê-lo em casos especialíssimos, “de relevância e urgência”, nos termos da própria Constituição. Fora desses casos, a adoção de medidas provisórias é prática absolutamente inconstitucional. O presidente da República, num Estado de Direito, em regime democrático, não pode investir-se na missão do Poder Legislativo. Quando o faz, atenta contra o princípio representativo de nosso sistema de governo. No processo legislativo brasileiro, ao presidente da República compete a iniciativa das leis, devendo os projetos, oriundos do Executivo, ser encaminhados ao Congresso Nacional, para os trâmites regulares. 

TD – Os meios de comunicação têm levantado a questão de que o Congresso Nacional tem assumido uma postura casuísta na criação de leis, durante o atual governo. O que o senhor pensa desse comportamento? 

Goffredo – A Câmara dos Deputados sempre foi, em minhas cogitações sobre a estrutura constitucional do Estado, motivo permanente de dúvidas e incertezas, de embaraços e perplexidades. A Câmara chegou a levar-me, por vezes, a um sentimento de impotência, de angústia, quase de aflição. Tenho sido, por toda a vida, um denunciador da escandalosa mentira a que se reduz a representação política no Congresso Nacional. Tribuna livre, órgão crítico da política nacional, guarita da vigilância sobre o Poder Executivo, caixa de ressonância de anseios e indignações, a Câmara dos Deputados se consagrou como a instituição característica da democracia. Mas, como órgão de representação política, a Câmara tem sido, na história da República, um amargo fracasso. A imprensa categorizada do País não se cansa de delatar esse desastre. 

TD – Que remédios o senhor sugeriria para assegurar a representação política no Congresso Nacional? 

Goffredo – Não sei se é sonho ou devaneio, fantasia ou voto ardente, mas o que vejo de melhor para o Brasil é um regime político de apenas quatro grandes partidos nacionais. Dois seriam de direita e dois, de esquerda. As duas duplas, como as vejo, se distinguiriam, com clareza, uma da outra. Distinguir-se-iam, essencialmente, pelos princípios doutrinários que as definiriam. E distinguir-se-iam pelas suas decisões e atitudes. A dupla da direita seria a dos dois partidos conservadores e a da esquerda, dos dois partidos progressistas. Nesse esquema, poderiam ser admitidos três ou quatro pequenos partidos, com fins estritos e específicos – como, por exemplo, o Partido Monarquista, o Partido Verde, o Partido de Defesa da Hiléia Amazônica. Na minha sonhada democracia, a representação política no Congresso seria autêntica, porque os deputados dos dois partidos da direita seriam representantes do grande setor conservador do eleitorado ; os deputados dos dois partidos da esquerda seriam representantes do grande setor progressista (trabalhista, socialista) do eleitorado. É claro que, num tal regime, o princípio da fidelidade partidária seria obrigação de honra, cuja violação teria de acarretar, para o deputado, a perda do mandato. 

TD – O senhor se destacou muito por ter escrito o primeiro manifesto contra a repressão e ausência de liberdade no País, durante o regime militar, no qual falava coisas que muitos pensavam, mas não tinham coragem de expressar. Como foi esse episódio? 

Goffredo – Isto se deu em 1977. A Carta aos Brasileiros foi um desabafo, uma proclamação, aos quatro ventos, do que estava dolorosamente reprimido no íntimo da consciência de milhões de brasileiros. Ela teve um sentido de liberação. Ela surgiu numa sociedade infeliz, num povo flagelado pela repressão policial, numa nação angustiada por estarrecedora massa de “leis de exceção”, leis de força, que fizeram calar e reduziram ao silêncio, durante anos a fio, as vozes da população. Essas leis acabaram por formar um aterrador arsenal de disposições, que criaram penas iníquas, aplicáveis tanto a terroristas como a cientistas, pensadores, operários e estudantes – medidas estas que se foram transformando em meios de perseguição e combate a quaisquer adversários políticos, fossem eles comunistas ou não. Passaram a ser chamadas “salvaguardas do Estado”. Culminaram no ato de violência pelo qual foi decretado o recesso do Parlamento e baixados dois monstros legislativos : o Pacote de Abril e a Lei Falcão. Nessa ocasião, todos os idealistas que desejavam a volta à legalidade legítima e à democracia foram gravemente ofendidos pelo presidente da República que, em pronunciamentos reiterados pela imprensa, os taxou de “demagogos, hipócritas, irresponsáveis, oportunistas, malabaristas, criadores do caos, disseminadores da cizânia, mistificadores sem escrúpulos”. Foi dentro desse ambiente que despontou e invadiu todos os rincões de nossa terra, como expressão pura da consciência nacional, a nossa Carta aos Brasileiros 

TD – Como foi divulgada a Carta? 

Goffredo – Redigi a Carta nas férias de julho de 1977. Nos primeiros dias de agosto, meus amigos enviaram emissários de confiança a diversos pontos do Brasil, levando exemplares da Carta . Assim obtiveram, secretamente, mais de uma centena de assinaturas de gente famosa. Conservo, como um tesouro, esses exemplares que foram subscritos pelas mais altas mentalidades de nosso País. Na noite de 8 de agosto de 1977, segunda-feira, no pátio das Arcadas, no interior da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, diante do monumento dedicado aos estudantes da Academia mortos em 1932, na luta pela constitucionalização do País, eu li, perante uma multidão emocionada, a minha Carta aos Brasileiros . No dia seguinte e nos dias subseqüentes, a Carta , de 14 páginas datilografadas, foi publicada na íntegra, com grande destaque, por toda a imprensa nacional. Teve extraordinária repercussão em todo o País. Alcançou manchetes de primeira página nos grandes jornais do mundo. Imediatamente traduzida para numerosos idiomas, foi amplamente difundida no Exterior. Foi transcrita nos Anais do Congresso Nacional e de numerosas Câmaras Legislativas dos Estados e dos municípios. 

TD – Que efeitos práticos produziu a Carta aos Brasileiros? 

Goffredo – Rompendo a barreira do medo, a Carta desencadeou, em todos os setores da população, um movimento aberto e irreversível de oposição ao Estado autoritário, e de exaltação do Estado de Direito e da democracia. Abriu a luta a descoberto contra a opressão. Lançou a cruzada pelos direitos humanos, propiciando a campanha pelas liberdades democráticas. A Carta se desligou de seu autor e passou a pertencer a milhões de brasileiros. As vozes autênticas do Brasil começaram a se fazer ouvir. Os poetas, os artista em geral lançaram seus manifestos. Consagrados líderes de correntes de opinião apoiaram os conceitos da Carta , em artigos nos grandes jornais. Os estudantes esqueceram o draconiano 477, reuniram-se, saíram às ruas, em passeatas e atos cívicos. Dignatários do clero logo manifestaram sua solidariedade ao movimento espontâneo de libertação, que começava a crescer por toda a parte. Os trabalhadores de várias categorias se puseram a dinamizar suas entidades de classe e proclamaram suas exigências e reivindicações. Por fim, o próprio governo, pressionado pelas forças vivas da Nação, começou a tomar medidas de abertura política e a manifestar, com atos inequívocos, sua determinação de caminhar para o Estado de Direito. 

TD – E houve perseguições por ter escrito a carta? 

Goffredo – Foi muito interessante, porque eu tinha a impressão de que eu seria preso. Mas eu já tinha acionado dois advogados, um em São Paulo e outro no Rio, para que requeressem meu habeas-corpus naquela mesma noite da leitura. Mas os estudantes da faculdade, que são, como já disse, gente maravilhosa, não permitiram que nada me acontecesse. Logo depois da leitura da Carta , em meio da ovação e do entusiasmo, os estudantes e minha mulher me seqüestraram e me esconderam. No dia 11 de agosto houve a sessão no salão nobre das Arcadas, comemorativa do aniversário dos cursos jurídicos. Após a solenidade, fui abordado por dois deputados federais (meus ex-alunos), que vinham em nome do governo federal, portanto da ditadura, e me disseram : “Professor, esteja tranqüilo. Viemos aqui especialmente a mando do presidente da República, que nos pediu que lhe disséssemos que a Carta aos Brasileiros foi incluída na área de manobra do governo.” Eu sorri, achei isto uma coisa extraordinária, agradeci e fiquei de fato mais tranqüilo. Nunca entendi bem como o governo viu minha carta dentro de sua área de manobra, mas o fato é que não fui perseguido em razão de minha carta. Na verdade, era difícil ser perseguido diante da repercussão havida. 

TD – Hoje em dia ainda há muitas denúncias de violência e tortura nas prisões. Houve o massacre do Carandiru. O que o senhor pensa do problema carcerário brasileiro? 

Goffredo – No massacre do Carandiru não houve tortura, houve assassinato, houve 111 homicídios. Os presos foram assassinados pela polícia. O problema carcerário é dramático no Brasil. Não é preciso que eu repita o que todo mundo sabe. Nós não temos presídios suficientes, os presos estão acumulados em ambientes irracionais, que não servem para seres humanos, por mais criminosos que sejam. Seres humanos não podem ser tratados como vêm sendo. Mas noto que há uma grande vontade dos poderes públicos de melhorar essa situação. Dentro de São Paulo os planos já estão acertados para a criação de diversos presídios em lugar da penitenciária do Carandiru. Aliás, tenho a convicção de que todo o sistema de contenção da atividade anti-social está a exigir completa reforma, de acordo com as descobertas científicas nos últimos 40 anos, na área da Biologia. Este assunto foi tratado magistralmente pelo ex-presidente do Conselho Federal da OAB, dr. José Roberto Batochio, em seu trabalho “Formas Alternativas de Pena Criminal”, apresentado à XVI Conferência Nacional dos Advogados. 

TD – Qual a sua opinião sobre o controle externo do judiciário? 

Goffredo – Tenho pensado muito sobre essa questão. Tenho conversado com muita gente. Não cheguei ainda a convicções definitivas e tenho evitado manifestar opinião a respeito do controle do Judiciário. Quero dizer que conheço bem o meu País e o meu povo. Sei de suas virtudes e de suas fraquezas. Tenho receio de que a adoção de um órgão para o exercício do controle externo redunde na criação de uma área de permanente atrito e conflito, em prejuízo da estabilidade e firmeza do Poder Judiciário. Eu me pergunto sobre se não seria mais prudente, mais vantajoso, um sistema ajustado de autocontrole, fundado na hierarquia das instâncias. 

TD – O senhor já escreveu também sobre Justiça e júri, o que pensa sobre os tribunais de júri? 

Goffredo – Tenho uma grande experiência nessa área de júri, não só como advogado, pois já atuei muito no júri de São Paulo, e também como conselheiro da penitenciária. O que a experiência me revelou foi que as decisões do júri, mesmo aquelas que parecem não estar certas, com o tempo se revelaram como sendo as decisões mais justas. Tenho muita confiança no júri. 

TD – E quanto aos Juizados Especiais Cíveis e Criminais? 

Goffredo – É preciso realmente incentivar a formação de juizados desse tipo, para que se resolvam, com simplicidade, as pequenas causas, que podem ser decididas numa conversa com o juiz. Ainda agora, o Congresso aprovou a arbitragem. O código já faz referência à arbitragem, mas ela não estava devidamente regulada. É uma forma de resolver as contendas. Os dois lados escolhem julgadores, escolhem árbitros, que não precisam ser formados em Direito. Basta que sejam pessoas de confiança das partes. Autores e réus se comprometem a aceitar a decisão que for lavrada. 

TD – Ultimamente o senhor tem sido procurado para dar pareceres nas mais diversas questões. A que mais tem se dedicado? Está escrevendo alguma coisa? 

Goffredo – É bondade chamar de pareceres as opiniões que dou a todos que vem me consultar. Realmente, recebo aqui no meu escritorinho as consultas que me fazem não só daqui de São Paulo, mas também de outros Estados. Freqüentemente são consultas de advogados, que querem saber minha opinião sobre isto e aquilo ; tenho exercido uma atividade grande neste setor consultivo. No meu escritório, eu, minha mulher Maria Eugenia e minha filha Olivia, trabalhamos nas áreas do Direito e da Política e o dia todo estamos respondendo às perguntas que nos fazem sobre os mais diferentes problemas. Às vezes são questões do dia-a-dia, que estão nos jornais, outras são altos problemas da política nacional. No momento estou escrevendo dois livros. Iniciação na Ciência do Direito é um deles ; o outro vai chamar-se A Folha Dobrada . Esta expressão é tirada de um poema do jurista Tobias Barreto, que diz assim: “Quando se sente bater no peito heróica pancada, deixa-se a folha dobrada enquanto se vai morrer”. Esta expressão, “a folha dobrada”, nome do meu próximo livro, se refere à folha do livro que deixei dobrada muitas vezes na minha vida. Em 1932, eu já era soldado na Revolução Constitucionalista de São Paulo. Não vou relatar as campanhas de minha juventude, na Faculdade de Direito, quando eu era estudante. Quanta luta, meu Deus! Em 45, fui eleito deputado federal constituinte e, durante todo o meu tempo de deputado, estive em luta permanente. Em 1950 terminou o meu mandato e eu não quis me candidatar mais, porque desejava voltar integralmente para a minha faculdade. Não parei muito, sempre estive em defesa da liberdade, dos direitos da pessoa, do Estado de Direito, da democracia. Cheguei na Carta aos Brasileiros . E, depois da Carta , até hoje, estou na minha campanha de sempre. 

TD – Quais são os livros de sua autoria? 

Goffredo – Escrevi os seguintes livros : O Direito Quântico – Ensaio sobre o Fundamento da Ordem Jurídica , Ed. Max Limonad ; Ética – Do Mundo da Célula ao Mundo da Cultura , Ed. Forense; A Criação do Direito , dois volumes ; Filosofia do Direito , dois volumes, Ed. Max Limonad ; Tratado da Conseqüência – Curso de Lógica Formal , Ed. José Buschatski ; A Democracia e o Brasil , Ed. Revista dos Tribunais ; A Constituição, a Assembléia Constituinte e o Congresso Nacional , Ed. Saraiva ; Justiça e Júri no Estado Moderno , ed. particular, distribuição Saraiva ; A Definição do Direito , ed. particular, distribuição Saraiva ; O Sistema Brasileiro de Discriminação das Bases Tributárias , ed. Imprensa Nacional ; Resistência Violenta aos Governos Injustos , ed. da Revista da Faculdade de Direito Lineamentos de uma Constituição Realista para o Brasil , ed. da Revista da Faculdade de Direito ; e Dissertação sobre o Universo , ed. da Revista da Faculdade de Direito . Neste momento estou ultimando a redação do livro A Folha Dobrada – Lembranças de um Estudante . Tenho nas minhas gavetas prontos para publicação, os originais de meu livro Iniciação na Ciência do Direito 

TD – O que o senhor pensa do mercado editorial jurídico no Brasil? 

Goffredo – Bem, não sou editor. Então, não posso dizer muito. Tenho impressão de que os livros jurídicos, quando são de valor, têm saída certa. E tendo saída, deve ser um bom negócio para o editor. Ninguém vai ficar rico escrevendo livros. A não ser os grandes romancistas, como um Jorge Amado. Acredito que ninguém pensa em ficar rico escrevendo livros. Não é por aí. Aliás, o exercício modesto das profissões, mesmo o exercício competente, em regra não faz ninguém rico. 

TD – Professor, o senhor foi casado com uma grande escritora e, atualmente, é casado com uma conceituada advogada. O senhor gostaria de falar sobre esse assunto? 

