carta aos brasileiros

1 – Texto integral da Carta aos Brasileiros, lida no pátio das Arcadas em 8 de agosto de 1977

Carta aos Brasileiros 

Das Arcadas do Largo de São Francisco, do “Território ­Livre” da Academia de Direito de São Paulo, dirigimos, a todos os brasi­leiros esta Mensagem de Aniversário, que é a Proclamaçõo de Princípios de nossas convicções políticas.

Na qualidade de herdeiros do patrimônio recebido de nossos maiores, ao ensejo do Sesquicentenário dos Cursos Jurídicos no Brasil, queremos dar o testemunho, para as gerações futuras, de que os ideais do Estado de Direito, apesar da conjuntura da hora presente, vivem e atuam, hoje como ontem, no espírito vigilante da nacionalidade.

Queremos dizer, sobretudo aos moços, que nós aqui estamos e aqui permanecemos, decididos, como sempre, a lutar pelos Direi­tos Humanos, contra a opressão de todas as ditaduras.

Nossa fidelidade de hoje aos princípios basilares da Democracia é a mesma que sempre existiu à sombra das Arcadas: fidelidade indefectível e operante, que escreveu as Páginas da Liberdade, na História do Brasil.

Estamos certos de que esta Carta exprime o pensamento ­comum de nossa imensa e poderosa Família da Família formada, durante um século e meio, na Academia do Largo de São Francisco, na Faculdade de Direito de Olinda e Recife, e nas ­outras grandes Faculdades de Direito do Brasil – Família indestrutível, espalhada por todos os rincões da Pátria, e da qual já saíram, na vigência de Constituições democráticas, dezessete Presidentes da República. 

1. O Legal e o Legítimo 

Deixemos de lado o que não é essencial.

O que aqui diremos não tem a pretensão de constituir novidade. Para evitar interpretações errôneas, nem sequer nos vamos referir a certas conquistas sociais do mundo moderno. Deliberada­mente, nada mais diremos do que aquilo que, de uma ou outra maneira, vem sendo ensinado, ano após ano, nos cursos normais das Faculdades de Direito. E não transporemos os limites do ­campo científico de nossa competência.

Partimos de uma distinção necessária. Distinguimos entre o legal e o legítimo. 

Toda lei é legal, obviamente. Mas nem toda lei é legítima. Sustentamos que só é legítima a lei provinda de fonte legítima. 

Das leis, a fonte legítima primária é a comunidade a que as leis dizem respeito; é o Povo ao qual elas interessam – comunidade e Povo em cujo seio as idéias das leis germinam, como produtos naturais das exigências da vida.

Os dados sociais, as contingências históricas da coletividade, as contradições entre o dever teórico e o comportamento efetivo, a média das aspirações e das repulsas populares, os anseios domi­nantes do Povo, tudo isto, em conjunto, é que constitui o manancial de onde brotam normas espontâneas de convivência, originais intentos de ordenação, às vezes usos e costumes, que irão inspirar a obra do legislador.

Das forças mesológicas, dos fatores reais, imperantes na comu­nidade, é que emerge a alma dos mandamentos que o legislador, na forja parlamentar, modela em termos de leis legítimas.

fonte legítima secundária das leis é o próprio legislador, ou o conjunto dos legisladores de que se compõem os órgãos legislativos do Estado. Mas o legislador e os órgãos legislativos somente são fontes legítimas das leis enquanto forem representantes autorizados da comunidade, vozes oficiais do Povo, que é a fonte primária das leis.

O único outorgante de poderes legislativos é o Povo. Somente o Povo tem competência para escolher seus representantes. Somente os Representantes do Povo são legisladores legítimos.

A escolha legítima dos legisladores só se pode fazer pelos processos fixados pelo Povo em sua Lei Magna , por ele também elaborada, e que é a Constituição.

Consideramos ilegítimas as leis não nascidas do seio da cole­tividade, não confeccionadas em conformidade com os processos prefixados pelos Representantes do Povo, mas baixadas de cima, como carga descida na ponta de um cabo.

Afirmamos, portanto, que há uma ordem jurídica legítima e uma ordem jurídica ilegítima. ordem imposta , vinda de cima para baixo, é ordem ilegítima . Ela é ilegítima porque, antes de mais nada, ilegítima é a sua origem. Somente é legítima a ordem que nasce , que tem raízes, que brota da própria vida, no seio do Povo.

Imposta, a ordem é violência. Às vezes, em certos momentos de convulsão social, apresenta-se como remédio de urgência. Mas, em regra, é medicação que não pode ser usada por tempo dilatado, porque acaba acarretando males piores do que os causados pela doença.

2. A Ordem, o Poder e a Força 

Estamos convictos de que há um senso leviano e um senso grave da ordem.

O senso leviano da ordem é o dos que se supõem imbuídos da ciência do bem e do mal, conhecedores predestinados do que deve e do que não deve ser feito, proprietários absolutos da verdade, ditadores soberanos do comportamento humano.

O senso grave da ordem é o dos que abraçam os projetos resultantes do entrechoque livre das opiniões, das lutas fecundas entre idéias e tendências, nas quais nenhuma autoridade se sobrepõe às Leis e ao Direito.

Ninguém se iluda. A ordem social justa não pode ser gerada pela pretensão de governantes prepotentes. A fonte genuína da ordem não é a Força, mas o Poder.

O Poder, a que nos referimos, não é o Poder da Força, mas um Poder de persuasão.

Sustentamos que o Poder Legítimo é o que se funda naquele senso grave da ordem, naqueles projetos de organização social, nascidos do embate das convicções e que passam a preponderar na coletividade e a ser aceitos pela consciência comum do Povo, como os melhores.

O Governo, com o senso grave da ordem, é um Governo cheio de Poder. Sua legitimidade reside no prestígio popular de quase todos os seus projetos. Sua autoridade se apóia no consenso da maioria.

Nisto é que está a razão da obediência voluntária do Povo aos Governos legítimos.

Denunciamos como ilegítimo todo Governo fundado na ­Força. Legítimo somente o é o Governo que for órgão do Poder.

Ilegítimo é o Governo cheio de Força e vazio de Poder.

A nós nos repugna a teoria de que o Poder não é mais do que a Força. Para nossa consciência jurídica, o Poder é produto do consenso popular e a Força um mero instrumento do Governo.

Não negamos a utilidade de tal instrumento. Mas o que afirmamos é que a Força é somente útil na qualidade de meio , para assegurar o respeito pela ordem jurídica vigente e não para subvertê-la ou para impor reformas na Constituição.

A Força é um meio de que se utiliza o Governo fiel aos projetos do Povo. Desgraçadamente, também a utiliza o Governo ­infiel. O Governo fiel a utiliza a serviço do Poder. O Governo infiel, a serviço do arbítrio.

Reconhecemos que o Chefe do Governo é o mais alto funcionário nos quadros administrativos da Nação. Mas negamos que ele seja o mais alto Poder de um País. Acima dele, reina o Poder de uma Idéia: reina o Poder das convicções que inspiram as 
linhas mestras da Política nacional. Reina o senso grave da Ordem, que se acha definido na Constituição.

3. A Soberania da Constituição 

Proclamamos a soberania da Constituição.

Sustentamos que nenhum ato legislativo pode ser tido como lei superior à Constituição.

Uma lei só é válida se a sua elaboração obedeceu aos preceitos constitucionais, que regulam o processo legislativo. Ela só é válida se, em seu mérito, suas disposições não se opõem ao pensa­mento da Constituição.

Aliás, uma lei inconstitucional é lei precária e efêmera, ­porque só é lei enquanto sua inconstitucionalidade não for declarada pelo Poder Judiciário. Ela não é propriamente lei, mas apenas uma camuflagem da lei. No conflito entre ela e a Constituição, o que cumpre, propriamente, não é fazer prevalecer a Constituição, mas é dar pela nulidade da lei inconstitucional. Embora não seja razoável considerá-la inexistente, uma vez que a lei existe como objeto do julgamento que a declara inconstitucional, ela não tem, em verdade, a dignidade de uma verdadeira lei.

Queremos consignar aqui um simples mas fundamental princí­pio. Da conformidade de todas as leis com o espírito e a letra da Constituição dependem a unidade e coerência do sistema jurídico nacional.

Observamos que a Constituição também é uma lei. Mas é a Lei Magna. O que, antes de tudo, a distingue nitidamente das outras leis é que sua elaboração e seu mérito não se submetem a disposições de nenhuma lei superior a ela. Aliás, não podemos admitir como legítima lei nenhuma que lhe seja superior. Entretanto, sendo lei, a Constituição há de ter, também, sua fonte legítima.

Afirmamos que a fonte legítima da Constituição é o Povo.

4. O Poder Constituinte 

Costuma-se dizer que a Constituição é obra do Poder. Sim, a Constituição é obra do Poder Constituinte. Mas o que se há de acrescentar, imediatamente, é que o Poder Constituinte pertence ao Povo, e ao Povo somente.

Ao Povo é que compete tomar a decisão política funda mental, que irá determinar os lineamentos da paisagem jurídica em que deseja viver.

Assim como a validade das leis depende de sua conformação com os preceitos da Constituição, a legitimidade da Constituição se avalia pela sua adequação às realidades sócioculturais da comu­nidade para a qual ela é feita.

Disto é que decorre a competência da própria comunidade para decidir sobre o seu regime político; sobre a estrutura de seu Governo e os campos de competência dos órgãos principais de que o Governo se compõe; sobre os processos de designação de seus governantes e legisladores.

Disto, também, é que decorre a competência do Povo para fazer a Declaração dos Direitos Humanos fundamentais, assim como para instituir os meios que os assegurem.

Em conseqüência, sustentamos que somente o Povo, por meio de seus Representantes, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte , ou por meio de uma Revolução vitoriosa, tem competência para elaborar a Constituição; que somente o Povo tem compe­tência para substituir a Constituição vigente por outra, nos casos em que isto se faz necessário.

Sustentamos, igualmente, que só o Povo, por meio de seus Representantes no Parlamento Nacional, tem competência para emendar a Constituição.

E sustentamos, ainda, que as emendas na Constituição não se podem fazer como se fazem as alterações na legislação ordinária. Na Constituição, as emendas somente se efetuam, quando apresentadas, processadas e aprovadas em conformidade com preceitos especiais, que a própria Constituição há de enunciar, preceitos estes que têm por fim conferir à Lei Magna do Povo uma estabilidade maior do que a das outras leis.

Declaramos ilegítima a Constituição outorgada por autoridade que não seja a Assembléia Nacional Constituinte, com a única exceção daquela que é imediatamente imposta por meio de uma Revolução vitoriosa, realizada com a direta participação do Povo.

Declaramos ilegítimas as emendas na Constituição que não forem feitas pelo Parlamento, com obediência, no encami­nhamento, na sua votação e promulgação, a todas as formalidades do rito, que a própria Carta Magna prefixa, em disposições expressas.

Não nos podemos furtar ao dever de advertir que o exercício do Poder Constituinte, por autoridade que não seja o Povo, configura, em qualquer Estado democrático, a prática de usurpação de poder político.

Negamos peremptoriamente a possibilidade de coexistência, num mesmo País, de duas ordens constitucionais legítimas, embo­ra diferentes uma da outra. Se uma ordem é legítima, por ser obra da Assembléia Constituinte do Povo, nenhuma outra ordem, provinda de outra autoridade, pode ser legítima.

Se, ao Poder Executivo fosse facultado reformar a Constituição, ou submetê-la a uma legislação discricionária, a Constituição perderia, precisamente, seu caráter constitucional e passaria a ser um farrapo de papel.

A um farrapo de papel se reduziria o documento solene, em que a Nação delimita a competência dos órgãos do Governo, para resguardar, zelosamente, de intromissões cerceadoras dos poderes públicos, o campo de atuação da liberdade humana.

5. O Estado de Direito e o Estado de Fato 

Proclamamos que o Estado legítimo é o Estado de Direito, e que o Estado de Direito é o Estado Constitucional. 

O Estado de Direito é o Estado que se submete ao princípio de que Governos e governantes devem obediência à ­Constituição.

Bem simples é este princípio, mas luminoso, porque se ergue, como barreira providencial, contra o arbítrio de vetustos e reniten­tes absolutismos. A ele as instituições políticas das Nações somente chegaram após um longo e acidentado percurso na Histó­ria da Civilização. Sem exagero, pode dizer-se que a consagração desse princípio representa uma das mais altas conquistas da cultura, na área da Política e da Ciência do Estado.

