Direito e convivência humana: 

lições a partir da obra de Goffredo da Silva Telles Junior

Eduardo Carlos Bianca Bittar

A convivência é um impositivo para o ser humano. Isto quer dizer que, ainda que por vezes indesejável, o convívio social é o que nutre, pela intersubjetivação da subjetividade, a condição humana, permitindo, por esta via, o processo doloroso da aprendizagem que decorre da necessidade de compartilhar. Este compartilhar parece ser o grande tema do direito e também da economia. Os bens não são tão abundantes que deles possam os homens fazer um uso infinito. Também os bens não são tão abundantes que possam ser fruídos da mesma forma por todos. Se a abundância fosse a regra, como quereria o jusnaturalismo romântico de Rousseau, com o mito do bom selvagem, haveria a necessidade de compartilhar? Esta hipótese foi testada por Bentham, e é isto que o permite partir para uma análise mais crua da realidade da condição humana, dela retirando sua ética e suas lições sobre o Direito. O homo juridicus parece, em parte, decorrer do homo economicus, não somente porque as infra-estruturas determinam as superestruturas, como quereria Marx, mas especialmente porque se trata de uma condição específica à qual a natureza parece ter jungido os seres vivos. O homem carece tanto de água potável para sobreviver, quanto um leão de carne para se alimentar. Nem aquela é tão simples de se obter, nem esta é tão fácil de se abocanhar. Goffredo da Silva Telles nos relembra que, no entanto, a gregariedade de animais e homens não se identifica; exato, no entanto, há um impositivo que lhes é comum: precisam disputar espaço de convívio e a escassez para sobreviverem e atender suas necessidades. E é neste ciclo, que o trânsito das gerações se produz no tempo e no espaço, com um dinamismo que nenhuma mente humana consegue apreender concretamente, a não ser por fantasia mental. Os ciclos tudo consomem, tudo regeneram, tudo reproduzem, numa espécie de volúpia natural, cujo sentido ainda estamos por compreender com maior propriedade. A isto se refere Nietzsche, quando fala de uma luta permanente, pela vontade de poder, em torno da vida e da expansão em busca de mais vida. E, a cada novo implemento, que passa a sobredeterminar a condição humana, surge uma nova necessidade humana de manter e sustentar uma nova condição humana (depois da invenção da luz elétrica, é possível pensar-se em viver sem ela? depois da internet e da comunicação mundial, é possível pensar-se em viver sem ela? depois da televisão, é possível de pensar-se em privar-se completamente dela?), criando um circuito intenso de necessidades crescentes, onde o que antes era criação e inventividade, agora se torna condição para viver, como afirma Hannah Arendt. A partir destas necessidades e desta crescente sobredeterminação, as demandas sociais aumentam, a disputa por bens se acirra, e se torna inevitável o processo de contraposição humana, não somente no nível da materialidade (disputa por uma propriedade ou por melhor salário), mas também no nível da moralidade, da politicidade, da afetividade (sentimentos, valores, princípios, conveniências). A sociedade é uma verdadeira fábrica de aprendizados. Isto porque em torno de objetivos comuns, na disputa por condições convergentes, pelo comungar de desejos idênticos, seres humanos se distribuem desigualmente na posse de bens e condições compartilhadas na mesma ambiência, esta que nunca é tão larga que seja passível de evitar o entrechoque de interesses. Homo silvaticus non est. Homo naturaliter politicus est. A mensagem destas lições vêm de Aristóteles a Aquino, de Rousseau a Kant, de Arendt a Habermas, como que a insistir que a liberdade é algo que não decorre da própria natureza, mas que se constrói na convivência societal, que a politicidade é o laboratório da articulação da intersubjetividade, que o respeito é a fonte inesgotável da harmonia no convívio humano, que a linguagem é o instrumento de acesso de possibilitação do encontro entre ego alter. A ética, neste sentido, não é uma decorrência transcendental para os homens, mas algo que decorre das próprias necessidades do convívio. É por isso que onde há sociedade, haverá regra, e onde há regra, haverá Direito, para reproduzir a velha máxima latina (ubi societas, ibi ius). Isto significa que a humanidade expressa valores, e que esses valores se compartilham, formando regramentos que se tornam máximas do convívio, algo sem o que se torna impossível a previsibilidade comunicativa do comportamento alheio. Nesta medida é que o Direito cumpre uma meta importante na distribuição das funções sociais, realizando, ainda que por sua condição de subsistema social específico de comunicação (Niklas Luhmann), com seu código binário bem definido (lícito/ilícito), e sua ligação estreita com o uso legítimo da força autorizada, servir como um instrumento de facilitação das trocas humanas com o mínimo de desgaste intersubjetivo e intrasubjetivo. O Direito, bem utilizado, prudentemente produzido e adotado, cumpre a função social de servir como “disciplina da convivência humana”, nas palavras de Goffredo da Silva Telles Junior, colocando-se, portanto, a serviço da própria inclinação natural que é comum a todos os homens: o convívio social.