Goffredo – O passado é história antiga. Só quero falar do presente. Há 30 anos, sou casado com Maria Eugenia Raposo da Silva Telles. Muito mais jovem do que eu, ela entrou na minha vida em 1967, e iluminou meus dias para sempre. Quero fazer uma confissão. Ela é o encanto de minhas horas, a companheira excelente, espírito alto e esclarecido, motivo permanente de minha admiração. Certa noite, um repórter intrometido me perguntou : “E o tédio, doutor, o tédio dos casamentos muito prolongados?” Meu Deus! Eu vivo apaixonado! – exclamei. Hoje, eu amo a minha mulher como a amei no primeiro dia! O jornalista ficou a me fitar perplexo, com olhos esbugalhados. Cousa curiosa! Venho verificando, ultimamente, que boa parte da mocidade já não mais quer saber daquele velho e profundo amor, amor total, total dedicação recíproca, “amor eterno”. Que caretice! – dizem. Dizem : “O amor é infinito, sim, mas somente enquanto dura”… Maria Eugenia é advogada, formou-se na minha faculdade. É diplomada, também, em curso de pós-graduação pela Universidade de Cornell, nos Estados Unidos. É autora de um trabalho importante : Grupos de Pressão e Regime Representativo . Temos uma filha, Olivia, de 24 anos, que reina em nossos corações. Também é advogada, pela nossa Academia do Largo de São Francisco. Na Sorbonne, Universidade de Paris, conquistou o Diplome d´Études Approfondis, de Direito Internacional Econômico. De meu casamento anterior, tenho um filho muito amado, Goffredo Telles Neto, cineasta conhecido. 

TD – Qual é o seu hobby? 

Goffredo – Fui esportista na minha juventude. No meu tempo de estudante, na faculdade, fui nadador do Clube Atlético Paulistano, especialista na prova de 600 metros nado livre. Duas vezes, participei da prova da travessia de São Paulo a nado, pelo Tietê. Na minha juventude também jogava xadrez. Sempre gostei de teatro e cinema. Jantar fora, em nossos escolhidos restaurantes, sempre foi, para mim e Maria Eugenia, um hábito e um prazer. Atualmente, por força maior, sou, essencialmente, um homem de minha casa, de minha família, de meus amigos e consulentes, de meus livros e de minha velha mesa. Qual é meu hobby? Não sei. Eu amo a vida. Amo a luta das idéias. Amo o que faço. 

TD – O que está lendo no momento e considera bom na literatura moderna? 

Goffredo – Eu imagino que a pergunta se refere às minhas leituras na área da ficção. Sou um ledor inveterado. Inclusive de jornais. Leio o que há de novo – o ótimo e o péssimo, até mesmo as bobajadas, que às vezes me divertem – , e releio as grandes obras que li na minha mocidade. Por exemplo, andei relendo, nos últimos tempos, três jóias maravilhosas : Une Vie , de Maupassant ; Le Désert de l´Amour , de Mauriac, e Sous le Soleil de Satan , de Bernanos. Acompanho de perto a grande literatura moderna. Mantenho, há muitos anos, um caderno para registro dos livros lidos. Na margem das páginas, assinalo com uma cruzinha vermelha as obras por mim julgadas excelentes. Para mim, a qualidade da excelência não depende de escolas ou tendências, nem da modernidade da obra, nem da sua aceitação pelo público. O romance excelente, para mim, é aquele que me enleva e me comove, pela sua espiritualidade, sua universalidade, sua beleza. Assim, receberam a cruzinha vermelha, livros como Cem Anos de Solidão O Amor no Tempo do Cólera , de Gabriel Garcia Marquez ; As Sandálias do Pescador , de Morris West ; O Crepúsculo de um Romance , de Graham Green; A Romana , de Moravia ; Morte a Crédito , de Celinel ; A Pomba , de Süskind ; Promessa ao Amanhecer , de Romain Gary ; O Apanhador de Trigo , de Salinger ; As Areias do Tempo , de Sheldon ; O Trigo e o Joio , de Fernando Namora ; Os Ratos e os Homens , de Steinbeck ; Jantar no Restaurante da Saudade , de Anne Tyler ; A Idade da Inocência , de Edith Wharton ; O Estrangeiro , de Camus ; Memórias de Adriano , de Marguerite Yourcenar ; O Nome da Rosa , de Umberto Eco – e mais alguns. Na literatura brasileira, depois de Machado de Assis, levaram cruzinha vermelha, sinal de excelência, somente obras publicadas depois de 1934. Romance excelente brasileiro encontrei, sem dúvida, mas somente a partir desse ano, na obra esplêndida de Graciliano Ramos, Jorge Amado, Aníbal Machado, Guimarães Rosa, Josué Montello, Gerardo Mello Mourão, João Ubaldo Ribeiro, Lygia Fagundes Telles, Darcy Ribeiro, José Cândido Carvalho. 

TD – E os poetas, professor? Os poetas têm lugar em suas prateleiras? 

Goffredo – Numa estante reservada, estão os poetas de toda a minha vida. Quero lembrar que a minha faculdade é uma casa de poetas. Meu pai era poeta – mais poeta do que qualquer outra coisa ; pertenceu à Academia Paulista de Letras, da qual foi aclamado Presidente Perpétuo. Vou mencionar aqui os nomes de alguns de meus poetas, daqueles que leio e releio e torno a ler, nas minhas altas madrugadas, quando a noite encantada entra pela janela. Declino os seus nomes como quem reza : Verlaine, Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, Glatigny, Musset, Lamartine, Claudel, Rilke, Poe, Eliot, Fagundes Varela, Castro Alves, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Olavo Bilac, Manoel Bandeira, Cecília Meireles, Augusto Frederico Schimidt, Guilherme de Almeida, Mauro Mota, Paulo Bomfim, Hilda Hilst. Num certo momento de minha vida, senti-me arrebatado pelos poetas ingleses : Wordworth, Keats, Tennyson, Shelley. Entre os livros dos poetas preferidos, coloquei os de meu pai : A Fada Nua O Mar da Noite 

TD – O senhor utiliza recursos de informática no seu trabalho? 

Goffredo – Olha, eu tenho aqui no escritório três aparelhos completos, um é da Maria Eugenia, minha mulher, outro é da Olivia, minha filha ; e outro é da minha secretária Maria Helena. Não sei lidar com esses aparelhos, não tenho muito tempo para estar aprendendo essas coisas. Vivi a vida inteira sem informática. Escrevo a mão e a lápis ; tenho milhares de páginas escritas desta forma. Este livro meu, A Folha Dobrada , está com mais de mil páginas datilografadas. Tenho a máquina elétrica e a minha secretária datilografa ; não sei mais escrever a máquina. Engraçado é que eu soube ; porque, quando era estudante, trabalhava num escritório, como datilógrafo. Fiz um curso de datilografia e eu escrevia a máquina. Que bom patrão eu tive! Depois, nunca mais datilografei, destreinei ; não precisei mais. Quando, às vezes, necessito de uma informação rápida, que só pode vir de longe, recorro à Internet, mas por intermédio da Maria Eugenia, ou da Olivia, ou da Maria Helena. 

TD – Há algum episódio interessante que gostaria de deixar registrado aos leitores? 

Goffredo – Episódios… É claro que eu vi muitos, e participei de muitos. Muito interessante foi o que aconteceu em 1968, quando a juventude do mundo estava nas ruas de Paris, de Londres, de Madri, de Varsóvia, de Praga, do Rio, de São Paulo – com seu brado de revolta, com sua polissêmica proclamação : “É proibido proibir!” Com seu lábaro de guerra : “A imaginação no Poder!” Vivíamos o ano de 1968. Tempo de rebeldia! Tempo de insurreição contra o arcaico, o obsoleto ; contra a prepotência e a impostura. Tempo de luta, pelo arejamento e modernização dos costumes ; pela emancipação da mulher, pela liberação sexual. Na minha faculdade, em junho e julho de 1968, os estudantes se entrincheiraram. Para se defender do tiroteio que, de tempos em tempos, lhes vinha de fora, ergueram muralha de pedras, atrás das arcadas da entrada. No pátio sagrado da Academia, nos porões heróicos do XI, os estudantes se aglomeraram efusivamente, sem medo da ditadura, e realizaram sessões sucessivas, memoráveis seminários de conscientização política. Contaram com minha quente solidariedade e com o apoio incondicional de mais sete professores da faculdade. Tiveram a colaboração de mestres renomados de outras escolas. Bem me lembro de Florestan Fernandes, de Caio Prado Jr., de Celso Furtado, em tertúlias e debates com meus alunos. O diretor da faculdade se recusou a conferenciar com a diretoria do XI, e requereu a reintegração de posse do edifício. Incontinenti, providenciou força armada para o desalojamento dos estudantes. Polícia e bombeiros romperam, com enorme estrépito e infernal sujeira, a muralha erguida na entrada do prédio. E, logo ali, a força armada encontrou, deitados de costas sobre o chão de pedra do pátio venerável, os estudantes indefesos da eterna Academia. Os militares tiveram que carregá-los até os camburões estacionados no largo, para conduzi-los à delegacia e à prisão. 

TD – Que conselho o senhor daria para a juventude atual? 

Goffredo – Não são conselhos, propriamente. São apelos, creio ; apelos do fundo de meu coração. São apelos de um estudante mais velho, que já andou pelos caminhos da vida, a estudantes moços, que se acham no começo dos caminhos. O primeiro apelo é este : Amem a beleza! Não tenham jamais vergonha de proclamar seu amor pela beleza – pela beleza de hoje, pela beleza de ontem, pela beleza simplesmente, seja com que forma, em que situação, com que data a beleza se apresente. O segundo apelo é este : Tenham como lema : Seriedade e competência! Não acreditem, jamais, que a chamada “modernidade” possa ser biombo da ignorância e incultura. E o terceiro apelo é este : Não permitam que a aspereza da vida emudeça o sonho. Conservem a pureza, apesar de tudo. Não envelheçam, no espírito e no coração.

3 – Imparcial 2001

ENTREVISTA DO

PROFESSOR GOFFREDO DA SILVA TELLES JUNIOR,para o jornal IMPARCIAL dos estudantes da Faculdade de Direito da USP,

em 09 de maio de 2001

Grande Mestre da Academia de Direito do Largo São Francisco, o Professor Goffredo Telles Junior fala aos acadêmicos calouros sobre suas experiências e ponderações sobre o saber jurídico. Formado em 1937, lecionou durante 46 anos na Academia, onde se tornou Professor Catedrático, Professor Titular do Departamento de Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito e Professor Emérito da Universidade de São Paulo. Foi Conselheiro do Conselho Penitenciário do Estado de São Paulo por 30 anos, Deputado Federal Constituinte em 1946, Deputado Federal até 1951, e Secretário de Educação e Cultura da Prefeitura em 1957. Aos 86 anos, com mais de dez obras publicadas, o Professor dá conselhos, orienta e comenta seus livros e a situação política do Brasil ao “IMPARCIAL”. 

IMPARCIAL – O Senhor poderia nos contar um pouco da sua formação intelectual antes de seu ingresso na Faculdade como estudante ? 

Goffredo – Nasci em 1915. Nasci e vivi toda minha infância no centro da Cidade de São Paulo. Mas era um outro tempo. A rua da minha casa, no centro da cidade, era iluminada por lampiões a gás. Imaginem que minha avó, minha mãe, meus tios e um grupo de amigos, em manhãs de sol, montavam a cavalo no jardim de casa e, dali saiam pelas ruas centrais de São Paulo, realizando animados passeios equestres, pela Praça da República, pelo Largo do Arouche, pela Alameda Barão de Limeira, até a 

Barra Funda e até mais longe, em visita às famosas chácaras da vizinhança. Narro estas coisas para que os senhores possam fazer idéia da colossal diferença entre o mundo de minha infância e juventude e o mundo de nosso tempo de hoje. 

Devo dizer-lhes que sempre gostei de ler. Li muito, desde meu tempo de menino. Durante meu curso primário, li Robinson Crusoé, de Defoe ; Uncle Tom´s Cabin, de Stower ; Swiss Family Robinson e Robin Hood. Li e reli a encantadora estória de Mowgli, no Jungle Book , de Kipling. Li O Guarani, Iracema, Ubirajara e O Tronco do Ipê, de José de Alencar. Li Peter and Wendy. Com encantamento, li Coração , de De Amicis, e “L´Oiseau bleu”, de Maeterlinck. E, com delícia, li Os três mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo , de Alexandre Dumas. Há dias, numa entrevista com os “Juizes para a Democracia” , eu fiz referência a um fato sem interesse na ordem geral das coisas, mas que foi importante para mim, pessoalmente. Vou lhes narrar esse fato. Durante meu curso primário no Liceu Franco-Brasileiro, tornei-me um ledor voraz de jornais. O Liceu ficava muito longe de casa, no extremo fim da Vila Mariana, no meio de um campo despovoado. Hoje, tudo aquilo é simples continuação da movimentada cidade. Para chegar lá, eu tinha que tomar dois bondes. A viagem durava hora e meia. Então, para aproveitar o tempo, fui aprendendo a ler os jornais do dia. Assim, durante os últimos anos da década de 20, acompanhei, pelos noticiários dos jornais, a luta política encarniçada entre a tradicional oligarquia governante e a virulenta oposição da chamada Aliança Liberal. Devo confessar que, em 1928 e 29, eu já sentia nascer em mim, uma esperança profunda, secreta, de poder colaborar, um dia, na instituição de uma Democracia verdadeira no Brasil. 

Em 1929, meus pais me matricularam no Ginásio São Bento. Maravilhosa escola, foi este Ginásio, em minha vida ! Eu estava com quatorze anos de idade. Tive notáveis professores. Naqueles anos de São Bento, descobri a filosofia. Esta descoberta foi um deslumbramento para mim. Fui arrebatado pela Filosofia. O Professor Leonardo Van Acker (que ficou meu amigo e mestre a vida inteira) me iniciou nos rigores das Leis da Consequência . Dom Nicolau Flui Gutt me presenteou com a Lógica , do professor Sentroul, e com mais dois livros fundamentais : O ntologie e Logique, do Cardeal Mercier. Enlevado, comprei, na Francisco Alves, três preciosas obras: Le Système de Logique, em dois volumes, de John Stuart Mill ; Logique , do Cardeal Mercier ; e L´Ordre des Concepts ( Petite Logique), de Jacques Maritain. Devo revelar que, cedendo a uma atração irresistível, eu já ia penetrando pela Metafísica. Já falava em “ graus de abstração ”, no “ sêr enquanto sêr ”, em “ ato e potência ”, nas “ quatro causas ”. Lembro-me de que, naquela ocasião, fustigado por uma insaciável curiosidade, li, com extrema atenção, Éléments de Philosophie e Les Degrés du savoir , de Maritain ; Le Thomisme , de Gilson; Le Réalisme du principe de finalité, de Garrigou-Lagrange ; e Socialisme et cristianisme , de Sertillanges. 

Quero dizer a vocês que aquele meu estudo da Filosofia – da Metafísica e da Lógica – no meu tempo de ginásio, me valeu extraordinariamente, para toda a minha vida. Valeu-me no meu curso de Direito, na minha atividade de Advogado, nos meus concursos na Faculdade, na minha missão de Professor, na minha lida de Político, na minha faina permanente de expositor de idéias. 

IMPARCIAL – Professor, como era o ambiente em sua casa, no tempo de sua juventude? 