O Estado de Direito se caracteriza por três notas essenciais, a saber: por ser obediente ao Direito; por ser guardião dos Direitos; e por ser aberto para as conquistas da cultura jurídica. 

É obediente ao Direito, porque suas funções são as que a Constituição lhe atribui, e porque, ao exercê-las, o Governo não ultrapassa os limites de sua competência.

É guardião dos Direitos, porque o Estado de Direito é o Estado-Meio, organizado para servir o ser humano, ou seja, para assegurar o exercício das liberdades e dos direitos subjetivos das ­pessoas.

é aberto para as conquistas da cultura jurídica , porque o Estado de Direito é uma democracia, caracterizado pelo regime de representação popular nos órgãos legislativos e, portanto, é um Estado sensível às necessidades de incorporar à legislação as normas tendentes a realizar o ideal de uma Justiça cada vez mais perfeita.

Os outros Estados, os Estados não constitucionais, são os Esta­dos cujo Poder Executivo usurpa o Poder Constituinte. São os Estados cujos chefes tendem a se julgar onipotentes e oniscientes, e que acabam por não respeitar fronteiras para sua competência. São os Estados cujo Governo não tolera crítica e não permite contestação. São os Estados-Fim, com Governos obcecados por sua própria segurança, permanentemente preocupados com sua sobrevivência e continuidade. São Estados opressores, que muitas vezes se caracterizam por seus sistemas de repressão, erguidos contra as livres manifestações da cultura e contra o emprego normal dos meios de defesa dos direitos da personalidade.

Esses Estados se chamam Estados de Fato. Os otimistas lhes dão o nome de Estados de Exceção. Na verdade, são Estados Autoritários, que facilmente descambam para a Ditadura.

Ilegítimos, evidentemente, são tais Estados, porque seu ­Poder Executivo viola o princípio soberano da obediência dos Governos à Constituição e às leis.

Ilegítimos, em verdade, porque seus Governos não têm ­Poder, não têm o Poder Legítimo, que definimos no início desta Carta.

Destituídos de Poder Legítimo, os Estados de Fato duram enquanto puderem contar com o apoio de suas forças armadas.

Sustentamos que os Estados de Fato, ou Estados de Exceção, são sistemas subversivos, inimigos da ordem legítima, promotores da violência contra Direitos Subjetivos, porque são Estados contrários ao Estado Constitucional, que é o Estado de Direito, o Estado da Ordem Jurídica.

Nos países adiantados, em que a cultura política já organizou o Estado de Direito, a insólita implantação do Estado de Fato ou de Exceção – do Estado em que o Presidente da República volta a ser o monarca lege solutus – constitui um violento retrocesso no caminho da cultura.

Uma vez reimplantado o Estado de Fato, a Força torna a governar, destronando o Poder. Então, bens supremos do espírito humano, somente alcançados após árdua caminhada da inteligência, em séculos de História, são simplesmente ignorados. Os valores mais altos da Justiça, os direitos mais sagrados dos homens, os processos mais elementares de defesa do que é de cada um, são vilipendia­dos, ridicularizados e até ignorados, como se nunca tivessem ­existido.

O que os Estados de Fato, Estados Policiais, Estados de Exce­ção, Sistemas de Força apregoam é que há Direitos que devem ser suprimidos ou cerceados, para tornar possível a consecução dos ideais desses próprios Estados e Sistemas.

Por exemplo, em lugar dos Direitos Humanos, a que se refere a Declaração Universal das Nações Unidas, aprovada em 1948; em lugar do habeas corpus; em lugar do direito dos cidadãos de eleger seus governantes, esses Estados e Sistemas colocam, freqüentemente, o que chamam de Segurança Nacional e Desenvolvimento Econômico. 

Com as tenebrosas experiências dos Estados Totalitários euro­­peus, nos quais o lema é, e sempre foi, “Segurança e Desenvolvimento”, aprendemos uma dura lição. Aprendemos que a Dita­dura é o regime, por excelência, da Segurança Nacional e do Desenvolvimento Econômico. O Nazismo, por exemplo, tinha por meta o binômio Segurança e Desenvolvimento. Nele ainda se inspira a ditadura soviética.

Aprendemos definitivamente que, fora do Estado de Direito, o referido binômio pode não passar de uma cilada. Fora do Estado de Direito, a Segurança, com seus órgãos de terror, é o caminho da tortura e do aviltamento humano; e o Desenvolvimento, com o malabarismo de seus cálculos, a preparação para o descalabro econômico, para a miséria e a ruína.

Não nos deixaremos seduzir pelo canto das sereias de ­quaisquer Estados de Fato, que apregoam a necessidade de Segurança e Desenvolvimento, com o objetivo de conferir legitimidade a seus atos de Força, violadores freqüentes da Ordem Constitucional.

Afirmamos que o binômio Segurança e Desenvolvimento não tem o condão de transformar uma Ditadura numa Democracia, um Estado de Fato num Estado de Direito.

Declaramos falsa a vulgar afirmação de que o Estado de Direi­to e a Democracia são “a sobremesa do desenvolvimento econômico”. O que temos verificado, com freqüência, é que desenvolvimentos econômicos se fazem nas mais hediondas ditaduras.

Nenhum País deve esperar por seu desenvolvimento econômico, para depois implantar o Estado de Direito. Advertimos que os Sistemas, nos Estados de Fato, ficarão permanentemente à espe­ra de um maior desenvolvimento econômico, para nunca implantar o Estado de Direito.

Proclamamos que o Estado de Direito é sempre primeiro , porque primeiro estão os direitos e a segurança da pessoa humana. Nenhuma idéia de Segurança Nacional e de Desenvolvimento Econômico prepondera sobre a idéia de que o Estado existe para servir o homem. 

Estamos convictos de que a segurança dos direitos da pessoa humana é a primeira providência para garantir o verdadeiro ­desenvolvimento de uma Nação.

Nós queremos segurança e desenvolvimento. Mas queremos segurança e desenvolvimento dentro do Estado de Direito. 

Em meio da treva cultural dos Estados de Fato, a chama acesa da consciência jurídica não cessa de reconhecer que não existem, para Estado nenhum, ideais mais altos do que os da Liberdade e da Justiça.

6. A Sociedade Civil e o Governo 

O que dá sentido ao desenvolvimento nacional, o que confere legitimidade às reformas sociais, o que dá autenticidade às renovações do Direito, são as livres manifestações do Povo, em seus órgãos de classe, nos diversos ambientes da vida.

Quem deve propulsionar o desenvolvimento é o Povo organizado, mas livre, porque ele é que tem competência, mais do que ninguém, para defender seus interesses e seus direitos.

Sustentamos que uma Nação desenvolvida é uma Nação que pode manifestar e fazer sentir a sua vontade. É uma Nação com organização popular, com sindicatos autônomos, com centros de debate, com partidos autênticos, com veículos de livre informação. É uma Nação em que o Povo escolhe seus dirigentes, e tem meios de introduzir sua vontade nas deliberações governamentais. É uma Nação em que se acham abertos os amplos e francos canais de comunicação entre a Sociedade Civil e o Governo.

Nos Estados de Fato, esses canais são cortados. Os Governos se encerram em Sistemas fechados, nos quais se instalam os ­“donos do Poder”. Esses “donos do Poder” não são, em verdade, donos do Poder Legítimo: são donos da Força. O que chamam de Poder não é o Poder oriundo do Povo.

A órbita da política não vai além da área palaciana, reduto aureolado de mistério, hermeticamente trancado para a Socie­dade Civil.

Nos Estados de Fato, a Sociedade Civil é banida da vida política da Nação. Pelos chefes do Sistema, a Sociedade Civil é trata­da como um confuso conglomerado de ineptos, sem discernimento e sem critério, aventureiros e aproveitadores, inca­pazes para a vida pública, destituídos de senso moral e de idealismo cívico. Uma ­multidão de ovelhas negras, que precisa ser conti­nuamente contida e sempre tangida pela inteligência soberana do sábio tutor da Nação.

Nesses Estados, o Poder Executivo, por meio de atos arbitrários, declara a incapacidade da Sociedade Civil, e decreta a sua ­interdição.

Proclamamos a ilegitimidade de todo sistema político em que fendas ou abismos se abrem entre a Sociedade Civil e o Governo.

Chamamos de Ditadura o regime em que o Governo está separado da Sociedade Civil. Ditadura é o regime em que a ­Sociedade Civil não elege seus Governantes e não participa do Governo. Ditadura é o regime em que o Governo governa sem o Povo. Ditadura é o regime em que o Poder não vem do Povo. Ditadura é o regime que castiga seus adversários e proíbe a contes­tação das razões em que ela se procura fundar.

Ditadura é o regime que governa para nós, mas sem nós.

Como cultores da Ciência do Direito e do Estado, nós nos recusamos, de uma vez por todas, a aceitar a falsificação dos conceitos. Para nós a Ditadura se chama Ditadura, e a Democracia se chama Democracia.

Os governantes que dão o nome de Democracia à Ditadura nunca nos enganaram e não nos enganarão. Nós saberemos que eles estarão atirando, sobre os ombros do povo, um manto de irrisão.

7. Os Valores Soberanos do Homem, Dentro do Estado de Direito 

Neste preciso momento histórico, reassume extraordinária importância a verificação de um fato cósmico. Até o advento do Homem no Universo, a evolução era simples mudança na organização física dos seres. Com o surgimento do Homem, a evolução passou a ser, também, um movimento da consciência. 

Seja-nos permitido insistir num truísmo: a evolução do ­homem é a evolução de sua consciência; e a evolução da consciência é a evolução da cultura.

A nossa tese é a de que o homem se aperfeiçoa à medida que incorpora valores morais ao seu patrimônio espiritual. ­Sustentamos que os Estados somente progridem, somente se aprimoram, ­quando tendem a satisfazer ansiedades do coração humano, assegurando a fruição de valores espirituais, de que a importância da vida indi­vidual depende.

Sustentamos que um Estado será tanto mais evoluído quanto mais a ordem reinante consagre e garanta o direito dos cidadãos de serem regidos por uma Constituição soberana, elaborada livre­mente pelos Representantes do Povo, numa Assembléia Nacional Constituinte; o direito de não ver ninguém jamais submetido a disposições de atos legislativos do Poder Executivo, contrários aos preceitos e ao espírito dessa Constituição; o direito de ter um Governo em que o Poder Legislativo e o Poder Judiciário ­possam cumprir sua missão com independência, sem medo de represálias e castigos do Poder Executivo; o direito de ter um Poder ­Executivo limitado pelas normas da Constituição soberana, elaborada pela Assembléia Nacional Constituinte; o direito de escolher, em ­pleitos democráticos, seus governantes e legisladores; o direito de ser eleito governante ou legislador, e o de ocupar cargos na administração pública; o direito de se fazer ouvir pelos Poderes Públicos, e de introduzir seu pensamento nas decisões do Governo; o direito à liberdade justa, que é o direito de fazer ou de não fazer o que a lei não proíbe; o direito à igualdade perante a lei que é o direito de cada um de receber o que a cada um pertence; o direito à intimidade e à inviolabilidade do domicílio; o direito à propriedade e o de conservá-la; o direito de organizar livremente sindicatos de trabalhadores, para que estes possam lutar em defesa de seus interesses; o direito à presunção de inocência, dos que não forem declarados culpados, em processo regular; o direito de imediata e ampla defesa dos que forem acusados de ter praticado ato ilícito; o direito de não ser preso, fora dos casos previstos em lei; o direito de não ser mantido preso, em regime de inco­municabilidade, fora dos casos da lei; o direito de não ser conde­nado a nenhuma pena que a lei não haja cominado antes do delito; o direito de nunca ser submetido à tortura, nem a tratamento desumano ou degradante; o direito de pedir a manifestação do Poder Judiciário, sempre que houver interesse legítimo de alguém; o direito irrestrito de impetrar habeas corpus; o direito de ter Juízes e Tribunais independentes, com prerrogativas que os ­tornem refratários a injunções de qualquer ordem; o direito de ter uma imprensa livre; o direito de fruir das obras de arte e cultura, sem cortes ou restrições; o direito de exprimir o pensamento, sem qualquer censura, ressalvadas as penas legalmente previstas, para os crimes de calúnia, difamação e injúria; o direito de resposta; o direito de reunião e associação.