Goffredo – A casa em que eu nasci, e em que vivi com meus pais durante toda a minha infância e grande parte de minha juventude, sempre foi um centro da intelectualidade brasileira. Olívia Penteado, minha avó e madrinha, foi quem introduziu no Brasil, antes de 1930, a revolucionária pintura moderna , a chamada pintura “futurista” , em grande evidência na Europa. De meu tempo de curso primário e de ginásio, lembro-me de personalidades famosas, que frequentaram a nossa casa. Lembro-me muito bem de Villa-Lobos, Tarsila, Segall, Brecheret, Anita Malfati, Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti, Gobbis, Reis Júnior, Quirino da Silva, Noemia, Warchawschi, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Paulo Prado, Affonso de Taunay, Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia, Paulo Setubal, René Thiollier, Cândido Motta, Souza Lima, Guarnieri, Minhoni, Antonietta Rudge, Guiomar Novaes, Magdalena Tagliaferro, Aloysio de Castro, Guilherme de Almeida, Procópio Ferreira, Piolin e Alcebiades. Até me lembro da menininha Bibi Ferreira (filha de Procópio), numa festa de aniversário, a se exibir maravilhosamente, como eximia dançarina, no amplo hall central. Em 1924, a esse grupo se uniu o célebre poeta suíço-francês Blaise Cendrars. 

De alguns desses frequentadores, é verdade, tornei-me amigo. Tarsila, por exemplo, foi minha professora de desenho, durante um ano inteiro. Lasar Segall atraía minha atenção pela sua extrema simplicidade, sua maneira atenciosa de falar comigo, que não era mais do que um menino de escola. Tinha olhos muito abertos, infinitamente curiosos. 

A Brecheret, sempre me senti ligado por sentimentos complexos de verdadeira camaradagem e de profunda admiração. Eu era um mero estudantinho de ginásio, mas ele conversava comigo com seriedade. Abriu-me seu ateliê, sem reservas nem restrições. Quantas vezes empurrei a portinhola da rua e penetrei em seu arborizado jardim, ou em seu grande salão escancarado. Ali, eu me mantinha em religioso silêncio, a contemplar o artista em plena criação. Um dia, surpreendendo meu pasmo, ao ver surgir da pedra bruta a figura de um rosto de pensador, ele me disse : “Não se impressione, eu não faço quase nada. O rosto já está na pedra. Eu apenas sopro com amor, para assustar a poeira.” 

V illa-Lobos era, para mim, no princípio, apenas uma vaga lenda. Mário de Andrade falava dele. Depois, eu o vi, no Teatro Municipal, tocando violoncelo, com sua mulher ao piano. Eu só vim a conhecê-lo realmente, nos chás das terças-feiras em nossa casa. Um dia, a pedido de minha avó, escolheu e comprou, na Del Vecchio, um violão para mim. Villa-Lobos foi meu professor de violão. Em temporadas na nossa Fazenda, no interior de São Paulo, ele era um companheiro admirável. Ele construía e empinava enormes “pipas”, enormes papagaios, que divertiam todo mundo. No amplo gramado, ensinou à meninada a arte da capoeira. Desde então, por toda a vida, de perto e de longe, acompanhei sua gloriosa carreira. Era um gênio, um extraordinário gênio. Quando fui Secretário da Cultura, em 1957, realizei, no Teatro Municipal, em sua homenagem, a Semana Villa-Lobos . Conservo, como relíquia, um telegrama em que ele se declara meu “imenso amigo” . 

Quantas lembranças mais, minha memória conserva ! Lembro-me, por exemplo, de minhas excursões, a Santos, com Paulo Setubal – que se celebrizara com A Marquesa de Santos – , para reuniões deliciosas de escritores diversos, na casa do poeta Martins Fontes. Também me vem à memória meus colóquios com Aloysio de Castro, “imortal” famoso da Academia Brasileira de Letras. E lembro-me da tarde em que ele me trouxe, de presente, o volume das Odes , em latim, com a tradução em português. Com isto, Aloysio de Castro me introduziu na poesia de Horácio e me despertou para a poesia de Virgílio, de Lucrécio … 

IMPARCIAL – Agora, Professor, diga-nos como foi seu Curso na Faculdade de Direito. Goffredo – Terminei o ginásio em fins de 1932, depois da Revolução Constitucionalista 

de São Paulo. Saltando o Colégio Universitário, como era permitido por lei, prestei o Exame Vestibular e matriculei-me no 1º ano da Faculdade. Narro estes fatos no meu livro “A Folha Dobrada” . Os senhores sabem o que significa, no coração do moço, a vitória, o orgulho da conquista do título de estudante da famosa Academia. Meu pai me disse que ele, logo no seu primeiro ano da Faculdade, havia lido Le Droit Pur, obra célebre de Edmond Picard. Achei um exemplar desse livro, no porão de um alfarrabista. Nessa noite, não dormi. Penetrei fundo no “país do Direito”, descrito por Picard. Quando, às sete e meia da manhã, entrei na minha Escola, com a vibração comum dos calouros, eu levava o sentimento de já ser um pouco responsável pela ordem jurídica no meu País. 

O estudo do Direito imediatamente me fascinou. A ordem jurídica se apresentou, a meus olhos, como a disciplina da convivência e a garantia da liberdade . O que desejo enfatizar, neste momento, é que, na Faculdade, aprendi a amar o Direito. Passei a amar o Direito como quem ama a liberdade e a justiça. O próprio edifício de minha Academia passou a ser o prolongamento de minha casa. 

As leis se apresentaram a meus olhos como extraordinários acervos de respostas , dadas pela experiência dos séculos e pela prudência dos legisladores, às perguntas que permanentemente fazemos, no correr simples de nossas vidas quotidianas. Como casar ? Como comprar um terreno ? Como cobrar o que nos é devido ? Como saldar um compromisso ? Quem é herdeiro ? Que pena imputar ao delinquente ? O Direito responde. O que logo entendi foi que o Direito informa sobre o que podemos fazer e o que não devemos fazer. Ele nos indica o caminho. E eu me convenci de que o Direito tinha uma natureza informativa, instrutiva, conselheira, pedagógica. Convenci-me de que o Direito é feito para servir o homem, e não para tiranizá-lo. É feito para dar-lhe segurança , e não para oprimi-lo. Convenci-me de que o Direito é amigo do homem. Logo entendi que o Direito não é coativo. A coatividade pertence, não ao Direito, mas aos lesados pela violação das leis. Os lesados é que ficam autorizados a exercer a coação, para fazer cumprir a lei violada. E sem demora, senti que a vida não valeria a pena se viver conforme o Direito fosse viver coagido. 

É evidente que meu estudo de Direito – com todas as resultantes convicções sobre a garantia da liberdade – acoroçoou meus pendores para a política. Em meu livro “ A Folha Dobrada ”, eu narro tais propensões de meu espírito. Além dos livros do curso, que eu estudava com devoção, havia Rousseau, com O c ontrato social e seus três Discursos. Havia Montesquieu, com O espírito das leis . Havia Maquiavel, com O príncipe . E havia os marxistas e os trotskistas. Riazanov me introduziu no pensamento de Marx e Engels. De Marx, li a primeira parte de O capital. De Engels, li o Anti-During. Li Lênin e Trotski. Li Plekhanov, Bucarin, Kautsky, Rosa Luxemburg. Depois, li Gramsci, Althusser, Lukács. Também li Freud e Jung. Li Uma nova Idade Média , de Berdiaeff, e a Decadência do Ocidente, de Oswald Spengler. Livro precioso para nós, estudantes, foi A história do socialismo e das lutas sociais, de Max Beer. Estas leituras não me fizeram esquecer três pronunciamentos importantes da Igreja Católica: a encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, sobre a condição dos operários; a encíclica Quadragésimo Ano , de Pio XI, sobre a restauração da ordem social; e a encíclica Divini Redemptoris , também de Pio XI, sobre o comunismo ateu. Lembro-me de que, em 1936, li Atualidades de um mundo antigo, obra preciosa de Miguel Reale, que, naquela ocasião, ainda estava longe de ser professor da Faculdade. 

IMPARCIAL – Professor, a literatura de ficção, os romances e a poesia, tiveram, acaso, algum lugar em sua vida ? 

Goffredo – Há dias, falando para a Associação dos Juizes , fiz, sobre este assunto, uma confissão. Vou repeti-la para vocês. O romance, meus amigos, sempre existiu na minha vida. Romances reais, vividos por mim, e os romances ideais de meus luminosos romancistas. E não só isto. Creio poder afirmar que havia espírito de romance em alguns episódios que coloriram minha infância e minha juventude. O romance – é verdade – sempre embalou meu coração. Embalou, sim, mas tanto foi causa de grandes felicidades como de desolações arrasadoras. Fui poeta – vejam só – no meu tempo de ginásio. Fui orador, no Grêmio Literário São Bento; fui um veemente debatedor de ideais políticos . Não me envergonho de todas essas coisas. Aliás, ainda tenho algo mais a confessar. Quando eu entrava para os meus quinze anos, assaltei a biblioteca de meu pai. Então – meu Deus ! – tiveram início minhas grandes leituras. Ou seja, tiveram início minhas leituras dos grandes romancistas do mundo. Vou dizer-lhes o que aconteceu. Vou repetir o que disse para Associação dos Juizes . 

A biblioteca de meu pai não era grande, mas muito selecionada, muito bem encadernada, com obras desde os clássicos gregos e latinos, até as mais modernas. Fascinante era ela, a meus olhos, e para minha imensa curiosidade. Comecei retirando das estantes livros de Maupassant. Deslumbramento me causaram aquelas estórias. Eu era muito jovem, e as tramas de amor ali urdidas, narradas deliciosamente, encantaram a inocência de um menino dos anos 30. Creio que a meninada de hoje reagiria de maneira diferente. Aliás, a meninada de hoje talvez não queira ler aquelas “velharias”. 

Quando eu soube que Maupassant costumava submeter seus originais a Flaubert, seu mestre e amigo, fui direto à Madame Bovary … O livro causou impacto, no coração do ginasiano. Meu pai percebeu tudo. Com infinito amor, ele aproveitou a oportunidade para introduzir-me nos mistérios de uma arte sublime, que é a arte de escrever bem. Ele era poeta; tinha uma alma voltada para a beleza. Perlustrando comigo as páginas de Madame Bovary, chamou minha atenção para o extraordinário poder de uma redação primorosa. Fatos comuns da vida se transformam, naquele livro, em romance universal. Flaubert escrevia, como se sabe, com exatidão e firmeza, num estilo enxuto, colorido, soberbo. Sua linguagem era simples, precisa, sóbria, sonora. Depois, li Trois Contes . Li e reli. Tocado pelo feitiço daquelas narrativas, fui entendendo, cada vez melhor, os ensinamentos de meu pai. Depois de Trois Contes, li S alammbô, que me causou, como os anteriores, profunda impressão. Creio que esses livros foram os que me abriram caminho para a leitura, mais tarde, de muitas obras-primas clássicas, da literatura francesa, como as de Rabelais, Montaigne, Balzac, Bossuet, Victor Hugo, Chateaubriand. 

Antes desses clássicos, os livros que imediatamente me atraíram foram os de Anatole France. O primeiro, L`Ile des pingoins , me surpreendeu: completamente inovador, primoroso na linguagem, cativante pelos fatos narrados e pela forma com que eram apresentados. Então, aconteceu o inevitável. Terminando a leitura do primeiro, atirei-me, fascinado, às demais obras desse extraordinário escritor. 

Sob o olhar um pouco preocupado de minha mãe, eu me deixava levar pela minha insaciável curiosidade, e me punha a ler obras renomadas, embora tidas como “impróprias”, naqueles velhos tempos, para um menino de minha idade. Então, dei com os livros de Eça de Queiroz. Li A relíquia. Empolgado, li O Primo Basílio e O crime do padre Amaro. Depois, li A cidade e as serras, a Correspondência de Fradique Mendes, Os Maias, O mandarim. Com emoção, li e reli seus Contos : Singularidades de uma rapariga loura, Frei Genebro, José Matias e, ah ! , O suave milagre. 

Depois… Depois… Não parei mais de lê-los, aqueles romancistas iluminados, contadores dos episódios de que é feita a existência dos homens. 

Quando eu cursava o quinto e último ano da Faculdade, em 1937, meus padrões de excelência, para a prosa em geral e para o romance em particular, já estavam claramente estabelecidos. Com eles, eu me esmerava por distinguir entre o que era bom e o que era excelente . O assunto é de grande interesse, porque há uma confusão generalizada entre livros excelentes e livros “ best sellers”. Principalmente para estudantes de nossas Universidades, parece-me útil conhecer o tipo e o nível dos livros que um leitor exigente qualifica de excelentes. 

Por curiosidade, vou mencionar alguns desses famosos e diletos livros, que eu li na minha mocidade e que se acham no meu altar da excelência : Le Désert de l`amour, Le baiser au lepreux, Le noeud de vipères e Thérèse Desqueyroux, de François Mauriac; Climats , de André Maurois ; La promesse de l`aube , de Romain Gary ; Sob o sol de Satã , de Bernanos ; L`étranger e La peste , de Camus ; Ulysses , de Joyce ; La porte étroite , de Gide ; Le rouge et le noir , de Stendhal ; Le père Goriot , de Balzac ; Os miseráveis , de Victor Hugo ; A Sonata de Kreutzer, de Tolstoi ; Crime e castigo, de Dostoievski ; Lady Chatterley´s lover , de Laurence ; La romana, de Alberto Moravia ; Il deserto dei tartari, de Dino Buzzati ; Cien años de soledad e El amor en los tiempos del cólera, de Gabriel García Márquez ; Le Guépard , de Lampedusa ; Sanctuary e Light in august , de William Faulkner ; The heart of the matter , de Graham Green ; The shoes of the fisherman, de Morris West ; The old man and the sea, de Ernest Hemingway ; Of mice and men, The grapes of wrath e The pearl, de John Steinbeck ; The catcher in the rye , de Salinger ; The narrow corner, de Somerset Maugham ; Contos da montanha e A criação do mundo, de Miguel Torga; O trigo e o joio e Domingo à tarde, de Fernando Namora. 

IMPARCIAL – E na literatura brasileira, Professor, que romances o Senhor qualifica de excelentes ? 

Goffredo – Para mim, o romance excelente , no Brasil, nasceu com Machado de Assis. Nasceu com Quincas Borba , em 1891, e com Dom Casmurro , em 1889. A essa extraordinária dupla, acrescentemos Memórias póstumas de Brás Cubas . Depois, o romance excelente renasceu com Graciliano Ramos: com São Bernardo , em 1934, e com Angústia , em 1936. Depois de Graciliano, a meu ver, o romance excelente , no Brasil, só surgiu na década de 1950, e não mais deixou de desabrochar em nossas letras. Surgiu triunfante, com Jorge Amado, Josué Montello, Guimarães Rosa, Raduan Nassar, Annibal Machado, João Ubaldo Ribeiro, José Cândido de Carvalho, Ciro dos Anjos, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Darcy Ribeiro. 

IMPARCIAL – E a poesia, Professor ? Que pensa o Senhor sobre os grandes poetas do mundo ? 

Goffredo – Sempre amei a poesia. Há dias, numa entrevista com Juizes, segredei que eu próprio sempre escrevi poemas. Nada mais natural. Na alma do jurista, costuma haver a inspiração de um poeta. Vocês sabem que o Pátio de pedra de nossa Academia sempre foi um jardim onde desabrocham as flores encantadas da poesia. Todos nós sentimos, no fundo de nossos espíritos, que o sonho da justiça mantém misteriosa afinidade com o idealismo da harmonia entre os seres. E este idealismo é um sentimento de amor. Ora, o amor – bem sabemos – é o manancial da poesia. E é a fonte original da disciplina da convivência, ou seja, da ordem jurídica. 

IMPARCIAL – Professor , queira nos revelar os nomes de seus poetas preferidos. Goffredo – Meus poetas preferidos ? Receio que os poetas meus não sejam os poetas de vocês. Não são certamente os poetas dos chamados ”modernistas” de hoje. Com um certo receio, mas com profunda convicção, vou revelar os nomes eternos dos poetas de minha devoção. Ouçam: Verlaine, Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Glatigny, Musset, Lamartine, Valéry, Claudel, Rilke, Poe, Eliot, Fagundes Varela, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Casimiro de Abreu, Raimundo Correia, Vicente de Carvalho, Alberto de Oliveira, Olavo Bilac. Desde meu tempo de ginásio, eu incluía na estante de meus encantados, bem ao alcance de minhas mãos, A Fada Nua e O Mar da Noite, de meu pai. 

Com o passar dos anos, outros maravilhosos poetas ampliaram o rol fascinante de meus poetas. Para ali vieram Manuel Bandeira, Drummond, Cecília Meireles, Augusto Frederico Schmidt, Mauro Mota, Guilherme de Almeida, Paulo Bomfim, Hilda Hilst. 

Depois, muito depois, num momento de minha vida, senti-me arrebatado pelos poetas ingleses: Wordsworth, Keats, Tennysom, Shelley. Quando eu cursava o terceiro ano da Faculdade, li A Divina Comédia e o tratado Da Monarquia . Lembro-me que transcrevi, na capa de um de meus cadernos, a célebre definição de Dante: “O Direito é uma proporção real e pessoal, de homem para homem, que, sendo conservada, conserva a sociedade, e, sendo corrompida, a corrompe”. 

IMPARCIAL – Voltemos agora para a sua atividade política, durante seu tempo de estudante, na Faculdade de Direito. Estamos informados que o Senhor foi integralista. É verdade ? 

Goffredo – Fiz política intensa durante todo o meu tempo de estudante. Minha primeira manifestação política foi minha participação ativa na Revolução Constitucionalista de 1932. Nessa ocasião, na guerra de São Paulo, contra a ditadura implantada em 1930, fui soldado na Frente Norte das operações, em defesa de uma Constituição democrática para o Brasil. 

Desde o primeiro ano na Faculdade, em 1933, eu andava descrente dos partidos políticos de minha Terra. O mesmo acontecia com um grande número de meus colegas. Eu descrevo todo o nosso drama político daquele tempo, em páginas de meu livro A Folha Dobrada . Ali, relembrei que muitos de nós, durante o curso, se imbuíram de uma rica literatura progressista. Alguns se inscreveram no Partido Socialista Brasileiro, que acabava de ser criado. Alguns tornaram-se troksistas. Mas a maioria não se animava a aderir ao pensamento da extrema-esquerda. Quanto aos regimes totalitários da extrema-direita, em vigor na Itália e na Alemanha, tais formas de governo, para todos nós, eram expressões de intoleráveis ditaduras. 

Grande número de estudantes, entre os quais eu me incluía, não era marxista, não era trotskista e, concomitantemente, não se conformava com a politiquice rasteira da burguesia. O que queríamos era uma terceira posição . 

Mas essa terceira posição não podia ser a do fascismo. 

Queríamos uma terceira posição , sim, mas uma posição que fosse decididamente contra o totalitarismo de esquerda e contra o totalitarismo de direita, e também, contra o alheamento incurável da burguesia. Queríamos uma linha política intermediária, que fizesse do Estado não um fim , nem um gendarme , mas um meio , um instrumento a serviço do ser humano. Queríamos uma postura que fizesse o Poder emanar do Povo, para assegurar a justiça, no eterno conflito entre fortes e fracos. Queríamos um rumo democrático atualizado, condizente com as modernas tendências trabalhistas. 

Para nós, a Democracia era o regime político que procura assegurar a permanente penetração e influência da vontade dos governados nas decisões legislativas dos governantes. 

Essa penetração e influência – essa participação – se deveria fazer por meio da representação política. Nós sustentávamos que não há verdadeira Democracia sem autêntica representação política. E que não há autêntica representação política, se esta não assegura a permanente penetração e influência da vontade dos cidadãos nas leis promulgadas pelo Governo. 

Dizíamos (e eu continuo a dizê-lo até hoje) que o desafio lançado aos constitucionalistas dos povos livres estava na seguinte pergunta: qual é a formula constitucional de uma autêntica representação política ? 

Esta era, sem dúvida, a pergunta crucial, que nós nos fazíamos. O que queríamos era que o Brasil fosse uma Democracia, mas não uma Democracia de mentira. 

Foi então que, para muitos de nós, estudantes de Direito, apareceu o Integralismo, como a solução que estávamos buscando. A nossos olhos, o Integralismo, nascido logo após a derrota da nossa Revolução de 1932, era, precisamente, aquela terceira posição , aquela procurada linha de centro, contrária a todos os fascismos e contrária ao liberalismo da burguesia. Esta nova posição foi exposta em documentos solenes. E se acha definida claramente no meu primeiro livro, Justiça e Júri no Estado Moderno , escrito em 1937. 

Na verdade, éramos socialistas, embora contrários ao materialismo dialético. Éramos defensores de um socialismo espiritualista. Tínhamos na mente um paradigma de Democracia Representativa , sem mitos, sem ficções ; de uma Democracia Participativa , em que a vontade autêntica do povo pudesse, de fato, se introduzir nas deliberações dos governantes. Ora, a vontade do povo – no nosso entender – não significava vontade da massa . O povo não é massa ; não é um todo homogêneo , como a massa do pão. O povo é heterogêneo e complexo. É feito de grupos sociais, de coletividades naturais, criados simplesmente pelas necessidades da vida normal das pessoas. Segundo nosso pensamento, a expressão vontade dos governados, usada na definição de democracia, deveria ser entendida como vontade organizada dos governados. E vontade organizada dos governados significava: vontade dos governados expressa por seus órgãos legítimos, em cada caso de ordenação legislativa. 

Que órgãos, em verdade, seriam mais legítimos do que os grupos ou corpos , sociais, que espontaneamente germinam e medram na sociedade, como natural resultado das exigências da vida ? 

Pois bem, essa convicção acerca do pluralismo dos corpos sociais, e sobre a necessidade de fazer valer a vontade desses corpos nas decisões legislativas dos Governos, conduziu o Integralismo à conclusão de que era preciso formar um Poder Legislativo constituído de deputados eleitos pelo povo , isto é, eleitos pelos corpos sociais, ou coletividades, de que o povo é naturalmente constituído. O que o Integralismo queria era que os Deputados estivessem vinculados às naturais coletividades de eleitores, e deles fossem representantes de fato e de direito, com mandato certo e definido. 

O Integralismo queria uma Câmara Corporativa, que fosse, por assim dizer, a miniatura, a imagem reduzida, da sociedade global. 

A Câmara Corporativa, idealizada pelo Integralismo, nada tinha de parecido com a Câmara Corporativa da Itália Fascista. Na Itália , a vontade do Duce – e só ela – era o que se tinha como a vontade do povo. O Poder Legislativo, na Itália fascista, era o Poder do Duce. A Câmara Corporativa na Itália fascista ficou reduzida a uma Câmara de Homologação das decisões de Mussolini. Ora, essa Câmara Corporativa italiana tinha missão oposta à missão da projetada Câmara Corporativa do Integralismo. O que o Integralismo queria era uma Câmara feita para ser instrumento das vozes do povo, independente das vontades do Poder Executivo. Uma Câmara que jamais se conformaria de ser a ratificadora oficial das deliberações do Presidente da República. Jamais aceitaria a degradante missão de conferir a falsa aparência de Democracia a um qualquer regime autoritário. O que o Integralismo idealizára era uma Câmara capaz de refreiar, em nome do povo, quaisquer desmandos do Poder Executivo. 

A confusão maliciosa entre os dois corporativismos, urdida por inimigos de morte do Integralismo, causou a pecha de fascistas e totalitários, atirada contra os integralistas em geral. Esta mentirosa tacha constituiu um injustíssimo handicap , com que tive que arcar, desgraçadamente, em toda a minha vida. Em verdade, o nosso Integralismo, o integralismo dos universitários, o meu integralismo era radicalmente anti-totalitário, antifascista. Eu, pessoalmente, sou o avesso do fascista, o adversário congenial de todos os governos de força, o adversário de todo tipo de ditadura. 

Na prática, o Integralismo foi, precisamente, um movimento de insurreição contra o individualismo burguês e contra a oligarquia capitalista, ou seja, contra tudo aquilo que os velhos políticos representavam. 

Muitos anos mais tarde, em 1962, o advogado José Gregori perguntou ao professor San Tiago Dantas (que era Ministro da Fazenda, no Governo João Goulart) o motivo de sua filiação ao Integralismo, em seu tempo de mocidade. O famoso jurista respondeu-lhe: “Foi em razão de nosso sentimento antiburguês”. 

A mim, parecia que a Ação Integralista era o movimento capaz de remir o Brasil. Era, a meus olhos, o movimento de estruturação e moralização de meu País. Era o movimento de construção nacional, com que eu vinha sonhando desde meu tempo de Ginásio. 

Eu tinha dezessete anos de idade quando, em 1932, ingressei na Ação Integralista Brasileira. Eu tinha vinte e dois anos quando Getúlio Vargas, em 1937, fechou todos os Partidos, inclusive a AIB. Mas, o que mais quero dizer-lhes, queridos amigos, é que aqueles meus cinco anos de Faculdade , com muito estudo e com atividade política ininterrupta , encheram minha juventude de encanto e beleza. 

Nossa agremiação política logo se erigiu em imenso movimento nacional, grande frente de luta dos trabalhadores do Brasil e de intelectuais revolucionários. Dentro de nosso movimento, todos nós éramos iguais, todos nós éramos companheiros. Levávamos a sério a revolução interior. Buscávamos nos manter imunes à corrupção ambiente. Nossa intenção era ser limpos de coração, retos de atitudes. Queríamos ser sempre verdadeiros, responsáveis, honrados. Nós, estudantes, nos tornávamos pregadores de nossas idéias. Tínhamos a convicção de que estávamos numa campanha de redenção nacional. Éramos porta-vozes de nossa doutrina de reforma da Democracia e de desenvolvimento do Brasil. Cada um de nós diligenciava difundi-la em seu meio familiar, em seu ambiente de trabalho, em sua escola, em seus agrupamentos de lazer. Nossos oradores falavam por toda parte. Nos sábados e domingos, nos feriados prolongados e durante férias, íamos para o interior, de trem, sempre em vagões de segunda classe. De uma cidade a outra, viajávamos de jardineira , ou na boléia dos caminhões. Certa vez, meu irmão Ignácio e eu viajamos num vagão de gado. Em cada ponto de destino, procurávamos a delegacia de polícia ou o posto policial, pedíamos a autorização competente para as nossas exposições em logradouros públicos. Convocávamos o povo com alto-falantes ou pelas rádios locais. Falávamos nos coretos dos jardins, nas salas de cinema e de teatro, nas escolas, nos clubes, nas portas de fábricas, nos pátios de estações de estrada de ferro, nas igrejas, nos bares. Ás vezes, falávamos em plena rua, trepados sobre caixotes. Nas zonas rurais, falávamos sobre a própria gleba, a sombra de alguma árvore. Em duas ou três oportunidades, durante a realização de grandes comícios, fomos agredidos a bala, p0r adversários não bem identificados. Tivemos nossos mortos, nossos feridos. Realizávamos também reuniões nas casas de uns e de outros, ou em torno das mesas de um clube ou de um restaurante. Recolhíamos as assinaturas e os endereços de novos adeptos. De volta às nossas casas, chegávamos cansados, sujos e felizes. 

IMPARCIAL– Para o Sr. , qual o verdadeiro valor de estudo do Direito ? 

Goffredo – Vocês sabem que, graças a Deus, eu estudei Direito com paixão, e graças a Deus estudei Direito na Academia do Largo de São Francisco. Isto foi fundamental. Eu quero felicitar vocês, que estão no primeiro ano desta escola, desta Academia que vocês escolheram e estão cursando. Vocês tiveram que vencer um duro obstáculo, que foram os exames vestibulares e, portanto, tiveram uma vitória importantíssima. Eu os felicito vivamente. Felicito-os, em verdade, pela opção que fizeram, para seu curso universitário. Vocês optaram pelo estudo da DISCIPLINA DA CONVIVÊNCIA. 

Vejam que eu emprego a palavra disciplina no singular, como se vocês estivessem estudando uma só disciplina na Faculdade de Direito. Eu quero dizer a vocês que não exagero. É verdade, vocês estão estudando muitas matérias, nos cinco anos do Curso, mas reparem : todas as matérias versam, em última análise, a Disciplina da Convivência Humana. 

Conviver é da condição dos seres humanos. Para nós, seres humanos, viver é conviver. Ora, esta convivência exige ser disciplinada. Há diversas disciplinas para a convivência : a moral, a religião, os usos e costumes ; mas a disciplina jurídica da convivência é extraordinariamente importante, pois quando é violada, ela mesmo confere ao lesado por esta violação a autorização de exigir o cumprimento da norma violada. Só a disciplina jurídica tem esta qualidade, daí sua importância. 

Vocês estão estudando a disciplina da convivência humana . Estudo importantíssimo, este ! Vocês aprendem durante 5 anos o que o cidadão pode e o que o cidadão não deve fazer . Quando se formam recebem um diploma. Este diploma é uma chave. Preciosa chave ! Preciosa em verdade, pois é uma chave que abre muitas portas. Se vocês quiserem ser advogados, juizes, promotores públicos, delegados, vocês tem tudo para isto. Mas não é só isto. Se vocês quiserem ser comerciantes, jornalistas, políticos, ou o que quiserem ser na vida, vocês são mestres da convivência. Vocês sabem conviver melhor – melhor do que aqueles que não estudaram a disciplina da convivência . Esta é uma vantagem extraordinária na vida. É uma vantagem para a convivência na família, na escola, no emprego, no clube, no condomínio, até no metrô, no ônibus. Não é atoa que eu os cumprimento por terem optado pelo estudo desta disciplina. Vocês se tornam um pouco responsáveis pela ordem no país, pois quem estudou e é formado em Direito sabe como deve ser a convivência humana dentro de nosso País. 

Por força desta mesma razão, abre chaga no seio da sociedade, o bacharel corrupto. Seja advogado, seja juiz, promotor de justiça, delegado de polícia, o bacharel corrupto é uma triste figura. É traidor de seu diploma, traidor da categoria profissional a que pertence. É traidor da ordem instituída – dessa ordem de que ele é conhecedor diplomado; de que ele é defensor, esteio, interprete. O bacharel corrupto é traidor da Disciplina da Convivência , da qual ele é natural sentinela e guardião. 

Esta disciplina do Direito, meus amigos, merece uma meditação, pois não é inventada, não é uma fantasia, não é uma criação arbitrária de legisladores. É uma disciplina fundada na experiência da vida. Uma experiência centenária, milenária, que o ser humano foi adquirido lentamente, no longo decurso da existência humana sobre a face da Terra. 

E reparem: antes de mais nada, cada um de nós tem a sua experiência pessoal, a sua própria experiência de conviver com os semelhantes. Esta experiência pessoal é preciosa, pois ela é um primeiro material para nossa meditação, ao estudarmos o Direito em nossa Faculdade. 