Tais direitos são valores soberanos. São ideais que inspiram as ordenações jurídicas das nações verdadeiramente civilizadas. São princípios informadores do Estado de Direito.

Fiquemos apenas com o essencial.

O que queremos é ordem. Somos contrários a qualquer tipo de subversão. Mas a ordem que queremos é a ordem do Estado de Direito. 

A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já. 

Goffredo Telles Júnior 

NOTA: 

Antes de sua leitura, a “CARTA” foi subscrita pelos seguintes “ Signatários – Lançadores”: 

José Ignácio Botelho de Mesquita, Professor Titular da Faculdade Direito da USP; Fábio Konder Comparato, Professor Titular da Faculdade Direito da USP; Modesto Carvalhosa, Professor da Faculdade Direito da USP e Presidente da Associação dos Docentes da USP; Irineu Strenger, Professor Titular da ­Faculdade Direito da USP; Dalmo de Abreu Dallari, Professor Titular da ­Faculdade Direito da USP e Presidente da Comissão Justiça e Paz da Cúria Metropolitana de SP; Mário Simas, Vice-Presidente da Comissão Justiça e Paz; Geraldo Ataliba, Professor da Faculdade Direito da USP e da Faculdade Direito da PUC, ex-Reitor da PUC; José Afonso da Silva, Professor Titular da Faculdade Direito da USP; Miguel Reale Júnior, Professor da Faculdade de Direito da USP; Ignácio da Silva Telles, Professor da Faculdade de Direito da USP; Tércio Sampaio Ferraz, Professor da Faculdade de Direito da USP; Alcides Jorge Costa, Professor da Faculdade de Direito da USP; Gláucio Veiga, Professor da Faculdade de Direito da USP e da Faculdade Direito do Recife; Mário Sérgio Duarte Garcia, Vice-Presidente da Ordem dos Advogados de SP; Antônio Cândido de Mello e Souza, Professor Titular da USP; Paulo Duarte, Professor Catedrático da USP, aposentado; André Franco Montoro, Professor Catedrático da PUC e Senador; Flávio Flores da Cunha Birrembach, Professor da Faculdade Direito da PUC; José Carlos Dias, Advogado, Consultor Jurídico da Comissão Justiça e Paz, da Cúria Metropolitana de SP; Aliomar Baleeiro, ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal e Professor da Faculdade Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Hermes Lima, ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal e Professor da Faculdade de Direito da Universidade Fedederal do Rio Janeiro; Heleno Fragoso, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Janeiro; João Batista de Arruda Sampaio, Desembargador do TJSP, aposentado; Raul da Rocha Medeiros, Desembargador do TJSP, aposentado; Odilon da Costa Manso, Desembargador do TJSP, aposentado; Darcy de Arruda Miranda, Desembargador TJSP, aposentado; Hélio Bicudo, Procurador da Justiça de SP; Dom Cândido Padim, Bispo de Bauru, Bacharel pela Faculdade de Direito da USP; Sérgio Bermudes, Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados; Tércio Lins e Silva, Conselheiro da Ordem dos Advogados do Rio; Cid Riedel, Conselheiro da Ordem dos Advogados do Distrito Federal; Ruy Homem de Mello Lacerda, ex-Presidente da Associação de dos Advogados de SP e Conselheiro; Walter Ceneviva, Vice-Presidente da Associação de Advogados; Sérgio Marques da Cruz, Conselheiro e ex-Presidente da Associação dos Advogados; Luciano de Carvalho, Secretário da Educação e Fazenda, do ­Governo Carvalho Pinto; João Nascimento Franco, Conselheiro do Instituto do Advogado e Ordem Advogado; Domingos Marmo, ex-Conselheiro da Ordem dos Advogados; Walter Laudísio, Conselheiro da Associação dos Advogados; Homero Alves de Sá, Conselheiro da Associação dos Advogados; Salim Arida, Conselheiro da Associação dos Advogados; José Carlos da Silva Arouca, Conselheiro da ­Associação dos Advogados; Joaquim Pacheco Cyrillo, Conseslheiro da Associação dos Advogados; Rubens Ignácio de Souza Rodrigues, Conselheiro da ­Associação dos Advogados; Jayme Cueva, Conselheiro da Associação dos Advogados; Maria Luiza Flores da Cunha Birrenbach, Procuradora do Município de SP; José Gregori, Advogado e Professor da PUC; Lauro Malheiros Filho, Advogado; Aldo Lins e Silva, Advogado; José Roberto Leal de Carvalho, Advogado; Cantídio Salvador Filardi, ex-Conselheiro da Ordem dos Advogados; ­Antônio Carlos Malheiros, Advogado; Luiz Eduardo Greenhalgh, Advogado; Márcia Ramos de Souza, Advogado; Arnaldo Malheiros, Advogado; Dione ­Prado Stamato, Procuradora do Estado de SP; Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, Advogado; Pedro Garaude Júnior, Advogado; Alberto Pinto Horta Júnior, Advogado; Manoel Ferraz Whitaker Salles, Advogado; Maria Eugênia Raposo da Silva Telles, Advogada; Edmur de Andrade Nunes Pereira Neto, Advogado; Márcia L. B. Jaime, Advogado; Areobaldo Espínola de Oliveira Lima Filho, Advogado; Alexandre Thiollier Filho, Advogado; Jayme A. da Silva Telles, Advogado; Clóvis de Gouvêa Franco, Advogado; Agripino Doria, Advogado; Edgard de Novaes França Neto, Advogado; Edgard de Novaes França Filho, Advogado; José V. Bernardes, Advogado; Luiz Baptista Pereira de Almeida Filho, Advogado; Luiz Baptista Pereira de Almeida, Advogado; Marcelo Duarte de Oliveira, sacerdote e bacharel, Advogado; Celso Cintra Mori, Advogado; Clarita Carameli, Advogado; Paulo Pereira, Advogado; José Melado Moreno, Advogado; Maria Ferreira Lara, Advogada; Pedro Luiz Aguirre Menin, Advogado; José Nuzzi Neto, Advogado; João Henrique de Almeida Santos, Advogado; Carlos Alberto Queiroz, Advogado; Jayme Queiroz Lopes Filho, Advogado; Paulo R. C. Lara, Advogado; Walter Arruda Júnior, Advogado; Joaquim Renato Correia Freire, Advogado; Darcy Paulilo dos Passos, Advogado; Sílvio Roberto Correia, Advogado; Francisco Mencucci, Advogado; Antônio Costa Correia, Advogado; Francisco Otávio de Almeida Prado, Advogado; Marco Antônio Rodrigues Nahun, Advogado; Léo Duarte de Oliveira, Advogado.

2 – Artigo “A Ante-véspera da Carta aos Brasileiros”

Mataram Wladimir Herzog nos porões do Doi-Codi.

Vlado era Diretor de Jornalismo da TV Cultura. Era amigo de todo mundo. Foi morto sob tortura, em Outubro de 1975.

De seu suplício, ouvi circunstanciado relato, feito pelo jornalista Rodolfo Osvaldo Konder, no escritório do advogado José Carlos Dias. Esse depoimento, tomado por termo, foi testemunhado por mim, pelos juristas Prudente de Moraes Neto, Maria Luíza Flo­res da Cunha Bierrenbach, José Roberto Leal de Carvalho e Arnal­do Malheiros Filho, e pelo padre Olivo Caetano Zolin. Rodolfo Kon­der estivera também preso naqueles mesmos antros do Departamento de Operações Internas (DOI). Fôra acareado com seu colega. Depois, escutara os gritos e gemidos do amigo, em sessões bárbaras de tortura.

A morte de Wladimir Herzog causou comoção enorme. Os es­tudantes da Academia deixaram as salas de aula, aglomeraram-se ruidosamente no Pátio. O Centro Acadêmico XI de Agosto improvisou um comício no Largo, e seus estupendos oradores vituperaram os horrores do regime. Os bispos, na Conferência de Itaici, denun­ciaram as mortes praticadas sob tortura, e lançaram um brado de protesto. A Ordem dos Advogados do Brasil manifestou sua revolta contra a tortura e o assassinato nas prisões, e pôs-se à disposi­ção de Clarice, mulher de Herzog, para os pleitos que ela quisesse intentar em juízo, contra os responsáveis pela morte de seu ma­rido. Todos os órgãos da imprensa, escrita e falada, e todas as entidades representativas da mídia clamaram contra o assassínio de Vlado e contra as atrocidades praticadas pelo aparelho repressivo do II Exército.

A Missa do 7° Dia foi celebrada na Catedral da Praça da Sé. Oficiou-a o Cardeal Arcebispo Dom Evaristo Arns, que foi as­sistido por dois Rabinos e um Pastor protestante. Grande multidão acorreu à cerimônia, superlotou o templo, comprimiu-se nas escada­rias, tomou os espaços contíguos. A Missa foi sucedida com emocio­nante comício de protesto contra a Ditadura, e com o ” Caminhando ” de Geraldo Vandré, entoado pelo povo, diante da Catedral.

O implacável delegado Erasmo Dias quis, em vão, bloquear as vias de acesso à Praça, e mais uma vez deu motivo para ser odiado.

Maria Eugenia descera um degrau da escadaria, na minha frente. A polícia montara suas máquinas fotográficas sobre gran­des tripés, para nos apanhar no que ela provavelmente julgava ser “flagrante delito de subversão”. Inclinei-me para a minha mulher, e sussurrei-lhe: “Estou me lembrando de Alexandre Vannucchi, que se acha no céu, assistindo a tudo isto”. 

Vannucchi havia sido estudante de Geologia na USP, e re­presentante dos alunos na Congregação de sua Escola. Preso em 1973, foi ocultado pelo DOI, durante muitos dias. O Reitor, Pro­fessor Miguel Reale, envidou todos os recursos de que dispunha, para encontrar o menino. Quando dele teve notícia, Alexandre Vannuc­chi estava morto. Por depoimentos posteriores de várias testemu­nhas presenciais — pessoas que também estiveram encarceradas nes­sa ocasião, nas mesmas dependências daquele inferno — , o que se soube era que Vannucchi sofrera torturas atrozes, por longos dias; fora seviciado até morrer.

Senti a mão de Maria Eugenia, apertando o meu braço. A emoção em toda a Praça era enorme. A revolta se apossava dos corações da multidão, à medida que crescia para os céus a canção de Vandré.

Muitos, sem dúvida, recordavam que, apenas dois meses antes da morte de Wladimir Herzog, os verdugos da repressão haviam torturado até a morte um outro idealista: o tenente José Ferreira de Almeida.

Meu Deus ! Até quando, até quando aquilo ia continuar?

Pois bem, quatro meses depois do assassinato de Wladimir Herzog, e da imensa manifestação popular na Praça da Sé, o operário metalúrgico Manuel Fiel Filho foi morto sob tortura, naquelas mesmas dependências do Departamento de Operações Internas.

O fato, ocorrido em 17 de Janeiro de 1976, causou colossal impacto. Os trabalhadores de todo o Brasil largaram as fábricas e os escritórios, arrostaram os perigos da repressão, foram para as ruas e praças.

Incontinenti, o General Presidente da República retirou do comando do II Exército o General Ednardo D’Avila Melo, e o substituiu pelo General Dilermando Gomes Monteiro, que recebeu, certamente, instruções muito especiais.

Cessaram as torturas. Ao menos, notícias de torturas não mais nos chegaram. Tínhamos a impressão de que, sob o novo comando militar, os torturadores entraram em recesso.

Mas, embora sem torturas, arbitrariedades de toda ordem e violações dos direitos continuavam a ser a marca infamante de um regime discricionário.

Contra as iniqüidades da Ditadura, vozes audazes se ouviram, nos plenários das Câmaras. Então, o que vimos foi a mutilação do Poder Legislativo, com a cassação sumária dos mandatos de congressistas. Por terem ousado criticar os órgãos de segurança, por terem denunciado violações de Direitos Humanos, representantes do povo foram castigados com detenções iníquas e supressão drástica de direitos políticos.

Assim, ante a Nação silenciada, foram cassados os mandatos dos Deputados Marcelo Gatto (Federal) e Nelson Fabiano Sobrinho (Estadual), ambos de São Paulo, em Janeiro de 1976; Nadyr Rosseti e Amaury Muller (Federais), ambos do Rio Grande do Sul, em Março de 1976; Lysâneas Maciel (Federal), do Rio de Janeiro, em Abril de 1976; Leonel Júlio, Presidente da Assembléia Legislativa de São Paulo, em Dezembro de 1976.

Eu me perguntava: Mas, afinal, tanta prepotência, tanta ditadura, para quê?

O que os Generais disseram, quando derrubaram João Goulart e se apossaram do Governo em Março e Abril de 1964, o que disseram foi que era preciso “salvar o Brasil”.

Para salvar o Brasil, as Forças Armadas submeteram o País a um regime de força. De força, para quê? Para resgatar o País, libertá-lo dos demolidores das instituições; para aniquilar a subversão e restabelecer a ordem nacional. Que ordem? A ordem fundada na Doutrina da Segurança Nacional , toda voltada para os Objetivos Nacionais Permanentes : a ordem definida pelo supremo Conselho de Segurança Nacional , a ordem imperturbável das Forças Armadas.

Em minhas aulas, eu recordava — refrescando a memória de meus alunos — os conceitos de ordem desordem . Eu dizia: A desordem não é o contrário da ordem. A desordem é sempre uma ordem : uma certa ordem contrária a outra ordem. Em termos absolutos, a ausência da ordem (o contrário da ordem) é impossível no cosmos: impossível no mundo físico e impossível no mundo ético, porque todo ser existente se compõe, necessariamente, de seres ordenados . A ordem é condição da existência. Que é, então, a desordem Desordem não é mais do que uma palavra . É um termo . É o nome que nós, humanos, conferimos às ordens que nos infelicitam ou nos desagradam; às ordens de que não gostamos.

Dizia eu a meus alunos: Desordem é a ordem que não queremos. 

Pois bem, a ordem vigente no Brasil, fundada na Doutrina da Segurança Nacional , era uma ordem política que nos era imposta pela força de um governo absolutista: uma ordem que não admitia contestação, que não tolerava oposição vitoriosa, e que se apoiava em aparelhos repressivos. Era uma ordem agressiva e constrangedora, cega para os Direitos Humanos — contrária à ordem democrática.

Para nós, democratas, criados no respeito pela dignidade soberana das pessoas, alimentados com o ideal permanente da liberdade, aquela ordem discricional — ordem do arbítrio — nos feria e infelicitava. Era a ordem que não queríamos .

Para nós, a ordem dos Órgãos de Segurança era desordem .

Treze anos passaram…

Teria servido para alguma cousa, a longa e violenta “ordem” da Ditadura? Teria ela servido para, de qualquer modo, “salvar o Brasil”?

O que eu via — o que todos nós víamos —, em nosso País , eram os efeitos sociais desastrosos do celebrado “ milagre brasileiro “. Sabíamos do colossal aumento da dívida externa, em razão dos empréstimos contraídos pelo Governo, em bancos estrangeiros, para execução de obras mirabolantes, nunca terminadas. Sabíamos dos embaraços sem saída, em que o Governo se enredou, com o contrato catastrófico da compra das usinas nucleares alemãs. E sabíamos, por informações que nos eram confiadas por amigos secretos, do pesadelo em que viviam as autoridades, em virtude da tormentosa e angustiante falta de fundos para o pagamento dos compromissos assumidos.

Por outro lado, o que nos surpreendia era a criação de quase duzentas grandes empresas estatais, que se instalaram no País ao custo de subsídios em dinheiro, que o Governo lhes ofereceu, com condições irrecusáveis de prazo e juros — recursos de sencavados afoitamente, mas que o Governo sonhava certamente recuperar com a opulência futura de um conjecturado Brasil Grande.

O que víamos em nosso País eram as manobras de um capitalismo selvagem, que nos parecia mancomunado com Ministérios, e a conseqüente concentração progressiva da renda. Víamos e sofríamos uma inflação galopante, que já ultrapassara os 40%. Creio que o que mais nos preocupava era a redução assustadora do poder de compra dos salários, acarretando a crescente aflição dos trabalhadores.

Para o Conselho de Segurança Nacional, a simples idéia da reforma agrária era comunismo, era subversão da ordem.

Tanto absolutismo, tanto autoritarismo, por tanto tempo, para quê? Pergunta permanente, esta, em nossos espíritos inquie tos.

Que títulos, que autoridade cultural tinham os Generais do Governo, para ditar e impor a toda a Nação, por anos e anos a fio, a sua “verdade”, as suas “certezas”, as suas “aversões” e “ojerizas”?

Censura rigorosa, exercida severamente nos órgãos da mídia, buscava escamotear, dos olhos do povo, grande parte da reali dade.

Mas o povo, na primeira oportunidade, já mostrara, de surpresa, seu repudio pelo regime. Isto se deu em 1974, quando uma Oposição oprimida venceu, inopinadamente, as eleições para a Câmara e o Senado.

Dois anos depois, temendo nova derrota nas urnas, o Governo se super-preveniu, e promulgou a chamada Lei Falcão , de 24 de Julho de 1976.

Esta lei, concebida por Armando Falcão, Ministro da Justiça, restringiu, drasticamente, a propaganda eleitoral no rádio e na TV, e a reduziu à publicação da foto, do nome, do número e do currículo resumido dos candidatos. Com isto, o debate político fi cou impedido, nos meios de comunicação. A Oposição foi a grande prejudicada, porque perdeu a possibilidade de divulgar suas convicções sobre a Ditadura, e de expor suas idéias para o futuro. A propaganda eleitoral passou a ser um chorrilho imprestável.

Na véspera do dia 11 de Agosto de 1976 — no Aniversário dos Cursos Jurídicos no Brasil; Aniversário de minha Faculdade — jorna listas me procuraram, para obter um pronunciamento sobre o significado dessa data. De mim para mim, resolvi não perder esta oportunidade para tocar em alguns temas cruciais. Então, expus, com simplicidade, a diferença entre o Estado de Direito e o Estado Absoluto , entre a Democracia e a Ditadura. Busquei demonstrar o que a Ordem Jurídica, fundada na Constituição, representava na vida das pessoas, e o que ela valia, para a salvaguarda dos Direitos Humanos. E terminei com um relato sumário dos motivos que inspiraram a Lei Imperial, que criou, em 1827, o ensino do Direito em nosso País.

Dias depois, em 15 de Agosto, o Estado de S.Paulo publicou minhas declarações sobre a missão histórica da Faculdade de Direi to do Largo de São Francisco.

Naquele mesmo mês de Agosto — lembro-me bem! — Ignacio, meu inspirado irmão, iniciou um curso de oito aulas sobre as Cidades Sagradas: sobre Tebas, Jerusalém, Benares, Lassa, Roma, Praga e Brasília. Ignacio é um brasileiro cujo sonho ou ideal de be leza se erige, dentro de seu coração, em verdade mais real do que a própria realidade.

Nas eleições municipais de Novembro, o Movimento Democrático Brasileiro (o MDB), Partido da Oposição, venceu, apesar da Lei Falcão, em cinqüenta e nove das cem maiores cidades do Brasil (veja Boris Fausto, “Historia do Brasil”, 9.6.2.).

Dando mostras de seu inconformismo — e a titulo de advertência a todas as Câmaras Municipais do País — a Ditadura cassou os mandatos dos influentes Vereadores Glênio Perez e Marcos Klassmann, de Porto Alegre.

A convite do Professor Miguel Reale Jr., Coordenador do Curso de Estudos dos Problemas Brasileiros, em minha Faculdade , proferi, no dia 10 de Dezembro de 1976, uma preleção s obre “Os Roteiros da Democracia no Brasil” .

Quando pronunciei essa aula, eu não podia prever que, seis dias depois, a Ditadura nos daria, mais uma vez, a demonstração inequívoca de que ela ainda se achava muito longe dos meus descritos roteiros da Democracia.

De fato, em 16 de Dezembro, agentes do II Exército arrombaram a porta e invadiram uma casa de residência, no bairro da Lapa, em São Paulo , e fuzilaram, incontinenti, as três pessoas que conversavam em torno da mesa, naquele recinto.

Um comunicado oficial informou, friamente, que as pessoas assassinadas eram subversivos perigosos.

Dias depois, em 31 de Dezembro de 1976, o General Presidente da República, em rede nacional de rádio e televisão, trans mitiu sua Mensagem de Fim de Ano. 

“Discurso melancólico, um epitáfio!” , exclamou o Senador Paulo Brossard. “Não é uma verdadeira Mensagem de Fim de Ano: mais parece u ma confissão de insolvência e de incapacidade de enfrentar as crises que outros povos, não mais aptos do que o nosso, souberam enfrentar sem recorrer a regimes de exceção, debelando-as sob o império da lei, e respeitando os direitos fundamentais da pessoa humana” (….) “Ao fim do discurso, a Nação só ficou sabendo que na opinião do Presidente, a Lei Falcão é muito boa, e que os brasileiros das grandes cidades votaram mal.” 

Comentando o discurso, o Deputado Federal Marcus Tito declarou: “É lamentável que não conste, do pronunciamento presidencial, nenhuma palavra relativa à distensão, nenhuma referência ao aperfeiçoamento do processo político. Na fala do Presidente, não logramos enxergar, para o horizonte institucional do País, qualquer referência à extinção das medidas de excepção.” (….) “O ser humano, o cidadão, continuou sendo o grande ausente, o marginalizado, ausente no programa do Governo.”(….) “O Presidente, em sua Mensagem , culpou a alta dos preços do petróleo, no mercado internacional, pelas dificuldades internas, na balança de pagamentos.” (….) “Não se tomou nenhuma medida séria” — disse o Deputado —, “nada que merecesse credibilidade, para racionalizar o uso de combustíveis.”!….) “Somente Deus poderá nos ajudar a sair das dificuldades em que emergimos nestes doze últimos anos, período em que um Governo detentor de instrumentos excepcionais faz lembrar as monarquias absolutistas, e se revelou incapaz de solucionar os problemas da Nação. ” 

O presidente Nacional do MDB (Movimento Democrático Brasileiro), o Deputado Ulisses Guimarães, também, notou que o Presidente atribuiu a crise econômica do Brasil a fatores externos. Mas Ulisses comentou: “As Nações democráticas, num tempo curto, souberam superar os impasses, e dominaram ou reduziram substancialmente a inflação. Nesse mesmo período, a situação no Brasil se agravou sobremaneira, e a inflação atingiu o catastrófico e insuportável nível de cerca de cinqüenta por cento.” 

Faço este meu depoimento no dia de hoje, em Setembro de 1997, trinta anos depois dos fatos por mim agora relatados. Escrevo estas linhas, fundado nos documentos de meu arquivo. Vou conduzido por mil reminiscências, a evocar acontecimentos que conflagraram uma parte de minha vida.

Interrompo a redação. Releio meu texto. Confesso que um receio me assalta. Terão, acaso, qualquer interesse, para a geração de hoje, estas insonsas anotações de fatos rechaçados, eventos já mergulhados nas brumas da desmemória coletiva?

Não sei, mas o que quero revelar é que — em virtude, precisamente, de tais fatos — eu vinha sentindo em mim, desde meados de 1976, o fervilhar de uma multidão de idéias. Eu me perguntava: Não poderia eu dar uma contribuição pessoal — e eficiente — para a restauração da Democracia em meu País ?

Fascinante, fascinante projeto!

*

Em 27 de Janeiro de 1977, Aldo Silva Arantes, Presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), foi barbaramente torturado, durante mais de dez horas, nos antros tenebrosos do DOI-CODI.

Uma surda indignação abrasou a consciência nacional. Nas Faculdades, nos Ginásios, os estudantes do Brasil, de norte a sul, passaram a se manifestar bravamente, lançando seu revoltado protesto, declarando seu amor à liberdade.

Em São Paulo , o ano de 1977 foi marcado pelas sucessivas truculências da polícia do Coronel Erasmo, praticadas contra Centros estudantis, com espancamentos, agressões graves, prisões. A violência da repressão atingiu seu auge por ocasião da reorganização da UNE (destroçada atrabiliariamente em 1964, e proibida de funcionar).

Pois bem, no dia 1° de Abril — 13° aniversário do Golpe Militar — o General Presidente da República decretou o recesso do Congresso Nacional! 

Na mesma ocasião, o Presidente baixou diversos decretos-leis, que alteraram a Constituição, introduzindo novas disposições sobre a composição do Poder Legislativo e sobre a estrutura e funcionamento do Poder Judiciário. Essas medidas passaram a ser chamadas “Pacote de Abril”.