Preciosa, sim, mas ela não é suficiente, para quem almeja ser um verdadeiro jurista. Eu, sempre recomendei aos meus alunos que estudem, com dedicação, todas as matérias que se ensinam na Faculdade ; que leiam os livros de nossos grandes Professores de Direito. Mas que não se limitassem a isto. Sempre recomendei que lessem, também, os grandes romancistas do mundo. A mim parece ser isto muito valioso, pois é um modo de acrescentar, à nossa experiência pessoal, as experiências dos personagens criados pelos gênios da literatura de ficção. Por exemplo, julgo de grande proveito, para estudantes de Direito, a leitura dos livros como Madame Bovary de Flaubert; os contos de Maupassant; O crime de Silvestre Bonnard , de Anatole France; Os miseráveis , de Victor Hugo; Crime e Castigo , de Dostoievski, A Relíquia , de Eça de Queiroz; Quincas Borba , de Machado de Assis; Angustia , de Graciliano Ramos; Os velhos marinheiros , de Jorge Amado; Uma varanda sobre o silêncio , de Josué Montello; O sorriso do lagarto , de João Ubaldo Ribeiro; Lavoura Arcaica , de Raduan Nassar. 

Eu quero dizer a vocês que a vida me ensinou muita cousa – uma vida longa e vivida nos mais diversos setores – eu conheci o bem e o mal muito de perto ; e , depois, minha experiência de advogado, minha experiência de conselheiro penitenciário do Estado de São Paulo durante 30 anos, a minha experiência de político, pois no fundo eu fui político a vida toda. Fui deputado Federal, fui deputado constituinte (fui eleito em 1945 e trabalhei na Constituição de 1946). Trabalhei muito no Congresso Nacional. Depois , a luta terrível e perigosa durante os anos de chumbo da ditadura militar. Isto tudo está descrito no meu livro A Folha Dobrada . 

Esta experiência me ensinou muita coisa. Devo dizer que ela deixou no meu espírito algumas marcas que cada vez foram tomando importância e se iluminaram para mim. Por exemplo, eu aprendi, com as diversificadas convivências com seres humanos, que a ordem na sociedade se funda, em princípio, num sentimento de amor pelo próximo. Aprendi que esse amor é que , em verdade , faz nascer a disciplina da convivência , isto é , que faz nascer a ordem jurídica. Eu não tenho nenhum receio de dizer que eu vejo nesse amor a fonte natural e profunda do Direito. 

Quando um legislador elabora sua lei, ele poderá não estar pensando nesse amor, mas se for um pensador , e se meditar sobre sua obra, verá que a sua lei visa melhorar a ordem. Mas por quê melhorar ? Ele quer melhorar a convivência. Mas por quê ? porque ele ama o próximo como ele quer que o próximo o ame. Vejam que não é apenas respeito, é mais do que respeito, é amor. 

IMPARCIAL– O Senhor diria que o amor é uma fonte do Direito, talvez uma fonte da sociedade humana ? 

Goffredo – Quando eu falo sobre este assunto, sempre me vem à mente aquela passagem de um livro antigo, que todos nós conhecemos muito bem, o livro que relata o episódio daquele moço aflito que encontrou pelo caminho um homem seguido por outros, e que ele reconhece imediatamente, e do qual se aproxima e, muito aflito pergunta : “Mestre, que devo fazer para merecer o céu ?”. E Jesus responde : “Ama teu próximo como a ti mesmo” . Esta norma não é jurídica, vocês sabem; ela não é jurídica porque, se for violada , ninguém fica com o direito de exigir seu cumprimento. Mas ela é a norma fundamental, a norma primeira, a fonte original, a matriz de todas as normas jurídicas. Esta é minha convicção profunda, a certeza dominante neste velho coração de professor. 

IMPARCIAL– O Senhor poderia descrever a evolução das suas idéias jurídicas na sua obra ? 

Goffredo – Eu andei descrevendo minha experiência em meu livrinho A Folha Dobrada que levei quase 9 anos escrevendo. Não era meu plano escrever este livro, eu estava escrevendo a Iniciação na Ciência do Direito , que é um resultado de meus estudos, de minhas reflexões e de minha longa experiência docente na Faculdade de Direito. Eu lecionei 46 anos na Faculdade de Direito. Eu fui procurando aprimorar as minhas aulas à medida que os anos foram passando. 

Eu verifico que à medida que envelhecemos vamos nos enriquecendo de passado. Os fatos da vida não são como água da chuva que cai sobre as folhas e escorrem para os rios, para o mar. Não ! Os fatos da vida nos atingem, mas não passam; ficam em nós com a forma de lembranças. Essas lembranças formam um patrimônio espiritual, que nos deve conduzir na vida, e que nos ajuda a procurar melhorar o sêr que somos. 

Dois livros meus exprimem a fase última de meu pensamento. O primeiro se chama O Direito Quântico ; o segundo se chama Ética – Do Mundo da Célula ao Mundo dos Valores. 

Vejam o que aconteceu. Na década de 60, fui surpreendido com as extraordinárias descobertas dos sábios biólogos, principalmente de Crick e de Watson, que , em 1953 , publicaram dois artigos revelando uma coisa que o mundo absolutamente não conhecia : o patrimônio genético no núcleo da células, isto é, o que chamamos DNA. 

Eu tomei conhecimento dessas descobertas a partir de 1965, e fiquei impressionadíssimo, pois percebi que a descoberta do patrimônio genético alterou completamente o nosso conceito de responsabilidade . Ora, a responsabilidade é objeto central da ordem jurídica. Senti que estas descobertas biológicas se projetavam sobre a disciplina do Direito. Em 1970 escrevi dois artigos sobre o assunto. E em 1971 e em 1988, publiquei os mencionados livros. 

É interessante lembrar que os juristas daquele tempo me julgaram um fantasista, e diziam que eu estava entregue a quimeras. Um Professor da Faculdade de Direito me disse uma vez : “Olha Goffredo, nós sabemos muito bem o que é direito público e direito privado , o que é direito subjetivo e direito objetivo, mas direito quântico , que loucura ! Esse direito ninguém conhece”. Ele sorriu, eu também sorri, e disse : “Você não perde nada por esperar ! ”. Realmente, hoje, qualquer soldadinho da polícia sabe o que é o DNA. E todos nós sabemos o que as predisposições genéticas representam no comportamento das pessoas. 

Todos nós sabemos que tais predisposições são as causas pela qual uma pessoa é Villa-Lobos, outra Segall, outra Castro Alves, outra Clovis Bevilacqua; pela qual uma pessoa se inclina para as artes, outra para a medicina, outra para a engenharia, outra para o Direito, outra para o comércio, outra para o jornalismo, outra para a docência, outra para a política. 

Hoje, o que sabe, com certeza total, é que cada sêr vivo tem seu particular patrimônio genético – seu particular receituário de genes. O que se sabe é que, no sêr humano, as predisposições genéticas definem o que há de mais fundamental naquilo que se chama personalidade . 

É evidente que um patrimônio genético atua de maneiras diferentes em circunstâncias diferentes. Fatores ambientais, físicos e culturais, interferem em muitas manifestações do patrimônio genético. O que decide da ação das pessoas, em cada momento da vida, é a interação das predisposições naturais dos seres com o ambiente em que efetivamente vivem. De fato, “os genes não selam o destino”. O que fazem é condicionar o destino. 

E devo dizer a vocês, neste depoimento sincero a estudantes de minha Academia, que eu sinto, eu vejo, no sêr humano , em alguns de seus anelos, de suas aspirações, até de certos impulsos, algo mais, algo além de suas predisposições genéticas, algo que tem, misteriosamente, a marca de um ente diferenciado, o sinal distintivo do humano , talvez inexplicável pela ciência, e que parece refletir o verbo divino. Creio não ser uma exorbitância, uma impropriedade, dizer que, nessa marca, nesse sinal, reside o que chamamos de livre-arbítrio. 

IMPARCIAL– Mas, Professor, que influência tiveram as descobertas da Biologia em seu pensamento jurídico ? 

Goffredo – No meu espírito, uma certeza resultou de tudo quanto eu vinha observando e aprendendo. 

Certifiquei-me de que a Biologia e a Ética, a Biologia e o Direito se entrelaçam indissoluvelmente. Mais do que isto : essas ciências são reciprocamente complementares porque os bens soberanos do espírito humano desabrocham sobre patrimônios genéticos condicionantes. Em verdade, o primeiro fundamento – o fundamento básico , anterior a qualquer outro – o alicerce das tábuas morais, dos usos e costumes, as ordenações jurídicas legítimas se encontra, em grande parte, nos elementos quânticos de que se compõem as moléculas do ácido nuclêico, no núcleo das células humanas. 

Nesses programas genéticos encontra-se fixada uma parte considerável daquilo que, tradicionalmente, se chama Ética. Muito do que os estudiosos da moralidade sempre buscaram explicar por meio dos imperativos da pura consciência humana, a cultura científica dos dias atuais explica pelo programa inscrito no material genético. 

Diante dessa realidade, não podem mais os filósofos da Moral e do Direito ignorar as contribuições da Biologia para a correta fundamentação das ordens éticas. E não podem mais os legisladores dispor da sorte humana como se o DNA não existisse. 

As revelações da Biologia Moderna hão de ter, por força, reflexos importantes nas disciplinas do comportamento humano. A luz dos novos conhecimentos, muitas concepções e muitas leis envelheceram. Em conseqüência, disposições importantes na área da Moral e do Direito precisam ser conscienciosamente revistas e substituídas. 

Por exemplo, exigiram reformulação as definições de responsabilidade e de capacidade , de culpa e de crime, de pena e de indenização . Exigiram completa mudança os regimes de tratamento dos infratores e a chamada “tipologia criminal”. Exigiram total transformação as “medidas prisionais” de cadeia e penitenciária. Até mesmo a ordenação referente a “união” entre pessoas (no capítulo dedicado à família) requereram novo tratamento. 

Foi preciso atualizar nossos Códigos, nossa legislação em geral, inclusive em certos princípios constitucionais. A vida moderna, com novos usos e costumes, que a experiência e a ciência justificaram e até, em muitos casos, fizeram nascer, aconselhar e impuseram uma substancial mudança em setores importantes da ordem jurídica. 

IMPARCIAL– Falando agora de Política, como o senhor analisa a crise de que, padece, atualmente, o nosso País ? A corrupção estará, acaso, institucionalizada ? 

Goffredo – A sua pergunta é oportuna, e tenho todos os elementos para respondê-la. É um equívoco pensar que a corrupção generalizada seja uma novidade no Brasil. Quem viveu como vivi, em épocas e nos ambientes os mais diferentes, assistiu a idas e vindas das ondas de corrupção no Brasil. O Brasil teve diversas vezes ondas assustadoras de corrupção, que ocasionaram a indignação da consciência coletiva. E não pensem vocês que eu esteja me referindo a tempos históricos distantes. Não pensem que eu me esteja referindo a alguma Idade Média. Não ! Para mim, foi ontem; essas coisas foram freqüentes, em várias fases do último século, do século vivido por mim. A diferença entre os tempos de hoje e os tempos de ontem está na divulgação imediata, por todos os extraordinários processos da mídia moderna, de grande parte das falcatruas perpetradas por gente poderosa. Essa divulgação, essa “transparência”, tem produzido uma imensa indignação da consciência de muita gente, e , consequentemente, detonado a reação legal dos órgãos oficiais. Não vou aqui perder nosso tempo com o triste relato das fraudes e trapaças que notabilizam a corrupção moderna. Vocês estão fartos desses conhecidíssimos desmandos de nosso triste tempo. 

O que desejo salientar é que o Brasil se encontra mergulhado numa negra crise ética, e que as crises – principalmente as mais negras – sempre têm dois lados. Sempre têm o lado negativo, com todos os seus catastróficos efeitos; e sempre têm o lado positivo, consubstanciado nas forças morais, contrárias à catástrofe, e apontadas para a construção de um mundo melhor. 

Meus amigos, sejamos, todos nós e cada um de nós, elementos ativos dessas forças de renovação e desenvolvimento ! Sejamos, todos nós e cada um de nós, na nossa vida privada e na nossa vida pública, sentinelas vigilantes da ordem jurídica, retos defensores da ética no exercício de nossas profissões, dignos cidadãos de um País moralizado, independente, progressista. 

IMPARCIAL– E a ALCA, Professor, o que é que o senhor pensa da ALCA ? 

Goffredo – Eu creio que a ALCA deve continuar em banho-maria. Apesar das aparências, nós bem sabemos que ela foi criada para a defesa da economia dos Estados Unidos. Os interesses do Brasil não estão na ALCA certamente. Os interesses do Brasil estão no MERCOSUL, que os Estados Unidos encaram com desconfiança. 

O que nós queremos é nos livrar de imposições estrangeiras – inclusive das imposições do FMI. Queremos um Brasil independente , embora solidário com todas as nações amigas. 

IMPARCIAL– Professor, o Senhor foi advogado a vida inteira. Hoje, neste mundo confuso de enormes interesses confusos, às vezes indecentes, manejados por gente considerada “intocável”, que papel desempenham os advogados, no entrechoque das interpretações, isto é, na defesa de seus clientes ? 

Goffredo – Há dias, conversando com os Juizes da Associação dos Juizes para a Democracia , lembrei que advogado sempre fui: advogado por natureza, por amor ; em verdade, por paixão. Pois bem, tirante a mais sublime das profissões – que é a de Professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – , não conheço profissão tão fascinante como a de advogado. Esta é a minha sincera opinião. Mas não quero delongar exposição sobre o que é sobejamente conhecido : sobre a impávida porfia de um escritório de advogado, em defesa dos direitos de seus clientes. 

Uma particularidade, porém, merece, creio, referência especial. É um pormenor que me assediou nos inícios de minha carreira. É uma pergunta, que eu próprio me fazia; uma insinuante interrogação, que se formulava nos seguintes termos: Estaria eu sempre convencido de que o deferimento requerido por mim, em minhas petições, era, verdadeiramente um ato de justiça? Minhas petições terminavam, como era praxe, com a consagrada fórmula: “ Por ser de justiça, espera e pede deferimento ”. Lá no fundo de mim mesmo, eu me perguntava: Terei eu sempre andado em busca da justiça? Eu refletia, relembrava meus pleitos. Ora eu me respondia “sim”, ora me respondia “não”. Eu sofria com esse debate, mas nele meu espírito de novato parecia comprazer-se. 

Aquela interrogação – vejam só ! – é irmã gêmea da pergunta que alguns atuais locutores da mídia, algumas “ancoras” da televisão e do rádio, costumam fazer quando, comentando decisões judiciais, e tomando um certo ar de sabedoria, dizem: “Decisão legal , esta, mas será justa ?” 

Sempre o mesmo questionamento, sempre a mesma controvérsia entre o justo legal e o justo verdadeiro . Quando o bacharel que eu fui chegou a ser o que chamam de jurista , a experiência da vida e a meditação sobre a realidade me demonstraram que pedir justiça ao juiz é pedir que o juiz declare a vontade da lei , relativamente ao caso específico dos autos. O pedido de justiça estaria subsumido no pedido da declaração da vontade da lei. 

É claro que essa declaração é, muitas vezes, obra delicada, produto de uma ciência subtil, que consiste na ciência da interpretação . Ela decorre de uma lógica que não é somente a eterna lógica do racional , mas é, também, a lógica especial dos juristas, a lógica do razoável. A lógica do razoável é a lógica que mais se atem, muitas vezes, ao espírito da lei do que à letra dela; que mais considera os fins por ela pretendidos, os objetivos da ordenação global a que ela pertence. É a lógica que dignifica a lei positiva, porque a interpreta com sabedoria, “with wisdom”, como dizia meu irmão Ignácio. 