Que aconteceu? Que motivos teriam levado o Governo a praticar mais essas violências?

O próprio General Presidente, em pronunciamento dirigido à Nação, por uma rede de rádio e televisão, na noite do mesmo dia 1° de Abril, revelou as razões do fechamento do Congresso. Disse que seu ato era: “uma decorrência dos problemas que se suscitaram nestes últimos dias, com relação à reforma do Poder Judiciário. Esta reforma, de interesse de toda a Nação, constitui fator importante para o nosso desenvolvimento”. E prosseguiu: “Verificou-se a necessidade inicial de fazer-se uma emenda à Constituição Federal, consubstanciada em vários artigos, que alterasse a estrutura, e, por vezes, até a competência e outras normas relativas ao Poder Judiciário, que estão estabelecidas na Carta Magna.” (….) “Por fim, em Novembro de 1976, a emenda foi enviada ao Congresso Nacional.”(.. .. ) Infelizmente, a Oposição resolveu fechar a questão, impedindo que seus representantes no Senado e na Câmara votassem a favor da reforma. Adotou um procedimento que não se coaduna com o espírito democrático, que ela vive invocando.”(…) “A oposição é minoria. A grande maioria votou pela reforma. Mas a minoria prevaleceu. Prevaleceu no Congresso, porque a maioria não logrou obter, em favor da reforma, o quorum de votos exigido, para aprovação da emenda à Constituição.” (….) “Eu me pergunto: O que devo fazer? Devo conformar-me com a atitude dessa ditadura minoritária? (….) “A Constituição Federal, no seu artigo 182, reconhece a validade do Ato Institucional n° 5. (….) “Agora é a oportunidade de se usar esse ato. De acordo com suas disposições, o Poder Executivo pode colocar o Congresso Nacional em recesso e, dessa forma, adquirir poderes legislativos. E foi o que eu fiz. Por ato complementar de hoje, o Congresso Nacional foi posto em recesso, e o Presidente da República passou a ter poderes legislativos. Eu usarei esses poderes, muito transitoriamente, não só para fazer a reforma do Poder Judiciário, como, também, para fazer as demais reformas de natureza política, que eu considero indispensáveis.” 

Maria Eugenia e eu, em nossa casa, vimos, pela televisão, o General Presidente pronunciar este fantástico discurso.

“Ditadura da minoria”, afirmou o General. Por quê? Porque a maioria — apesar de maioria — não alcançara, na votação do Projeto do Executivo, o quorum constitucional de dois terços de votos. Em conseqüência, a minoria impusera a sua vontade. A esta imposição é que o Presidente apelidou de “ditadura”. 

Acaso, não sabia o Presidente que aquela cláusula dos dois terços constituía, precisamente, uma barreira contra emendas estabanadas à Constituição? Não sabia o Presidente que essa cláusula era uma garantia de estabilidade da Constituição? Uma segurança de continuidade e permanência dos princípios consagrados na Carta Magna? Uma garantia de respeito pelos Direitos fundamentais das pessoas?

O que o General Presidente não quis confessar foi que seu decreto, baixado pelos motivos invocados, não era senão um ato de força. Seu discurso foi uma peça escrachada de autocrata.

Ao tomar conhecimento do fechamento do Congresso, o Deputado Federal Ulisses Guimarães, presidente nacional do MDB (Partido da Oposição), disse: “Grave e injusta sanção.”

Toda a Oposição se retraiu, com medo de cassações. O setor econômico do País reagiu com desalento; os empresários de São Paulo preferiram o mutismo. A impressão dominante era a de que o ato do General Presidente constituía um balde de água gelada nas recônditas esperanças dos idealistas da Democracia, um claro sinal de que a Ditadura Militar estava firmemente disposta a permanecer.

O Coronel Erasmo Dias, Secretário de Segurança Pública de São Paulo, proibiu “terminantemente, em todo o território do Estado, quaisquer manifestações públicas, incluindo passeatas, comícios, concentrações ou iniciativas semelhantes.” 

Mas, eis que os estudantes de minha Faculdade, no próprio dia 1° de Abril, estenderam uma enorme tarja negra no frontispício da Escola, e hastearam a bandeira do Brasil a meio pau. Estavam de luto, pelo fechamento do Congresso Nacional.

Os universitários das Arcadas se reuniram em imensa assembléia. O Centro Onze de Agosto entrou em contato com outras entidades da Grande São Paulo. Os estudantes da PUC já estavam também concentrados, no mesmo espírito de protesto. E todos, em conjunto, elaboraram, assinaram e enviaram ao Conselho de Segurança Nacional, a sua “moção de repudio contra o fechamento do Congresso e o cerceamento das liberdades democráticas.” 

E, na noite de 28 de Abril de 1977, os estudantes das Arcadas “enterraram” a Constituição.

Jornal da Tarde do dia 29 descreveu o episódio: “Num pequeno caixão branco, de criança, ao som da marcha fúnebre e de uma antiga trova acadêmica, que fala da bravura daqueles que deixam “a folha dobrada” enquanto vão lutar por seus ideais, os estudantes da Faculdade de Direito enterraram a Constituição, num canteiro do Largo de São Francisco. Era um protesto contra as agressões à Lei Magna, e um apelo pela volta do Estado de Direito.” “Os estudantes se reuniram no Pátio interno, dirigiram-se ao Monumento dedicado aos mortos do Movimento Constitucionalista de 1932, e de lá, carregando faixas que pediam a volta do Estado de Direito e declarando que a Constituição havia morrido, seguiram para a chamada Tribuna Livre, em frente da Faculdade.” “Ninguém assistiu às aulas da Faculdade, nessa noite.” “Todos ali estavam, naquela manifestação de apoio à convocação de uma nova Assembléia Constituinte. Mais do que isto: era esperado o pronunciamento do Professor Goffredo Telles, na Tribuna Livre.” 

Jornal do Brasil publicou a manchete: “Estudantes paulistas ao som de Chopin sepultam a Constituição”, e noticiou, com grande destaque, o enterro da Constituição e do AI-5. Revelou que dezessete encapuzados, seguidos de uma bandinha de rua, tocando a Marcha Fúnebre, encabeçaram o cortejo fúnebre, que rumou para a Tribuna Livre, no Largo de São Francisco.

Diário Popular publicou ampla reportagem: “Com faixas onde se lia  Faleceu a Constituição, Pelo Estado de Direito e Pela Constituinte, um grupo de alunos encapuzados entrou no Pátio das Arcadas, da Faculdade de Direito de São Paulo, iluminado por velas roxas, transportando um pequeno caixão de defunto, em alusão ao enterro da Carta. Em seguida, após pequeno passeio pelo Pátio, os alunos da Faculdade rumaram para o Largo de São Francisco e, em frente da Tribuna Livre, depositaram o féretro.” Na Tribuna, já se encontravam, além dos diretores do Centro Acadêmico XI de Agosto, “os representantes da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de São Paulo, da Associação dos Advogados de São Paulo, e das lideranças de vários Centros Acadêmicos”. 

Falaram muitos oradores. Recordo-me dos discursos eloqüentes de Mário Renato Miranda (que fora Presidente do Onze , no ano anterior) e de Paulo Eiró, líder político. Recordo-me da inspirada manifestação do estudante José Roberto Piza (que, anos mais tarde, veio a ser Presidente da OAB/SP).

Pronunciei, de improviso, o discurso de encerramento. Hoje, ao rememorar estes fatos, eu já não mais me lembrava, ao certo, de minhas palavras. Mas acabo de encontrar, no Diário Popular de 29 de Abril de 1977, um extenso apanhado de meu pronunciamento.

O que eu disse aos meus estudantes, naquela noite histórica, na Tribuna do Território Livre de nosso Largo de São Francisco, foi, em curto resumo, o seguinte:

“Nós queremos a ordem. Para nós, a ordem é a ordem do Estado de Direito. É a ordem jurídica, a ordem do respeito pelos direitos do cidadão, e pela liberdade sagrada das pessoas. Para nós, a ordem da Ditadura se chama desordem.” 

“Nós somos pela ordem, somos contrários à subversão. Para nós, subversivos são aqueles que violam a Constituição. Subversivos são aqueles que governam com Atos Institucionais, Atos contrários à Lei Magna, que é uma lei produzida pelo povo.” 

“A Constituição é obra do povo. Não toleramos que a Constituição seja agredida por Atos de Governos de Força.” 

“O Governo dos Atos Institucionais é Ditadura, e nós execramos todas as Ditaduras.” 

“Não nos enganarão, jamais, os ditadores. Não nos iludirão, jamais, aqueles que pretendem camuflar a Ditadura com artimanhas e fingimentos. Recusamos aceitar como verdade o que é mentira. Não toleramos a falsificação do sentido autêntico das palavras.” 

“Para nós, Ditadura se chama Ditadura; Democracia se chama Democracia.” 

“No canteiro de nosso Largo de São Francisco, deixamos enterrada a Constituição defunta — a Constituição que o ditador matou.” 

“Da sementeira deste Território Livre, do manancial de nossa eterna Academia, nasce o brado de um povo, pela Liberdade, pelo Direito, pela Justiça.” 

Em meio de aclamações e palmas, com fundo musical da Marcha Fúnebre, o féretro baixou à sepultura, em cova adrede preparada, no canteiro ao lado da Tribuna. Atirei sobre o pequeno caixão um punhado de terra.

Pelotões da Polícia surgiram no Largo. Mas o comício estava encerrado. Os acadêmicos dispersaram. Nada mais aconteceu.

Nada mais, naquela noite. Espancamentos e prisões de estudantes e operários, três dias depois, assustaram o País, por ocasião das manifestações do 1° de Maio.

Em protesto contra as violências da Polícia, oitenta mil universitários de São Paulo entraram imediatamente em greve.

Centro Acadêmico XI de Agosto , o Centro Acadêmico 22 de Agosto, o Diretório Central Alexandre Vannucchi Leme e os demais Diretórios Centrais de Estudantes da USP e da PUC, os representantes da Fundação Getúlio Vargas, da Faculdade de Comunicações Sociais Cásper Líbero, da Escola de Sociologia e Política, da Faculdade de Educação do ABC (de São Caetano do Sul), do Plenário de Pós Graduação, e de outras numerosas Escolas da Capital e da Grande São Paulo — convocaram um A TO PÚBLICO, para o dia 3 de Maio, às 9 horas da noite, no Salão Beta da Pontifícia Universidade Católica, na Rua Monte Alegre, em São Paulo.

Objetivos do ATO : Clamar pela Imediata libertação dos estudantes e operários presos ; pela extinção das torturas nas prisões, e pela anistia para os condenados políticos. 

No dia e hora designados, o prédio da PUC e as ruas adjacentes foram tomadas por imensa e rumorosa multidão, portando faixas e cartazes. Do Interior, em ônibus fretados pelos alunos, vieram representações de São Carlos (da USP e da Universidade Federal) de Sorocaba (da PUC); de Ribeirão Preto (da USP e de escolas particulares); de Campinas (da UNICAMP e da PUC) e de Araraquara (da UNESP).

Estudantes, operários, gráficos, bancários, empregados de escritório, professores, intelectuais, artistas, toda aquela gente acorreu, irmanada num só gesto de solidariedade, indignação e revolta.

A mesa que presidiu a sessão estava constituída pelos dirigentes dos principais Centros Acadêmicos e Diretórios Centrais de Estudantes; pela representante do Movimento Feminino pró-Anistia, e pelo presidente de um Diretório do MDB (Movimento Democrático Brasileiro).

Moções numerosas foram apresentadas e aprovadas por aclamação.

Lembro-me da manifestação do Deputado Estadual Alberto Goldman, que falou em nome do MDB. Disse ele que seu Partido se solidarizava com os estudantes e com todos os que, naquele momento, estavam demonstrando, intrepidamente, sua decisão de lutar pela volta à Democracia. Afirmou: “Nenhum setor social, isoladamente, conseguirá modificar a situação presente, mas todos os setores juntos poderão alcançar a grande e almejada vitória.” 

Depois desse momentoso Ato Público, a ebulição dos estudantes e dos trabalhadores perdurou durante semanas, nas Universidades do País e nos grandes centros industriais de São Paulo, Minas e Rio.

No Congresso Nacional, os fatos repercutiram intensamente.