Mas, para os leigos e para um setor considerável da mídia, a justiça , com lei ou contra a lei, é só o que importa. O povo, meio perdido e abandonado, dentro de um capitalismo insensível, se insurge contra certas resoluções, e exclama : “ Abaixo as leis ! Queremos justiça !”. Na semana passada, ouvi um conhecido radialista blaterar contra decisões do tribunal, e concluir com estas palavras : “O que agora nos interessa não são as leis. O que agora nos interessa é somente a justiça.”. 

Pois bem, a tranqüila meditação, as lidas de meu escritório, o espetáculo dos sofrimentos causados pelo arbítrio de Governos autoritários – censuras, perseguições, cassações, banimentos, prisões, torturas, assassinatos – tudo isto, no correr de minha vida, locupletou meu espírito de horror pelos regimes em que a justiça é simples decreto da vontade discricionária de alguém. A justiça, realmente, muito nos interessa. Mas, sem lei, em que se há de apoiar a justiça ? Sem lei, ha-de ela se apoiar, acaso, no suspeito critério pessoal, na simples vontade de quem a pronuncia ? Que heresia é essa, a de querer justiça sem lei ? Lamentável heresia, caminho direto para o despotismo, em que a mídia democrática de nosso País não deve mais incidir. Não, não é possível entregar o poder de decidir sobre o que é O SEU DE CADA UM ao arbítrio de quem quer que seja. A lei, só ela, a lei elaborada pelos representantes do povo no Congresso Nacional, a lei corretamente interpretada é que constitui o critério, a balisa, a regra do justo. Se uma lei não é boa, substitua-se por outra. Mas o que todos nós queremos, quando somos lesados em nossos direitos, é poder nos abraçar às leis, para sermos reparados, ressarcidos. 

Ao advogado competente cumpre encontrar, para cada caso de seu escritório, a lei certa, saber dar-lhe a interpretação adequada, trabalha-la com sabedoria, tudo em defesa de seu cliente. O que não lhe é próprio é mentir, escamotear, fraudar a ordem jurídica. Se a causa lhe parecer indecorosa, deve conversar com o cliente, dizer-lhe o que realmente pensa sobre o pretendido, e, se for o caso, escusar-se, desonerar-se. Mas preciso dizer que sempre encontrei, até nos piores bandidos, alguma cousa em que eles eram melhores do que eu. Valioso argumento, este, para a consciência do advogado ! Não acham ? 

IMPARCIAL – Professor, queremos uma palavra sua sobre a profissão de Professor de Direito. Nesta altura de sua vida, que pensa o Senhor sobre a atividade docente em nossa Academia do Largo de São Francisco. 

Goffredo – Encanto de minha vida profissional, sempre foi o fato sem igual de ser Professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Eu ainda era estudante, no terceiro ano do curso, quando pressenti que aquela Faculdade haveria de ser, perenemente, a minha Casa, minha Escola, minha eterna Academia. Adivinhei que dela eu não me separaria jamais. 

Quando comecei a lecionar, eu tinha, aproximadamente, a mesma idade de muitos de meus alunos. Ao menos, eu pertencia à geração de todos eles. Quando, quase meio século depois, a lei me aposentou compulsoriamente, eu era professor dos filhos de muitos de meus antigos alunos. Pois bem, tanto na minha mocidade, quanto agora, sempre me senti preso a meus estudantes, como se eu lhes pertencesse. Sim, é verdade, sempre tive a sensação de pertencer aos meus alunos. Qual era minha função? Era s ervi-los. Dentro da sala de aula – pensava eu –, os estudantes são o soberano , como diria Rousseau. 

Servir ! Este é, segundo penso, o mandamento do professor. Mas servir não por obrigação contratual, não por um tedioso dever de ofício. Servir com fé, com emoção, com estro. Servir os estudantes, mas servir por amor a eles, e não por amor a si próprio, não por amor da exibição, nem por amor do salário. Preparar a aula amorosamente, para doá-la à mocidade, como um presente de aniversário. 

Eu tinha uma sagrada missão a cumprir. Dela, eu não podia me arredar. No fundo de mim, no segredo de mim mesmo, eu nutria a esperança de formar gente, formar pessoas, dignas de sua condição humana; formar juristas, e, se possível, formar estadistas para o Brasil. Esta era minha aspiração, meu ideal secreto. 

Eu ia ministrando meu curso, na Sala João Mendes Junior ou na Sala Barão de Ramalho. Como água da fonte, eu a queria límpida, natural e simples, aquela Ciência do Direito, aquela disciplina da convivência, que eu desvendava em minhas singelas preleções, dedicadas com amor aos estudantes das Arcadas. Extraordinária mocidade, essa, de nossa velha e sempre nova Academia ! 

Confesso que eu almejava que minhas aulas deixassem, no espírito da mocidade, uma inspiração de beleza. Eu almejava que esta beleza impregnasse de tal maneira a consciência dos estudantes de minha Academia que seu comportamento, por toda a vida, sempre fosse um reflexo espontâneo dela. Keats me assegurava que “ a thing of beauty is a joy for ever ”. 

IMPARCIAL – Para terminar esta longa entrevista, teria o Senhor conselhos para a juventude atual de nossa Faculdade ? 

Goffredo – O que tenho a dar não são propriamente conselhos. O que quero fazer são apelos , simples apelos do fundo do meu coração. São apelos de um estudante mais velho, que já andou pelos caminhos da vida. 

Meu primeiro apelo seria este: Amem a beleza ! Não tenham jamais a vergonha de proclamar seu amor pela beleza – pela beleza de hoje, pela beleza de ontem, seja qual for sua forma, sua situação, sua data. Mas cuidado ! Não se deixem iludir pelas rotulagens badaladas dos falsificadores da beleza . 

Meu segundo apelo seria este: T enham como lema: seriedade e competência ! Não joguem fora os preciosos cinco anos de estudo na Faculdade. Estudem com devoção. Não acreditem jamais que a chamada modernidade possa ser biombo da ignorância e incultura. 

Finalmente, meu último apelo seria este: Não permitam que as asperezas da vida emudeçam o sonho. Conservem a pureza, apesar de tudo. Não envelheçam, no espírito e no coração” . 

Meus queridos estudantes da Academia do Largo de São Francisco recebam este longo depoimento como uma expressão sincera de meu pensamento, e como recado de meu coração. Podem estar certos : eu os amo !

 

4 – Jornal do Advogado 2002

Entrevista abaixo foi concedida aos jornalistas Gaudêncio Torquato e Solange A. Barreira e publicada no Jornal do Advogado, órgão oficial da Ordem dos Advogados do Brasil – SP, na edição de abril de 2002. 

“O Brasil precisa dar um passo adiante” 

Aos 87 anos, o advogado Goffredo da Silva Telles Junior parece um homem frágil. Até começar a falar. Num passe de mágica, enche-se de vigor e relembra passagens da História do Brasil, que, em vários momentos, confundem-se com sua própria história. Herdeiro de paulistas de velha estirpe, nasceu, cresceu e viveu nas altas rodas de políticos, intelectuais e artistas. 

É casado com a advogada Maria Eugenia, quase 30 anos mais nova do que ele. “Estamos juntos há 35 anos, em plena lua-de-mel.” Dessa união, nasceu Olívia, também advogada, doutora pela Universidade de Paris, Sorbornne, e que acaba de ser contratada como assessora jurídica da Corte Internacional de Haia. É motivo de grande orgulho para o pai, professor emérito da Universidade de São Paulo. 

Aliás, a carreira universitária lhe é querida como um talismã. As arcadas da São Francisco foram cenário de sua brilhante atuação como professor e de seu ímpeto pela Justiça. Em 1977, Goffredo leu, ali, a Carta aos Brasileiros , que inaugurou a distensão do regime militar. Mesmo aposentado, o mestre não deixa de receber alunos e professores em seu escritório, no Centro de São Paulo. Também não se cala. É um dos autores, junto com outros ilustres juristas, da denúncia de crime de responsabilidade contra Fernando Henrique Cardoso, encaminhada ao presidente da Câmara no ano passado. 

Entre seus vários livros, destaca-se A Folha Dobrada , lançado há dois anos, um registro de memórias, distribuídas em quase mil páginas. Ao Jornal do Advogado , doutor Goffredo dedicou duas horas de atenção, num empolgante depoimento, que lhe trouxe lágrimas aos olhos em vários momentos. 

Jornal do Advogado – O senhor participa da vida política e institucional do país desde a década de 30. Quais são suas lembranças daquela época? 

Goffredo da Silva Telles Junior – Realmente, tive a sorte de assistir a fatos políticos impressionantes. A Revolução de 1930 repercutiu intensamente na minha família. Em 1932, fui soldado da Revolução Constitucionalista. Meu pai era prefeito de São Paulo naquele ano. Quase tive que fugir de casa, porque, aos 17 anos, não tinha autorização para me meter em altas cavalgaduras e sentia vontade de tomar parte na Revolução em marcha. Já me preparava para entrar na Faculdade de Direito e queria ir para a frente como estudante da faculdade. Afinal, participei da Revolução, que foi marcante em minha vida. 

Como foi a ascensão de Getúlio? 

– Lembro-me muito bem da passagem dele, em carro aberto, empurrado pelo povo. Assisti, antes de 1930, à luta entre o Partido Republicano Paulista e o Partido Democrático. São Paulo vivia a disputa entre esses dois partidos, que foram dominados pela ditadura de Vargas. Ele afastou até mesmo seus aliados políticos. Mais tarde, os adversários de ontem – inimigos, pode-se dizer – se uniram. Estive em mais de uma reunião, em minha casa, nas quais grandes chefes políticos, de uma hora para outra, se juntaram para fazer a Revolução de 32. Eu estava certo de que a Revolução era, de fato, por uma Constituição. Mas, depois, com a minha experiência de vida, entendi que eles queriam derrubar Getúlio e retomar o poder. 

O senhor também conviveu de perto com os modernistas da Semana de 22. 

– Sim. No meio em que cresci, o clima intelectual era efervescente. Todos aqueles artistas – músicos, escritores, pintores – da Semana de Arte Moderna viviam em casa de minha avó. Era um casarão na Conselheiro Nébias com a Duque de Caxias, que se transformou em autêntico centro intelectual do país. Tanto que fiquei muito amigo daquela gente: Villa-Lobos, Tarsila, Brecheret, Segall, Anita Malfati, Mário de Andrade, Guiomar Novais, Magdalena Tagliaferro, Guilherme de Almeida e muitos outros. Villa-Lobos foi meu amigo a vida inteira e me ensinou a tocar violão, a empinar pipa, a jogar capoeira. Tarsila do Amaral foi minha professora de desenho durante muito tempo. 

Como o senhor entrou para a política? 

– Fiz política a vida inteira. Conheci todo o Brasil, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, sempre falando para o povo, em defesa de uma democracia mais verdadeira. Em 1945, fui eleito deputado federal, com a terceira maior votação do país. De forma que participei ativamente da Assembléia Constituinte de 1946 e fiquei no Congresso até 1951. Muita coisa que eu pregava vi confirmar. Por exemplo, naquela época, falar em representação do povo no Congresso Nacional era ficção e, a meu ver, continua uma ficção até hoje. 

Por que, professor? 

– Porque o povo não está realmente representado no Congresso. Essa é a verdade. O eleitor escolhe um candidato, porque defende tal programa partidário. O candidato é eleito, vai para o Congresso e, depois, muda de partido. O eleitor fica sem seu representante e frustrado. Ele votou naquele homem para defender as idéias do programa de um partido. 

Isso significa que a reforma política brasileira deve começar pela reforma partidária? 

– Sim. Estou convencido da necessidade absoluta de uma grande reforma política, que tem que começar pela reforma dos partidos. É preciso fazer com que os partidos realmente tenham programas nítidos, com idéias bem definidas, para que o eleitor saiba no quê está votando. 

Mas como se pode chegar a isso: com a cláusula de barreira; proibindo as pequenas siglas de aluguel? 

– Exatamente. Ao valorizar os princípios fundamentais da democracia, o cidadão descobre que não está dando o voto à toa. Deve-se, portanto, estabelecer rigorosa disciplina partidária: mudou de partido, perde o cargo. Claro que, ao longo da carreira, a pessoa pode achar que estava enganada e querer mudar. Mas se isto acontecer durante o mandato, perde o cargo. O Brasil está pedindo uma grande reforma, porque a nossa democracia ainda é de ficções. O Brasil precisa dar um passo adiante. Precisa instituir uma democracia verdadeiramente representativa, uma democracia participativa, que torne realidade o princípio constitucional de que todo poder emana do povo e em seu nome dever ser exercido. 

Que medidas precisam ser tomadas para que o povo tenha voz e participe mais ativamente da história nacional? 

– São muitas e das mais diversas ordens. Vou me ater ao que parece primordial. Tenho a convicção de que é preciso, antes de mais nada, mudar a filosofia de governo, a maneira de encarar os problemas nacionais. Estou convencido de que o governo, antes de tudo, deveria atentar para as premências da vida do povo. Desde logo, seria preciso reconhecer que o povo não é massa. A massa é homogênea, como a massa do pão. As massas são tangidas: não são fontes de poder. O povo, porém, é essencialmente heterogêneo. É um todo complexo, composto de inúmeras comunidades distintas, de entidades diferenciadas, dentro das quais se processa a vida cotidiana dos cidadãos. Essas comunidades poderiam ser legalmente agrupadas em 15 ou 20 instituições representativas, às quais poder-se-ia atribuir, por meio de uma emenda constitucional ao artigo 61, o direito de iniciativa das leis que lhes dissessem respeito. 

Como seria a reforma do Legislativo? 

– Imediatamente, vamos deparar com um problema grave que é a representação proporcional da população. Essa dificuldade foi mal resolvida até hoje. Talvez seja melhor não ter câmaras tão grandes. Há ótimos deputados e ótimos senadores. Mas, o Congresso, em seu conjunto, tem capitulado ingloriamente ante à freqüente usurpação de seu poder pelo Poder Executivo. 

O senhor acha que a nossa legislação também deveria mudar para se tentar reconstruir ou construir o Brasil? 

– De um modo geral, nossa legislação é boa. Principalmente, se levarmos em consideração todos os fatos políticos que a determinaram. Mas a legislação sempre está atrasada, em qualquer país do mundo. Isso ocorre porque ela é feita para aquilo que está acontecendo atualmente. Ora, a vida evolui, tudo evolui. O novo Código Civil, por exemplo, é um passo importante na legislação fundamental. Importante, sim, mas já há quem pense que ele está atrasado. Nem entrou em vigor e já se pensa em alterá-lo. Isso funciona assim mesmo. O que urge, em matéria de legislação, é a reforma política necessária para construir, no Brasil, uma verdadeira democracia participativa. 

O senhor falou de fatos políticos que conduziram nossa legislação. Que impressão o senhor guarda do período da ditadura militar, instalada em 1964? 

– Foi um sofrimento horroroso. Um pesadelo. Lembro-me de tudo, como se fosse hoje. [Longa pausa]. É muito difícil transmitir a angústia daqueles tempos. Muita gente se reunia em minha casa, à noite, para ouvir A Voz do Brasil . Professores foram cassados ali. A princípio, os estudantes seguiram para a rua. Eu também. Estivemos em luta, mais de uma vez, agredidos pela polícia. Foi um tempo dramático e perigoso. 

Depois de tantas idas e vindas históricas, nosso país tem potencial para ganhar destaque no contexto internacional? 