Na sessão do dia 5 de Maio de 1977, o Senador Gilvan Rocha, vice-líder do MDB, disse : “ O estado de inquietação em que se acha o País, e que levou as cabeças pensantes do Brasil a uma aparente apatia, está chegando aos limites da rutura. Estamos chegando ao fim de um ciclo histórico que só os desprovidos de sensibilidade não percebem.”(….) “É preciso que não se superficialize a crise estudantil brasileira, que começa a se exteriorizar em manifestações como a de São Paulo.” (….) “Confundir estas manifestações — que não são só de estudantes, mas do próprio espírito libertário de uma Nação jovem — com contestações anarquistas, é traumatizar o País.” (…) “A Nação não se faça de surda e perceba: os meninos estão gritando. Quando os jovens gritam numa família, numa sala da Universidade, numa praça da cidade ou num País, é preciso que não se lhes dê as costas, ou que não se lhes dê nas costas.” 

Na sessão da Câmara, desse mesmo dia, o Deputado Alencar Furtado, líder da Oposição, afirmou: “Estudante é povo. Problema de estudante, a polícia não resolve. Como povo, estudante necessita de liberdade para viver. O Governo precisa ter olhos e ouvidos para enxergar e ouvir a Nação, nos seus reclamos e problemas. O estudante precisa ser ouvido. O estudante é idealismo, e quando milhares se reúnem, não o fazem à toa. O povo os aplaude. Os estudantes sensibilizam parentes, amigos, namoradas e namorados, colegas de estudo e de trabalho; sensibilizam seus professores; enfim, comovem o povo, que logo se sente solidário no clamor da juventude. O Governo não pode virar as costas aos estudantes — isto significaria virar as costas ao povo.” 

No dia 19 de Maio, — depois da vasta manifestação de rua dos dias anteriores — os Senadores Paulo Brossard e Teotônio Vilela estiveram na minha Faculdade. Vieram a convite do Centro Acadêmico XI de Agosto , para pronunciamentos sobre a sublevação da mocidade; sobre os rumos políticos a tomar, as campanhas a empreender, em nossa Pátria.

Era presidente do Onze , o estudante Caio Marcelo de Carvalho Giannini ; vice-presidente, o estudante Ademilson Pereira Diniz.

Sessão maravilhosa, assistimos naquela noite, no Salão Nobre de nossa Academia. Com objetividade, com pureza e patriotismo, discursaram os dois parlamentares, perante uma assembléia atenta e curiosa, feita de estudantes, políticos dos dois Partidos, Professores e intelectuais de todos os matizes.

O Senador Vilela — o primeiro a falar, e discorrendo livremente, sem recurso a nota alguma — convocou os estudantes para que viessem formar na legião dos que aderiram ao “Projeto Brasil” ¾ seu projeto, produzido com a colaboração, não só dos mestres, mas, também, dos mais diversos setores e categorias do povo de nossa grande Nação. “Quem tem percorrido tanto este País, como eu nestes últimos anos, pode dar o testemunho de que não há discrepância, nem no sentimento, nem nas atitudes, relativa ao que deseja o nosso povo. Nosso povo parece estar reunido numa enorme Assembléia Nacional Constituinte, que só quer construir a Democracia do Brasil.” Disse o Senador: “Os estudantes sacudiram o Brasil. Agora, todos só pensam em Democracia. A manifestação estudantil de quinta-feira foi a mostra de que uma geração, depois de treze anos, percebeu que as cousas precisam ser mudadas. A manifestação dos estudantes exprime uma opinião, e esta opinião é a opinião pública de todo o Brasil.” 

O Senador Paulo Brossard falou em seguida. Com desenvoltura, discursou também de improviso. Iniciou sua fala dizendo: ” Aí estão os escombros do regime de arbítrio. Sobre o entulho da Ditadura, haveremos de erguer o Brasil democrático.” “É preciso retornar ao regime da segurança e da ordem. Não há ordem sem lei, sem liberdade, sem a participação popular nas decisões do Governo. Nós mesmos é que temos que resolver nosso problema institucional e nosso problema econômico: temos que ficar certos de que ninguém vai resolver nossos problemas por nós.” “Quando existem graves problemas econômicos e sociais, é claro que eles se refletem na política da Nação. Mas o fato de existirem, isto não autoriza o adiamento da democratização do País. Em verdade, o que vemos é que esses problemas se têm agravado de forma assustadora. Por quê? Exatamente porque o País se acha num regime em que o Governo faz o que bem entende, e no qual o Presidente não tem limites para a sua ação.” “Os dias da manifestação estudantil não foram dias quaisquer. Agora, no Brasil, os dias são diferentes, devido ao movimento dos moços. Mais que um movimento da juventude, a manifestação estudantil foi um dos fatos mais importantes do Brasil contemporâneo.” 

Sentados no doutoral, com vista direta para a mesa e para a assembléia, Maria Eugenia e eu ouvimos os discursos dos Senadores, assistimos às manifestações ruidosas de aprovação e de entusiasmo — e nos impressionamos com as palavras inspiradas de meus estudantes, pronunciadas com beleza e emoção, ao encerrar o evento.

Meu coração em alvoroço, minha mente em atividade, todo o meu ser vibrando, eu disse à minha mulher que eu estava tomado da convicção, cada vez mais viva, de que o movimento decisivo e invencível, para a implantação da Democracia em nossa Terra , teria que nascer de nossa Escola — de nosso Pátio predestinado, Pátio milagroso de nossas Arcadas.

Na madrugada do dia 4 de Junho, tropas de choque da Polícia Militar ocuparam a Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, para impedir que ali se realizasse o III Encontro Nacional de Estudantes.

A Faculdade foi cercada por contingentes fortemente armados. Às 13 horas, quinhentos policiais, utilizando cães amestrados e bombas lacrimogêneas, ocuparam a Escola. Com emprego de violência, os militares prenderam e revistaram todos os estudantes, e os conduziram, com mãos erguidas sobre a cabeça, para o quartel do 5° Batalhão da Polícia Militar.

Ao cair da noite, centenas de estudantes, de várias Faculdades da Capital mineira, fizeram uma passeata no centro da Cidade, aos gritos de “Liberdade! Liberdade!” e de “Soltem nossos presos!”. Chegaram até a escadaria da Igreja de São José, sob o aplauso da população. Os motoristas dos carros, para mostrar solidariedade, acionaram, com vontade, as buzinas de seus automóveis.

A Ordem dos Advogados de Brasília emitiu nota, em que declarou haver deliberado “reafirmar a imperiosa necessidade de restauração do Estado de Direito e conclamar os órgãos responsáveis pelo ensino a que se inspirem nos ideais de liberdade e solidariedade humana, devolvendo aos estudantes o direito de pugnar pelo aperfeiçoamento do ensino e de participar da vida pública do País.” 

No dia 15 de Junho, os estudantes estavam novamente nas ruas de São Paulo. No Brás, nos arredores da Estação Roosevelt (ponto de desembarque dos que vieram das Faculdades de Mogi das Cruzes, de Mauá e do ABC); no Parque D. Pedro II, no Largo da Concórdia, na Praça Fernando Costa, na Praça do Correio, no Largo de São Francisco, na Praça do Ouvidor, na Praça da Sé, na Praça João Mendes; nas ruas Senador Feijó, Quintino Bocaiúva, Barão de Paranapiacaba; nas ruas 15 de Novembro, Direita, São Bento, Líbero Badaró; no Vale do Anhangabaú, no Largo do Paissandú e, também, em regiões adiante da Avenida Paulista, nas cercanias da Faculdade de Medicina, na Avenida Dr. Arnaldo; por toda parte, os estudantes formaram grupos, realizaram comícios relâmpagos, discursaram para o povo, promoveram pequenas passeatas. Por toda parte, ouvia-se o brado dos estudantes: “Liberdade! Liberdade!”, “Abaixo a repressão!” 

A polícia exibiu gigantesco aparato de guerra, com batalhões de choque, apoiados em tanques, brucutus, carros de bombeiros, guinchos e guindastes, com cavalos e cachorros. Instalou suas bases em diversas regiões da Cidade. Destacamentos volantes percorriam ruas e praças. Pelotões armados investiram contra estudantes, contra comerciantes que baixavam suas portas, contra pessoas do povo que assistiam à manifestação, contra jornalistas que exerciam seu mister. Empregaram cassetetes elétricos. Agiram com extrema violência.

Alguns estudantes, acossados, se abrigaram nas Igrejas de São Bento e de Santa Efigênia. Os soldados invadiram as Igrejas, e, no interior desses templos, agrediram estudantes e padres.

Na rua 25 de Março, numerosos populares ouviam o que lhes estava sendo dito por um grupo de conhecidos atores de teatro e televisão. Um pelotão de policiais cercou, de súbito, aquele ajuntamento, e prendeu todo mundo. Foram levados para a Delegacia os seguintes artistas: Ruth Escobar, Ruthnéa Moraes da Silva, Renato Consorte, Yara Amaral Goulart, Yolanda Cardoso da Silva, Altair Lima, Benê Mendes, Sérgio Mamberti, Edney Giovenazzi, Paulo Roberto Maurício da Rocha, João Alfredo Bento, Eurico Júnior, Terezinha Lopes Siqueira e José Roberto de Azevedo Lopes.

Os estudantes de minha Faculdade realizaram, nesse dia, comícios e passeatas nas ruas e praças centrais da Cidade. Combatidos pela polícia, abrigaram-se no interior da Academia.

Dois brucutus, seis carros da Rota, dois caminhões tanques dos bombeiros, um caminhão aberto com tropa de choque, quatorze carros rádio-patrulhas, três carros oficiais dos comandantes invadiram o Território Livre.

Os estudantes estavam cantando o Hino Nacional.

De repente, surgiu, à frente da força militar, do outro lado do Largo, o vulto inconfundível do Coronel Erasmo Dias, Secretário da Segurança. Imediatamente, nós o reconhecemos. Veio elegante, num terno escuro, de gravata.

Os estudantes puzeram-se a gritar: “Abaixo a repressão! Abaixo a repressão!” 

O Coronel avançou dois passos, encarou os estudantes, que se apinhavam diante das três arcadas de entrada da minha Faculdade. Um brado partiu da Academia: “Assassino! Assassino!” 

Erasmo Dias apanhou o microfone do rádio-patrulha mais próximo. Sua voz ecoou no Largo:

  • Os senhores têm dez minutos para evacuar a praça. 

Os estudantes voltaram a cantar o Hino Nacional.

O Diretor da Faculdade, Professor Rui Barbosa Nogueira, estava em sua sala, no 1° andar, acompanhado dos Professores Theophilo Cavalcanti e Costa Júnior. Ele se mantinha em comunicação telefônica permanente com o Governador do Estado, Dr. Paulo Egidio Martins. Num dado momento, após ouvir o Governador, o Diretor decidiu descer ao Pátio e falar aos estudantes. Emocionado, pediu um minuto de silêncio, e disse:

¾ Atenção! Atenção! Dentro de instantes, o Secretário da Segurança, Coronel Erasmo Dias, vai dar a ordem de tomar a Faculdade à força!” 

Eu me achava no Pátio, com os estudantes. Alucinado, bradei:

¾ Se isso acontecer, o Coronel estará praticando o crime de assalto à propriedade privada. A Faculdade é nossa casa. O Coronel não sabe que nossa Academia é entidade com personalidade jurídica própria, com patrimônio particular. Ele não sabe que nossa Escola completa, este ano, cento e cinqüenta anos de história. Invadir a Academia é agredir uma imensa família, espalhada por todo o território do Brasil. É ferir a Escola da Liberdade e da Justiça, berço de juristas, políticos, poetas e músicos.” 

Os estudantes hastearam a Bandeira Nacional, no grande mastro central da Faculdade.

Os dois caminhões-tanque subiram no calçadão. Seus poderosos canhões d’água atiraram jatos violentos de um líquido vermelho, sobre os estudantes, sobre o edifício, sobre a estátua do “Idílio”, sobre os postes, arrancando as placas do trânsito, ensopando todo mundo, sujando tudo. Pelotões de choque, com máscaras e escudos, avançaram sobre os meninos, lançando gás lacrimogêneo e bombas de efeito. Os cassetetes vibraram sobre cabeças e costas, à esquerda e à direita, sem dó nem piedade. Estudantes foram brutalizados, esbofeteados, muitos acabaram enjaulados e levados embora.

Os jornais relataram, em páginas inteiras, os fatos acontecidos naquela ocasião (veja, por exemplo, o Jornal da Tarde de 16 de Junho de 1977).

E eis que, dias depois, em 30 de Junho, ante a Nação atônita e consternada, o General Presidente cassou o mandato eletivo, e suspendeu, pelo prazo de dez anos, os direitos políticos de Alencar Furtado, Deputado Federal, líder supremo da Oposição em nossa Terra.

Na Colômbia, em Cali, o selecionado do Brasil, no mês de Julho de 1977, se preparava para enfrentar o do Peru, nas eliminatórias da Copa do Mundo de 1978.

Publicado na Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo , em número especial de 1997, p. 10-22.

3 – Depoimento de Goffredo Telles Junior sobre a gênese da sua “Carta aos Brasileiros”

 

CARTA AOS BRASILEIROS ” 

Estávamos em 1977. Vivíamos o 13º ano de chumbo da ditadura militar .

Havia em mim um sonho. Um sonho ? O que em mim fervilhava era muito mais do que um sonho. Era um almejo ardente, um anhelo dominante. Era uma i­déia arrebatadora. Era um projeto: o projeto de uma proclamação desassombrada — incontido desabafo de minha alma, reflexo da al­ma flagelada de meu País. Era uma conjectura: a conjectura de um manifesto revolucionário — brado carismático por liberdade e pelo Estado de Direito.

Das Arcadas do Largo de São Francisco, do “Território Li­vre” da Academia de Direito de São Paulo, eu queria dirigir a to­dos os brasileiros minha Mensagem de Aniversário — uma alocução veemente, que fosse uma Proclamação de Princípios de nossas convic­ções políticas.

Nós estávamos convictos de que a fonte genuína da ordem pública não era a Força , mas o Poder . Para nossa consciência jurídica, o Poder emana do povo; era produto da manifestação popular . A Força era outra cousa. Era a imposição das armas. A Força não deveria nunca ser mais do que instrumento a serviço do Poder. Nós denunciávamos como ilegítimo todo Governo fundado na Força. Legí­timo somente o era, o Governo que fosse Orgão do Poder.

Para nós, ilegítimo era o Governo cheio de Força e vazio de Poder.

Reconhecíamos que o Chefe do Governo era o mais alto funcionário nos quadros administrativos da Nação. Mas negávamos que ele fosse o mais alto Poder de um País. Acima dele, reinava o Po­der de uma Idéia: reinava o Poder das convicções que inspiravam as linhas mestras da Política nacional. Reinava o senso grave da Ordem, que se achava definido na Constituição.

Proclamávamos a soberania da Constituição. Afirmávamos que a fonte legítima da Constituição era o Po­vo. Sustentávamos, também, que só o Povo, por meio de seus Representan­tes no Congresso Nacional, tinha competência para emendar a Cons­tituição.

Para nós, o exercício do Poder Constituinte por autori­dade que não fosse o Povo, configurava usurpação de poder político .

Se ao Poder Executivo fosse facultado reformar a Consti­tuição, ou submetê-la a uma legislação discricionária, a Constituição perderia, precisamente, seu caráter constitucional , e pas­saria a ser um farrapo de papel.

No meu idealizado Manifesto eu proclamaria: “O Estado legitimo é o Estado de Direi­to , e o Estado de Direito é o Estado Constitucional” .

Eu diria que o Estado de Direito é o Estado que se subme­te ao principio de que Governos e governantes devem obediência à Constituição emanada de um Congresso Democrático, eleito pelo Povo 

Bem simples se nos afigurava este princípio, mas luminoso, porque se ergue, como barreira providencial, contra o arbitrio de vetustos e renitentes absolutismos. A ele, as instituições políti­cas das Nações somente chegaram após um longo e acidentado percurso na História da Civilização. Sem exagero,poder-se-ia dizer que a consagração desse princípio representava uma das mais altas con­quistas da cultura, na área da Politica e da Ciência do Estado.

Eu lembraria, em meu Manifesto , que, nos países em que a cultura política já organizou o Estado de Direito, a insolita im­plantação do Estado de Fato ou de Exceção — do Estado em que o Presidente da República volta a ser o monarca lege solutus — c onstituia um violento retrocesso no caminho da cultura.

Em lugar dos Direitos Humanos, a que se refere a Declaração Universal das Nações Unidas, aprovada em 1948; em lugar do ha­beas corpus ; em lugar do direito dos cidadãos de eleger seus gover­nantes, esses Estados e Sistemas colocariam o que chamam de Segu­rança Nacional e Desenvolvimento Econômico .

Com as tenebrosas experiências dos Estados Totalitarios europeus, nos quais o lema era, e sempre foi, Segurança e Desenvolvi­mento , aprendemos uma dura lição. Aprendemos definitivamente que fora do Estado de Direito , o referido binomio pode não passar de uma cilada. Fora do Estado de Direito , a Segurança, com seus orgãos de terror, é o caminho da tortura e do aviltamento humano; e o Desen­volvimento, com o malabarismo de seus cálculos, é a preparação para o descalabro econômico, para a miséria e a ruína.

No meu Manifesto, eu afirmaria que nós não nos deixaremos seduzir pelo canto das sereias de quaisquer Estados de Fato. Não nos iludiremos com a pregação da Segurança e do Desenvolvimento.

Eu afirmaria que o binomio Segurança e Desenvolvimento não tem o condão de transformar uma Ditadura numa Democracia, um Estado de Fato num Estado de Direito.

Eu declararia falsa a vulgar afirmação de que o Estado de Direito e a Democracia são “a sobremesa do desenvolvimento econômico”. Eu lembraria que desenvolvimentos econômicos se fazem, às vezes, nas mais hediondas ditaduras.

Eu proclamaria que nenhum País deve esperar por seu de­senvolvimento econômico, para depois implantar o Estado de Direi­to. Advertiria que os Sistemas, nos Estados de Fato, ficam perma­nentemente à espera de um maior desenvolvimento econômico, para nunca implantar o Estado de Direito.

Nós queríamos, sim, segurança e desenvolvimento . Mas queríamos segu­rança e desenvolvimento dentro do Estado de Direito.

No meu Manifesto, eu sustentaria que o Brasil dos ditadores não era o nosso Brasil. No Brasil dos ditadores, a Sociedade Civil estava banida da vida política da Nação. Pelos chefes do Sistema, a Sociedade Civil era tratada como se fosse um confuso conglome­rado de ineptos, sem discernimento e sem critério, aventureiros e aproveitadores, incapazes para a vida pública, destituidos de senso moral e de idealismo cívico — como se fosse uma desordenada multidão de ovelhas negras, que precisava ser continuamente contida e sempre tangida pela in­teligência soberana do sabio tutor da Nação.

No Brasil dos anos de chumbo , o Poder Executivo, por meio de atos arbitrários, declarara a incapacidade da Sociedade Civil, e decretara a sua interdição.

Pois eu queria proclamar, num claro Manifesto, a ilegiti­midade de todo sistema político em que abismos se abrem entre a Sociedade Civil e o Governo.

Os governantes que davam o nome de Democracia à Ditadura nunca nos enganaram e não nos enganarão. Nós sabiamos que eles estavam atirando, sobre os ombros do povo, um manto de irrisão.

* * *

Em princípios de Maio, Maria Eugenia e eu recebemos, de surpresa, em nosso escritório, a encantadora visita de Samuel Wai­ner. O que ele queria, fundamentalmente, era inteirar-se dos motivos verdadeiros, do autêntico sentido da sublevação dos es­tudantes em nossa Terra. Na qualidade de jornalista, ele queria certificar-se das idéias da mocidade, e da revolução institucional que os estudantes desejavam. Bem informado sobre a atuação da Academia do Largo de São Francisco, disse-me que ele desejava conhecer a minha interpretação dos fatos.

Duas vezes, Wainer voltou a nosso escritório. Os termos de nossas longas entrevistas, ele os publicou, com grande desta­que, em seu vibrante semanário, na edição do dia 18 de Maio de 1977.

Por coincidência, nesse mesmo dia 18, a partir das dez ho­ras da noite, a Polícia cercou a Cidade Universitária da USP, o Lar­go de São Francisco e as áreas circunvizinhas da Pontifícia Uni­versidade Católica. O objetivo dessa operação era impedir as mani­festações programadas para o dia seguinte.

Estive no nosso Largo, ao fim da tarde. O Centro Acadêmico XI de Agosto ha­via planejado uma Noite de Vigilia, na Faculdade de Direito, como preparação do Dia Nacional de Protesto . Lembro-me de meu desconsolo, ao encontrar fechadas as portas de minha Faculdade. A medida inusitada havia sido ordenada pelo Diretor, de acordo com imposições do Sr. Erasmo Dias, Secretário da Segurança.

Em pleno Largo , diante do portão trancado, eu disse aos jornalistas: “Quero deixar claro que sempre estarei ao lado daqueles que batalham pelo Estado de Direito. Eu gostaria de ver a volta de meu País à De­mocracia. Estou com os estudantes. O que os estudantes querem é o respeito a Constituição; é o predomínio da lei, do Direito e da Justiça. O que eles querem é simplesmente a ordem, mas a ordem no Estado de Direito . Para eles, os sub­versivos são, precisamente, aqueles que violam a Constituição”.

Os jornais do dia 19 publicaram as minhas declarações. Pu­blicaram, igualmente, as palavras de Dom Paulo Evaristo Arns, pro­nunciadas logo após a missa em comemoração do Dia Mundial das Co­municações Sociais. “Acredito que todo brasileiro de bom senso” disse o Cardeal — “defendam os quatro pontos cardiais do movimento estudantil que são: libertação dos colegas e operários presos, fim das torturas e prisões arbitrárias, anistia geral, e liberdades democráticas”. 

Sobre o aparato de guerra, exibido pelo Governo naquela noite e no dia seguinte, para impedir as manifestações dos estudantes, vários Deputados se pronunciaram com indignação.

Meu amigo Israel Dias Novaes, Deputado da bancada oposicionis­ta de São Paulo, disse: “Causa espanto que o simples anúncio da concentração de estudantes alarme o Poder e o ponha em pé de guerra, com a mobilização de policiais militares, tanques e caminhões blindados” .

O Deputado Airton Soares afirmou: “Os manifestantes universi­tários têm o direito de se reunir em praça pública, democrática e pacificamen­te, e de exibir faixas e cartazes que reproduzam os motivos de sua manifestação e as suas reivindicações” .

Odacyr Klein, Deputado gaucho, observou: “Efetivamente, parece que o Governo não entende a Nação. Ele quer ser o dono da verdade. Na sua concepção, todos que a ele se oponham, são inimigos do Brasil, elementos radicais da desordem” .

Naquela noite de 19 de Maio, os Senadores Paulo Bros­sard e Teotonio Vilela vieram à minha Faculdade, e ali pronunciaram luminosas conferências.

Revendo as anotações de meu canhenho, recordo que reporteres do Jornal do Brasil estiveram no meu escritório várias vezes, nos dias subseqüentes. Conservo em meu arquivo as entrevistas concedidas. E verifico que, instado pelos jornalistas, cheguei a lhes confessar, nessa ocasião, o sonho de meu Manifesto à Nação, em de­fesa das liberdades democráticas e do ideal de convocação da As­sembleia Nacional Constituinte, para a restauração do Estado de Di­reito em meu País.

No dia 27 de Maio, à noite, recebi, por telefone, uma no­tícia inesperada e grata. Fui informado de que o Conselho Seccio­nal da OAB havia aprovado, na reunião da tarde, um voto de louvor aos Professores Dalmo de Abreu Dallari, Miguel Reale Junior e a mim, “ por tudo que esses mestres têm feito em favor da livre manifestação do pensamento e da Democracia”. 

O voto de apoio e solidariedade, declarado por meus cole­gas da Ordem — quero dize-lo agora, com franqueza — calhou, de fato, naquela hora de riscos e insegurança. Fez-me grande bem, cau­sou-me alegria, e muito penhorado fiquei pela manifestação.

Nesse mesmo dia 27, a Nação havia sofrido mais um golpe da ditadura. O Ministro da Justiça, em Portaria publicada no Dia­rio Oficial, submeteu toda a futura importação de livros e periódicos à censura previa do Departamento da Policia Federal. Somente poderiam entrar no Brasil — decretava a Portaria — aquelas obras que “ não fossem ofensivas à moral e aos bons costumes ou à ordem pública ”.