– Essa indagação é interessantíssima. Antes de tudo, tenho a dizer que estamos assistindo no Brasil a um acontecimento totalmente inédito na história do mundo: a fusão, dentro de um mesmo país, das raças mais diferentes. Por isso, tenho a convicção de estar reservado para o nosso país um papel pioneiro nas Nações Unidas. É extraordinário o que está acontecendo. Aliás, vejo dois pólos mundiais importantíssimos: o Brasil e a China. São dois tipos de destino do ser humano sobre o planeta. Isso precisa ser bem considerado por nossos governantes; eles precisam valorizar esse admirável fenômeno brasileiro. 

O senhor acha que o atual governo ajudou a difundir essa imagem? 

– Ninguém nega a cultura do presidente Fernando Henrique. Sem dúvida nenhuma, ele tem mostrado que o Brasil tem voz no concerto das nações. Agora, tenho a impressão de que ele se esqueceu do povo. É esse o ponto. Quem é que vai negar que ele derrubou a inflação? Isto justificaria um governo. Teria sido melhor, aliás, que ele tivesse ficado só com o primeiro mandato, pois sairia com essa glória extraordinária. Mas, com o passar do tempo, começamos a verificar que ele não conhecia o Brasil. Nem sequer sabia que faltaria energia elétrica, causando esse transtorno colossal de que o povo foi vítima. Não levou em conta a aflição do desemprego. Só na cidade de São Paulo, temos 1,75 milhão de desempregados. Beira o inacreditável. 

Na sua opinião, em que outros pontos o governo federal falhou? 

– Ele desconsiderou a difusão crescente da miséria total. Descurou das aflições da fome, da saúde, do teto. Não se empenhou na fixação de um salário mínimo decente. Lamentável tem sido o descaso do governo por uma maior alfabetização do povo e o descuido na difusão do ensino primário. O país se escandalizou com a enxurrada de Medidas Provisórias inconstitucionais e chorou com a venda despropositada do patrimônio nacional, como sucedeu com a quase doação da Vale do Rio Doce. Ainda não nos conformamos com a privatização desarrazoada de certos serviços públicos, como as empresas de energia elétrica e de comunicação. 

Diante dessa realidade um tanto caótica, qual deve ser o norte no exercício da advocacia? 

– O advogado deve ser sentinela da ordem jurídica. Quem faz o curso de Direito recebe um diploma, que é uma chave para muitas portas. Para as portas das profissões jurídicas – advogado, promotor público, juiz, delegado de polícia –, mas não só isto. Se quiser ser comerciante, agricultor, político, jornalista, o bacharel em Direito tem uma chave especial. Porque quem conhece cientificamente a disciplina da convivência – o Direito, no fundo, é a disciplina da convivência – está formado para as dificuldades da vida, para as ocorrências normais da existência. Por isso, abre chaga dentro da sociedade o bacharel corrupto. Trai seu diploma, a ordem social e, portanto, os princípios dos quais é intérprete, esteio, guardião, sentinela. 

Que conselhos o senhor dá a quem está iniciando a carreira? 

– O estudante de Direito não deve desperdiçar os cinco anos de estudo na faculdade. Deve tornar-se um profissional competente. Com a vida, vai, aos poucos, percebendo que as leis que estudou precisam ser melhoradas, aperfeiçoadas. Na hora em que percebe isso, torna-se um jurista. O jurista tem os pés e os olhos na realidade, mas o coração voltado para as estrelas. Ele quer melhorar a realidade. Quando se sente levado pelo sonho de uma Justiça melhor, percebe que está amarrado à beleza, à bondade, aos valores supremos da vida. O jovem advogado tem um papel fundamental dentro da sociedade humana. O jurista tem uma missão consagrada. 

E a OAB, dever ter que papel? 

– A Ordem tem papel essencial na história do Brasil. Aliás, um papel constitucional. A OAB deve exercer o papel de criadora e defensora da ordem jurídica. Outro papel importante diz respeito ao ensino do Direito, que tem sido muito deturpado por escolas que não estão absolutamente em condições de ministrá-lo. A Ordem deve ajudar a banir da vida nacional escolas de Direito que deturpam a sua insigne finalidade. 

Como é sua rotina atual? 

– Continuo professor da minha academia, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Estou ligado a esta faculdade como estou ligado à minha casa. Em torno desta mesa em que conversamos agora, reúnem-se estudantes de hoje, colegas professores e advogados que foram meus alunos. Meu escritório virou um consultório de amigos. Não vou mais ao fórum. Muitas primaveras passaram. Não faço mais tudo de que gosto. Mas tenho muito a fazer. Passo as manhãs lendo, estudando, escrevendo. Principalmente, sobre Direito e política. Sempre estou em cima dos fatos e da ordem jurídica do meu país. 

O senhor é um leitor inveterado. Na literatura, quem são seus favoritos? 

– Os grandes romancistas do mundo tiveram papel fundamental na formação de minha cultura jurídica. Sempre digo aos meus estudantes que leiam os grandes romancistas, porque o jurista precisa conhecer a vida. Tem a sua experiência própria, mas deve agregar a ela a dos personagens admiravelmente descritos nas grandes obras. 

O senhor tem um hobby, uma paixão especial? 

– Sou muito ligado à natureza. Essa árvore aqui, ao nosso lado, chama-se árvore da felicidade. Sou um plantador de árvores florestais, num sitiozinho em Parelheiros. Tenho figueiras aqui no escritório e em casa. Gosto muito das árvores. Hoje, estou convencido de que a ordem jurídica se prende intimamente à ordem da natureza. Mas isto a gente só descobre depois de muito viver. Desde que se divisou o patrimônio genético no núcleo das células, comecei a me sentir irmão de todos os seres vivos. Os seres vivos são uma irmandade. 

Professor, o senhor se sente realizado? 

– Sou isto simplesmente. Só isto.

5 – Tribuna do Direito 2002

O professor. 
O homem. 
O mito.

EUNICE NUNES, especial para o “Tribuna” 

O professor Goffredo da Silva Telles Junior é um mito. Mas um mito ao alcance de todos. Afável, continua recebendo ex-alunos e jovens estudantes. Humilde, diz que é um estudante. Incansável, está sempre na linha de frente quando se trata de lutar por causas justas. Professor de Direito e advogado por vocação. Diz que está escrito em seu DNA. 

Formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em 1937, Goffredo começou a dar aulas em 1940. Durante 45 anos esteve na velha e sempre nova Academia, ensinando os mais jovens — como diz, está em sua terceira juventude. Eram aulas de Introdução à Ciência do Direito, em que falava também sobre o amor, a poesia e a harmonia. Só se aposentou pela compulsória, quando completou 70 anos, em 16 de maio de 1985. 

A aposentadoria, contudo, não o afastou completamente da vida acadêmica. Continua estreitamente ligado à faculdade, ao Centro Acadêmico 11 de Agosto e aos alunos. Lembrado pelas novas gerações, recebe em seu escritório jovens que não o têm como professor na faculdade, mas que querem trocar idéias e partilhar da sabedoria do mestre. 

Em agosto deste ano, mestre Goffredo voltou ao pátio da Academia de Direito de São Paulo para comemorar os 25 anos da leitura da “Carta aos Brasileiros”, um grito de liberdade em plena ditadura militar que repercutiu no mundo inteiro. Para a multidão que lotava as Arcadas, Goffredo proclamava que “para nós a Ditadura se chama Ditadura, e a Democracia se chama Democracia. Os governantes que dão o nome de Democracia à Ditadura nunca nos enganaram e não nos enganarão… A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já”. 

A coragem que demonstrou há 25 anos não esmoreceu. Nem o otimismo. Vê problemas graves no governo Fernando Henrique Cardoso e no sistema democrático, mas não desanima. “É uma vergonha chamar empréstimo do FMI de acordo, assim como é uma vergonha o Executivo usurpar a função do Legislativo e legislar por meio de Medidas Provisórias. É por isso que digo que estamos numa Democracia de mentira e precisamos caminhar para um Democracia participativa. Mas sou otimista. Sempre fui. Estou na luta. Estou na trincheira”, adverte. 

A INFÂNCIA EM PARIS

P rimogênito de cinco irmãos, mestre Goffredo nasceu no centro da capital paulista, na esquina da Rua Conselheiro Nébias com a então também Rua Duque de Caxias. “Numa grande casa construída pelos meus avós no final do século XIX. Nos fins de semana, nos dias de sol, meus tios, meus pais, avós, parentes, amigos pegavam seus grandes cavalos ingleses no jardim de casa e iam passear pelo centro da cidade, pela Praça da República…”, recorda. 

Seus pais eram fazendeiros. Goffredo pai era também poeta — foi presidente perpétuo da Academia Paulista de Letras —, empresário e político. Em 1930, foi vereador em São Paulo e, em 1932, prefeito da capital, antes e durante a revolução, época em que criou o Parque do Ibirapuera. A mãe, Carolina Penteado da Silva Telles, cedo percebeu a vocação do filho. Chamava-o de advogado desde quando ele era ainda um menino de calça curta. 

Goffredo viveu parte da infância em Paris, onde foi alfabetizado. Aos cinco anos já falava Francês e Inglês. De volta ao Brasil, cresceu rodeado de intelectuais. “Villa-Lobos, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade, toda aquela gente freqüentava a minha casa. Iam lá tomar o chá das terças-feiras. Fiquei muito amigo deles todos. Villa-Lobos um dia me presenteou com um violão e me ensinou a tocar. E Tarsila foi minha professora de Desenho durante mais de um ano. Eles freqüentavam não só nossa casa aqui de São Paulo, mas também a Fazenda Santo Antônio, em Araras”, relembra. 

Goffredo viu a cidade crescer e transformar-se. O casarão em que nasceu foi derrubado para que a Duque de Caxias virasse avenida. Mas nunca abandonou o centro da cidade, que considera o melhor lugar para se morar em São Paulo. “Moro na Avenida São Luiz. Tenho uma vista maravilhosa. Nos dias claros vejo até o horizonte. Todas as minhas janelas são banhadas pelo sol da manhã. Meu estúdio fica numa sala que dá para os fundos, onde o silêncio é total e onde todas as manhãs alimento bandos de passarinhos. Lá fico sossegado para pensar, escrever e estudar. Tenho como metrô o elevador, pois meu escritório fica no andar de cima de minha casa. E sobretudo, moro perto da minha faculdade, da minha querida escola”, diz orgulhoso. 

Goffredo lembra que a histórica Fazenda Santo Antônio teve de ser desmembrada e uma parte vendida para dividir pelos herdeiros. A sede, que é tombada, não pôde ficar na família. “Eram mais de 60 pessoas. Tivemos que vender”, informa. 

O FASCÍNIO PELAS ARCADAS 

S eus primeiros estudos foram no Colégio Franco-Brasileiro, atual Pasteur. No fim do primeiro ano do ginásio, Goffredo e seu irmão Ignácio foram para o Ginásio de São Bento. Estudou Latim desde o primário e, no ginásio, apaixonou-se por Filosofia. “Estudei com grande capricho a Lógica e a Metafísica. Estou convencido de que são estudos que devem ser feitos desde a juventude. Uma grande parte da desordem reinante é devida à falta de conhecimentos fundamentais sobre a pessoa humana, sobre o universo, sobre o destino de toda a criação. A filosofia é essencial para pôr ordem no pensamento, ajuda a pensar”, ensina. 

Desde cedo foi apaixonado pelos estudos jurídicos, que ainda não havia feito, mas sabia com certeza que ia gostar. “Não é só isso. A Faculdade de Direito do Largo São Francisco me fascinava. E me fascina até hoje. É uma escola admirável e é pena que não se ponha isso em relevo todos os dias”, lamenta. 

Goffredo entrou na escola em 1933, formando-se em 1937. Em 1940, já era professor. Sempre lutou pela ordem jurídica, pelas liberdades humanas, pela Justiça e pelo Estado de Direito. Muitas vezes foi considerado subversivo. “O que considero um título, porque estava sempre à procura da realização de uma reforma política que melhor atendesse os ideais de uma Democracia autêntica. E não de uma Democracia de mentira, como a que temos hoje”, diz. 

Tem um carinho especial pelo pátio das Arcadas, que considera o jardim de pedra onde nascem os ideais políticos das grandes reformas nacionais. “É o pátio da amizade, o pátio da convivência, da harmonia humana, da poesia. Aliás, sempre achei que há uma íntima relação entre a ordem jurídica e a poesia. Não é sem motivo que na porta de entrada da faculdade, gravados na pedra, estão os nomes de três `meninos´ de nosso pátio: Castro Alves, Álvares de Azevedo e Fagundes Varella. O destino da faculdade está simbolizado desde as arcadas da entrada”, filosofa. 

Segundo o mestre, na faculdade estudam-se muitas matérias, mas só se estuda uma disciplina: a da convivência. E a disciplina da convivência, ensina, é a do respeito de uns pelos outros, que tem seu primeiro fundamento no amor pelo próximo. “Não é uma norma jurídica. Não é, porque não é uma norma autorizante. No fundo, todos nós, que somos pensadores do Direito, verificamos que esta norma é o fundamento de toda a norma jurídica. Quando um deputado apresenta um projeto, o que ele quer é melhorar a norma da convivência. Se for um pensador, saberá que está sendo movido por um sentimento de amor pelo próximo. Poesia e Direito estão ligados pelo amor”, descreve. 

Para se tornar um jurista, o professor diz que é fundamental, além do estudo, a experiência e a história de cada um. “Vamos vivendo, a nossa consciência vai se enchendo de passado. À medida em que envelhecemos, nos enriquecemos de lembranças e, se formos pensadores do Direito, um dia nos tornamos juristas porque verificamos que o que queremos é uma ordem jurídica cada vez melhor. O jurista é sempre um sonhador. É o bacharel que tem os pés na realidade, mas os olhos nas estrelas de seus ideais”, volta a filosofar. 

UMA VIDA DE HOMENS E LIVROS 

R odeado por cerca de 10 mil livros, mestre Goffredo diz que não leu todos página por página, mas sabe onde estão e sobre o que versam. São livros que foi adquirindo e guardando desde seus estudos primários. Diz que todo o jurista deve ler os grandes romancistas e poetas do mundo. Quando lhe perguntam, diz que a razão é óbvia. A experiência de vida de cada um, segundo ele, é insuficiente, muito pouco para um jurista, que precisa ter experiências mais numerosas e diversificadas . “Então, vamos absorver dos grandes romancistas as experiências dos seus personagens, que eles descrevem com uma beleza inaudita”, sentencia. 

Cita Flaubert, Victor Hugo, Balzac, Dostoievski, Tolstoi, Eça de Queirós, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Jorge Amado “e toda essa gente que recomendo sempre aos alunos”. Dos poetas modernos, destaca Cecília Meirelles, Paulo Bomfim, Manoel Bandeira. 

Filosofia, Biologia, Física e Química são também leituras obrigatórias para aqueles que pretendem se tornar juristas, fundamentais que são para conhecer a natureza humana. Dos filósofos, destaca Spinosa, Descartes, Kant e Bergson. Conta que demorou dois anos para ler A Crítica da Razão Pura, de Kant. E costumava dizer que sua vida estava dividida em duas partes, antes e depois de Kant. Hoje, ainda pensa assim, mas diz que seu pensamento avançou a partir da descoberta do DNA. 