O absurdo, o surrealismo, o arbitrio dessa medida causaram indignação e revolta, em todos os meios intelectuais do País. “A Portaria fecha as janelas da dinâmica do conhecimento, que não tem fronteiras nacionais” , escreveu a Professora Cremilda Medina, em longo artigo, no jornal O Estado de S Paulo .

Manifestaram-se imediatamente contra o ato obsolescente e atrabiliario da ditadura, os Professores Antonio Candido e Octavio Ianni (da Facul­dade de Filosofia, Letras e Ciencias Humanas), Rui Aguiar da Silva Leme (da Faculdade de Economia), Cândido Procópio (do Centro Brasi­leiro de Analise e Planejamento-CEBRAP), Sergio Buarque de Holanda (da Faculdade de Historia), e muitos outros.

Os Reitores da USP e da PUC — Professor Orlando Paiva e Nadir Kfouri — envidaram esforços para livrar os Professores, os De­partamentos e os estudantes de suas Universidades, dos rigores da Por­taria. Obviamente, nada conseguiram.

O Professor Cândido Procópio disse que, no seu entender, “a­quela censura configurava, de forma flagrante, a tutela que o Esta­do queria exercer sobre uma sociedade considerada mentecapta, in­capaz de se gerir, incapaz de optar por caminhos morais e intelec­tuais” .

* * *

Estávamos mergulhados nessa onda de desgosto, quando Maria Eugenia e eu fomos convidados para um almoço.

O bom telefonema do amigo Flavio Bierrenbach nos causou dois sentimentos : o primeiro, de satisfação; o segundo, de curio­sidade. Pressentimos que algo se estava tramando.

Desse almoço, participaram cinco advoga­dos: Flavio Bierrenbach, José Carlos Dias, Almino Affonso, Maria Eugenia e eu. A refeição transcorreu normalmente. Nada de novo, nada, nada se disse que, de qualquer maneira, pudesse aplacar minha curiosidade — até a hora da sobre­mesa, quando José Carlos Dias tomou um ar solene, pediu a atenção de todos, e declarou que ele e seus dois colegas, Flavio e Almino, ali estavam em missão. Declarou que um grupo de advogados — filhos da A­cademia do Largo de São Francisco — havia tomado a deliberação de deixar, num documento sacramentado, a expressão de seu repudio ao regime de arbitro e prepotência, que, durante quatorze anos, vinha infelicitando a Nação. Formados nas tradições das Arcadas, esses colegas queriam tornar impossível a suposição de que seu silêncio sobre a ditadura pudesse algum dia ser interpretado como conivência com o absolutismo. Ao ensejo do Sesquicentenário da Academia, o que queriam era proclamar, numa inequívoca Mensagem aos brasileiros, sua i­nabalável fidelidade aos ideais da Liberdade, da Democracia e do Estado de Direito. E, por intermédio da embaixada, que ali se en­contrava, em torno daquela mesa, vinham solicitar que eu redigisse o Documento.

Que emoção, meu Deus! Que enorme emoção se apossou de mim, ao ouvir essas palavras! Que emoção senti, ao tomar ciência de que os filhos da Academia ansiavam por um Manifesto de nos­sas convicções! Que sobressalto d’alma experimentei, ao receber a incumbência que acabava de me ser dada! Aquele pedido se casava, maravilhosamente, com o Projeto que fervilhava em meu espírito. Isto, informei com calor, aos três amigos. E acrescentei que aquela obra, por nós idealizada, eu me comprometia a elaborar, com todas as veras de meu sêr.

* * *

O dia 15 de Junho de 1977, foi, para os estudantes de todo o Brasil, o “Dia Nacional de Luto”. 

As brutais violências praticadas, nesse dia, contra os es­tudantes e contra o edificio da Academia, produziram em mim um sentimento de horror e revolta, que eu não sabia mais conter. Escrevi ao Diretor da Faculdade uma carta-denúncia, datada de 21 de Junho, relatando fatos por mim testemunhados, rogando imediatas providências da Congregação. Assinaram-na comigo os Professores Dalmo de Abreu Dallari, Fabio Konder Comparato, Ignacio Botelho de Mes­quita e Antonio Roberto Sampaio Doria.

Em 30 de Junho, num ambiente carregado de apreensões, a Congregação dos Professores de minha Faculdade se reuniu, para deba­ter a legalidade e o mérito do “Pacote de Abril”, conjunto de decretos autocráticos do ditador 

Nessa ocasião, procedi à leitura da carta-denúncia, que eu havia enviado ao Diretor da Faculdade. Incontinente, a egregia Congregação aprovou, unanimemente, uma declaração de “ repúdio às arbitrariedades da Polícia durante as concentrações estudantis ”.

Depois… naquela mesma sessão seguiu-se um longo e árduo debate, sobre as reformas constitucionais, decretadas pelo General Presidente da Republica… Afinal, de tudo quanto ali se discutiu, o que realmente ficou foi a decisão, tomada por maioria de votos, de que “a Congre­gação da Faculdade de Direito da USP não mais se reunirá para fixar posições ante fatos de caráter político”. 

Lembro-me de que deixei, silenciosamente, a Sala da Congrega­ção. Saí com o coração apertado. Fui ao Pateo, meu Pateo, meu Jardim de pedra. Passeei lentamente por entre as Arcadas. Senti saudade, u­ma infinita saudade, do Professor Braz Arruda. Acudiu-me à memória sua advertência sobre a missão histórica de nossa Academia. “Não se esqueça!”, recomendou ele. De pé, diante do Monumento dos Heróis, sol­tei para o céu um urro de desabafo. Percebi que dois estudan­tes, muito sérios, olhos esbugalhados, me fitavam. Pensaram, certamente, que o velho Professor enlouquecera.

Mas, não. Eu não enlouquecera. Nessa mesma noite, atendi, depois do jantar, a diversos jornalistas. O Estado de S Paulo , a Fo­lha de S Paulo o Jornal do Brasil , todos, no dia seguinte, noticiaram minha carta e meu voto na Congregação. A Folha do dia 4 e o Estado do dia 6 voltaram ao mesmo assunto.

O que nós não sabiamos era que, naquele exato dia da Con­gregação — 30 de Junho de 1977 — o General Presidente da Repúbli­ca cassara Alencar Furtado: cassara o mandato eletivo, e suspendera por dez anos, os direitos políticos do líder da oposição no Brasil !

Ante a Nação estarrecida, o Presidente chamou seus adversá­rios de “demagogos, hipócritas, irresponsáveis, pertubadores do ordem, pre­goeiros da discordia, arautos da intriga, vivandeiros impenitentes, eternos cassandras, derrotistas e subversivos”.

E, no dia 26 de Julho, “considerando que as distorções das finali­dades dos congressos e sessões públicas de que trata a lei nº 5.682, de 21 de Julho de 1971, resultaram em atos de contestação ao regime instituído pela Re­volução de 31 de março de 1964; considerando que cabe ao Presidente da República adotar as medidas necessárias à defesa da Revolução” , o General Pre­sidente proibiu, pelo Ato Complementar nº 104, a promoção de con­gressos ou sessões públicas para a difusão dos programas de Parti­dos, assim como a sua transmissão pelo radio e televisão.

Então, o que vimos foi a reafirmação oficial de que toda contestação ao regime em vigor era definida como crime contra a ordem instituída. O que vimos, para nosso escandalo, foi que o Ge­neral se promovera, definitivamente, a detentor do monopolio da ciencia politica e do civismo dos brasileiros.

* * *

Pois bem, nós queríamos proclamar nossa insurreição contra essa tutela, esse arbítrio.

Sustentávamos que uma Nação desenvolvida era uma Nação que podia manifestar, e fazer sentir, a sua vontade. Não víamos que razões podiam existir para que Comandantes das Forças Armadas continuassem a proferir ameaças contra civis, e a dizer, aos políticos e aos cidadãos em geral, como se deviam comportar. Não víamos o motivo pelo qual os militares, por mais ilustres que fossem, haveriam de ser considerados os melhores cidadãos do País. Que títulos, ostentavam os militares, para que pu­dessem ser tidos como a mais alta expressão da sabedoria política e do civismo? Alem da força de suas armas, que possuíam eles, de que lhes pudesse advir um Poder incontrastável?

Aliás, durante os longos treze anos de chumbo , o que presenciamos no Brasil, foi o suceder ininterrupto de violencias inauditas, praticadas pelas autoridades, contra pessoas e direitos.

Vimos eminentíssimos brasileiros ser vitimas de sanções arbitrá­rias. Vimos cientistas eméritos serem banidos. Vimos sequestros, torturas, assassinatos, pratica­dos nas masmorras dos chamados orgãos de segurança. Vimos brasi­leiros desaparecerem da face da Terra, sem deixar vestígio do que lhes teria acontecido. Vimos o povo despojado do direito de escolher seus governantes, e assistimos ao fracasso de interven­tores e governantes nomeados. Vimos leigos elaborar charadas, que receberam o augusto nome de leis. Vimos a inflação galopante flagelar o trabalhador, e ser tratada pelo Ministro da Fazenda como “inflação prá xuxú”. Vimos a corrupção desbragada proliferar livremente. Vimos o voto judicio­so da Oposição no Congresso Nacional ser acusado de exercer a “ditadura minoritaria”. Vimos um churrilho de mentiras, usado para justificar uma inapta reforma do Poder Judiciario. Vimos o Parla­mento ser fechado, para permitir o enxerto atrabiliario de emen­das na Constituição.

“Basta!” , exclamou Alencar Furtado. Basta ! , exclamavamos nós.

O que queríamos era ordem . O que queríamos era uma ordem que consagrasse o direito dos cidadãos de serem regidos por uma Cons­tituição soberana, elaborada livremente pelos Representantes do Povo, numa Assembléia Nacional Constituinte; o direito de não ver ninguém jamais submetido a disposições de Atos do Poder Executivo, contrárias aos preceitos e ao espírito da Constituição; o direi­to de ter um Governo em que o Poder Legislativo e o Poder Judiciário possam cumprir sua missão com independência, sem medo de re­presálias e castigos do Poder Executivo; o direito de ter um Po­der Executivo limitado pelas normas da Constituição soberana.

Sim, o que queríamos era ordem . Mas a ordem que queríamos era a ordem do Estado de Direito .

* * *

Foi numa noite de Julho daquele ano de 1977. Foi numa an­te-manhã de inverno. Era cedo, muito cedo, eu ainda não ouvira o relógio da sala bater as cinco horas. As pombas da alta-madrugada não haviam ainda chegado ao beiral de minha janela.

Silêncio no estúdio — o grande silêncio fecundo, das horas que antecedem o nascer do dia.

Sentei-me à velha mesa, arredei livros, arredei papéis. Na minha frente, a folha branca, imaculada.

Senti o leve roçar da asa do Anjo na minha cabeça.

Peguei do lapis e, lentamente, escrevi no alto da página:

“CARTA AOS BRASILEIROS” 

4 – Fotos do dia da leitura

5 – Fotos de comemorações de aniversários da leitura da Carta

6 – Livros sobre a Carta aos Brasileiros

Carta aos Brasileiros

2ª ed., Ed. Saraiva, 2016

Nesta edição comemorativa do 30º aniversário da Carta aos Brasileiros, o leitor encontra o texto integral desse manifesto de repúdio à ditadura e de exaltação do Estado de Direito Já, os artigos do Prof. Goffredo “A antevéspera da Carta aos Brasileiros – I 1975/1977” e “A antevéspera da Carta aos Brasileiros – II 1977” bem como a lista dos primeiros subscritores.

Estado de Direito Já! – Os trinta anos da Carta aos Brasileiros

Ed. Lettera.doc, 2007

Este livro, organizado pelo editor, historiador e antigo aluno das Arcadas Cássio Schubsky, traz vinte e três depoimentos de personalidades que acompanharam o momento da redação e da leitura da Carta pelo Professor Goffredo, depoimentos que primam pelo brilho dos relatos, entremeando a narrativa de trajetórias pessoais com a análise sobre a importância, a repercussão e a atualidade da Carta. Além dos depoimentos, o livro traz os debates parlamentares que a leitura da Carta suscitou, a repercussão na imprensa, os arquivos do DOPS, as atas da Congregação da Faculdade de Direito da USP, e uma cronologia dos fatos mais importantes ocorridos antes e depois da Carta aos Brasileiros.