“Em 1968, quando tomei conhecimento da extraordinária descoberta do DNA, comecei a estudar Biologia e meu espírito se abriu para uma nova concepção do mundo. O que os biólogos constataram foi que o homem nasce com determinadas predisposições. É o que determina que uns sejam pintores, outros pianistas, advogados, etc. A vocação faz parte do patrimônio genético, do DNA, de cada um. Está escrito lá”, assegura. 

À luz da Biologia, mestre Goffredo compreendeu que muita coisa que os juristas atribuíam à consciência e à vontade livre, não era bem assim. Sentiu imediata necessidade de alterar os conceitos de responsabilidade, fundamentais para o Direito. Em 1971, embalado pelas novas descobertas da ciência, lançou o livro O Direito Quântico. Seus colegas da faculdade, lembra-se, sorriam, davam-lhe batidinhas nas costas e olhavam para ele com condescendência, como a dizer “o Goffredo está meio lélé”. 

Mestre Goffredo, que já foi deputado federal e constituinte, está convencido que o Brasil vive uma Democracia de mentira. Grande sintoma é a dominação do Legislativo pelo Executivo, o grande legislador do País por meio das Medidas Provisórias. Diz que o Brasil precisa de uma Democracia de esquerda, uma democracia participativa, na qual o poder emane do povo, tal como manda a Constituição. 

Mas para que o poder emane do povo, adverte, é preciso que o povo participe do poder, que não seja considerado mera massa “ tangida por uns e por outros e que não participa realmente dos poderes da República”. Daí a necessidade de uma reforma política profunda, corajosa, que realmente permita a participação dos diversos segmentos da sociedade nas instâncias de poder. E essa reviravolta começa, a seu ver, pela reforma partidária. O professor defende a perda do cargo para o parlamentar que mudar de legenda durante o mandato. 

Goffredo ressalta que a crise da Democracia não é um privilégio brasileiro e assevera que ela, Democracia, vai mal em quase toda a parte. “Nos EUA e na França, por exemplo, está-se vendo que não funciona”, exemplifica. Goffredo considera a Alca, em tese, uma boa iniciativa, mas que, na realidade, representa a dominação das grandes potências, sobretudo dos EUA, sobre a soberania brasileira. “Essa é a verdade. Precisamos tomar muito cuidado. É preciso convocar a Nação para um grande debate nacional sobre a Alca antes de se tomar alguma decisão”, pondera. 

Defensor incondicional da reforma agrária no Brasil, Goffredo diz que o governo, em vez de tanto esforço para obter empréstimos no FMI, deveria direcionar esse trabalho para melhorar a produção agrícola e a industrial. “Os empréstimos só deixam o País mais dependente. Precisamos sair dessa canga e entrar em novos rumos, progressistas, desenvolvimentistas”, prossegue. 

Para uma reforma agrária bem-sucedida diz ser necessário que as populações rurais sejam não somente assentadas, mas também recebam acompanhamento por pelo menos dois anos. “Sou agricultor, sei como é. A agricultura é uma atividade árdua, precisa de apoio, senão não funciona. Não adianta assentar e largar. Quando vejo as reivindicações do MST, sei que eles têm razão nos seus motivos. O que não tem cabimento são os atos de violência. Gostaria que fosse de outra maneira. É por isso que precisamos de um governo disposto a deixar suas preocupações com o capital para desviá-las para as necessidades do trabalho”, prega. 

TRÊS CASAMENTOS 

O professor Goffredo foi casado três vezes. A primeira, com sua namorada de adolescência, Elza Xavier da Silva, a “Zita”. Conheceu-a aos 16 anos e oito anos depois se casaram. O casal teve um filho, Goffredo Neto, que morreu vítima de meningite aos dois anos. “A morte desse menino nos despedaçou e um ano depois perdi também minha mulher”, recorda. 

Anos depois, já deputado federal — tinha sido deputado constituinte — conheceu Lígia Fagundes, então muito jovem e ainda longe de ser uma escritora, e com ela se casou. O casamento não deu certo e a separação foi inevitável, mas tiveram um filho, Goffredo Telles Neto, que é cineasta. Muitos anos depois da separação, Goffredo encontrou Maria Eugênia, sua atual mulher e mãe de sua filha Olívia. Maria Eugênia havia sido sua aluna na faculdade. Depois tinha estado nos EUA, onde se pós-graduou na Universidade de Cornell. 

“Quando a vi, imediatamente a reconheci. Coisa curiosa. Ela olhou para mim, sorriu e, meu Deus, a minha vida ficou decidida. Estamos casados há 34 anos e continuamos em lua-de-mel. Ela é minha estrela. Tivemos nossa filha Olívia, que é motivo de nosso orgulho, também formada na nossa Academia e doutora pela Universidade de Paris-I (Pantheon-Sorbonne). É uma menina admirável”, derrete-se. 

Os estudantes de Direito que procuram o professor Goffredo são recebidos com cordialidade para longas conversas na biblioteca de seu escritório. “Digo-lhes que a ordem jurídica é a ordem da convivência e mostro-lhes a importância fantástica que tem aquele que é bacharel em Direito. O bacharel em Direito é um cientista da convivência e o diploma de bacharel é uma preciosa chave que abre muitas portas. O bacharel pode ser advogado, juiz, promotor, delegado, mas não é só isso. Se ele for agricultor, comerciante, empresário, se quiser ser jornalista, escritor, político, pelo fato de ele ser um cientista da ordem e da convivência leva uma enorme vantagem sobre os que não são cientistas dessa disciplina”, relata. 

“Mostro-lhes também que o bacharel que for corrupto abre uma chaga na ordem social, porque é um traidor de seu diploma e de sua missão dentro da sociedade. E a mocidade sai daqui muito animada”, diz sorrindo. 

Mas condena a proliferação descontrolada das escolas de Direito. Lembra que um professor de Direito não é uma pessoa qualquer e não pode ser qualquer um. “Tem de ser uma pessoa muito especial, que tenha vocação e a natureza do professor de Direito, que tenha a competência necessária para ensinar as matérias de uma faculdade digna de Direito”, conclui.

6 – Folha de S.Paulo 2005

Entrevista publicada no jornal Folha de S.Paulo de 16/05/2005, p. A8

GOFFREDO, 90 Para professor emérito da USP, que faz 90 anos hoje, abuso de MPs é maior exemplo do desrespeito à ordem constitucional

País não vive democracia plena, diz jurista

UIRÁ MACHADO
DA REDAÇÃO

Quando participou como coadjuvante da Revolução Constitucionalista de 1932, Goffredo da Silva Telles Junior não tinha como imaginar que iria protagonizar, 45 anos depois, a leitura da Carta aos Brasileiros, manifesto de crítica à ditadura militar (1964-1985) e em defesa dos princípios da democracia.

Aquela era a primeira das muitas batalhas em nome das liberdades democráticas que haveria de travar contra as formas autoritárias de governo ao longo de sua vida. Tinha então apenas 16 anos. Goffredo, porém, não hesita em declarar que sabia perfeitamente por que estava combatendo: “Lutava pela Constituição”.

Hoje, no dia em que completa 90 anos, o professor emérito da Universidade de São Paulo é considerado um dos juristas mais importantes do país.

Sem esconder certa decepção, avalia que vivemos um momento muito sério de “incerteza institucional”, afirma que a nossa democracia não é verdadeira e diz que os responsáveis pela “condução dos negócios políticos no país” parecem não ler a Constituição Federal.

Para Goffredo, o abuso das medidas provisórias que “entopem o Legislativo” é o maior exemplo do desrespeito à ordem constitucional e a marca mais clara da intromissão de um Poder no outro. A conseqüência, segundo o jurista, é a descrença popular nas leis e no sistema representativo.

Com a mesma ênfase com que declara ter sido advogado a vida inteira por vocação e por amor, lamenta a falta de coerência ideológica dos políticos e vê na infidelidade partidária o início da destruição do sistema democrático.

“Eu não vou citar exemplos, mas tenho certeza de que, no mesmo momento em que eu digo essas coisas, muita gente sabe perfeitamente quais são os partidos que mudaram de idéia, que traíram os seus programas.”

A seguir, leia a entrevista concedida à Folha, por telefone, na última quarta-feira.

Folha – Como o senhor avalia a democracia brasileira pós-ditadura militar?

Goffredo da Silva Telles Junior – Esse é um assunto que merece uma atenção muito especial. De um modo geral, podemos dizer que o país está em relativa ordem, que estamos em paz. Porém o pensador, a pessoa que observa os fatos com muito cuidado não pode deixar de sentir que estamos em uma situação de incerteza institucional no nosso país. Digo isso porque eu vejo que temos uma Constituição que parece não ser nem sequer lida por aqueles que têm a responsabilidade da condução dos negócios políticos no nosso país. Isso me impressiona extraordinariamente. É espantoso que não se leia a Constituição, que é o fundamento da disciplina da convivência humana. Digo isso porque, veja só, os Poderes se intrometem uns nos outros indevidamente, como se a Constituição não existisse, como se fosse um farrapo de papel esquecido, posto de lado sem a menor importância.

Folha – Um exemplo…

Goffredo – Vou dar um exemplo simples, de fácil compreensão. O Poder Executivo legisla no lugar do Legislativo. E como faz isso? Por intermédio de uma medida que tomou o nome de medida provisória. Dizem que essas medidas provisórias acodem a necessidade do país. Que o governo não pode esperar que as leis sejam aprovadas e sancionadas, que precisa de soluções rápidas… Acontece que as medidas provisórias entopem o andamento dos trabalhos do Legislativo. As medidas provisórias constituem um exemplo curioso. A mesma Constituição que as criou estabeleceu condições bem nítidas para seu uso, que estão enumeradas com absoluta clareza: necessidade e urgência. E as medidas provisórias, que entopem o Parlamento, não atendem a essas condições essenciais.

Folha – A conseqüência dessa anomalia é “apenas” de ordem legislativa?

Goffredo – Aos poucos, vai acontecendo em nosso país a descrença no Poder Legislativo, a descrença nas leis. As leis não resolvem, o Legislativo não resolve… Eu acho séria essa situação. Muito séria. O povo aos poucos vai se sentido mal representado por seu órgão de representação política. Onde fica a representação política? O que é um partido político hoje em dia? As leis aos poucos vão caindo em descrença, os legisladores vão deixando aos poucos de ser autênticos representantes do povo. Ora, a democracia é um regime de representação popular. Onde é que estão os nossos representantes? O que eles estão fazendo?

Folha – Mas os partidos…

>Goffredo – Veja, o que é um partido político? Um partido político é um conjunto de seres humanos que se reúnem para ver cumprido um programa, programa este que está registrado no tribunal eleitoral. Tem-se a impressão hoje de que os partidos nem sequer conhecem o seu programa. Onde estão os programas? Eles são completamente ignorados. Mas o partido não se formou para defender as idéias que estão no seu programa? O partido não é isso? Para que o partido surgiu? Surgiu para lutar por determinadas idéias -é para isso que o partido existe.

Folha – Isso acontece na prática?

Goffredo – Na prática acontece que um candidato é eleito. Sua gloriosa missão é ser representante do povo. O que estamos vendo, e acontece freqüentemente -muito freqüentemente-, é que um representante, eleito para defender idéias e programas, muda de partido. Muda de partido! Ora, se mudou de partido, mudou de idéias. E o que acontece com o eleitor? O eleitor fica sem o representante que elegeu para a defesa daquele programa. Eu não vou citar exemplos, mas tenho certeza de que, no mesmo momento em que eu digo essas coisas, muita gente sabe perfeitamente quais são os partidos que mudaram de idéia, que traíram os seus programas.

Folha – O sr. mencionou uma incerteza institucional. O sr. receia a possibilidade de voltarmos a um estado de força?

Goffredo – Nós já sabemos claramente que, não existindo fidelidade partidária, a democracia não consegue se manter. O povo aos poucos se cansa disso, começa a sentir que os partidos não representam suas idéias, que o eleitor vai ficando sem representante. Onde estão os representantes? Representantes do quê? Representantes daqueles que coexistem em razão do partido? Ou é outra coisa qualquer? Estamos sentindo claramente que há uma desfeita total das leis elaboradas por representantes do povo. Eu me lembro da exclamação de Getúlio Vargas quando foram levar a ele um texto de lei, para mostrar que ele não estava cumprindo a lei. Getúlio respondeu irritado: “A lei? Ora a lei!”. Isso na sua ditadura. Felizmente, Getúlio era um homem sensível e levava as coisas com uma certa sabedoria. Mas isso não basta. Não basta. Nós não queremos ditaduras. Nós somos inimigos da ditadura. Governo de um homem, não. Isso nos horroriza. Aqueles que viveram ditaduras em nosso país sabem perfeitamente que a ditadura é o pior dos regimes. E digo isso por conhecimento de causa.

Folha – O senhor viveu duas ditaduras?

Goffredo – Não, até mais. Depois da revolução de 30, foi instituída uma ditadura. Curta, é verdade. Porém isso porque, em 32, houve a Revolução Constitucionalista. A revolução de 32 é chamada de constitucionalista porque o povo queria respeito à Constituição. Foi uma revolução do povo, em nome da Constituição.

Folha – O senhor lutou nessa revolução?

Goffredo – Eu tinha 16 anos. Fui soldado dessa revolução. Como eu não podia usar fuzil, por não ter idade, me puseram como secretário -eu era estudante, sabia ler e escrever, estava no fim do ginásio- do hospital do sangue na frente norte. Eu assisti a diversas batalhas aéreas e acudi, no campo de batalha, os feridos, junto com os idealistas comuns comigo.

Folha – Com 16 anos o sr. já tinha uma clara idéia daquilo contra o que e por que estava lutando?

Goffredo – Nós tínhamos idéias muito claras. Eu era um ledor inveterado dos jornais. Lia dois, três jornais todos os dias. No meu tempo de ginásio, e mesmo antes, no primário, eu já lia jornais. Lia no bonde. Como o curso primário foi no Lyceu Franco-Brasileiro, no fim da Vila Mariana, que ainda era campo -a cidade não havia chegado lá-, a viagem de bonde levava muito tempo e eu ia lendo os jornais. Eu me lembro de chegar com aqueles jornais debaixo do braço e as pessoas me perguntavam: “Para que isso? Para que tanto jornal?”. E eu dizia: “Porque eu quero ler”. O pessoal achava curioso. De forma que eu sabia muito claramente que estava lutando pela Constituição. Pela Constituição. Nós não queríamos ditadura. Lutávamos pela Constituição. E realmente obtivemos a Constituição de 34, que não era grande coisa, mas, enfim, era uma tentativa de democratização. Um regime democrático, pseudo-democrático, que durou até 37, quando Getúlio fechou o Legislativo e instituiu uma ditadura, que durou até 45. Em 45, ele foi convidado a se retirar.

Folha – O senhor chamou a democracia de 34 a 37 de pseudo-democracia. Hoje pode-se dizer que estamos em uma pseudo-democracia?

Goffredo – Olha… [pausa] Estamos em uma pseudo-democracia porque os nossos representantes mudam de partido e, portanto, onde é que ficaram os ideais que estão nos programas? Onde é que está a fidelidade partidária? Como é que pode existir democracia sem fidelidade partidária?

Folha – Não é uma democracia de verdade, então?

Goffredo – Não. Não é uma democracia de verdade porque o eleitor se sente abandonado por seu candidato que mudou de partido. Olha, a democracia não é isso. De maneira que, evidentemente, não estamos em uma democracia plena. Agora, eu devo dizer: o remédio não é mudar a Constituição. Não, não! Em absoluto, não é isso. O remédio é cumprir a Constituição. É preciso que a Constituição seja respeitada como a Lei Maior, a Lei Magna da disciplina da convivência humana.