Direito ou barbárie – Dalmo de Abreu Dallari

Dalmo de Abreu Dallari
Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; membro da Comissão Internacional de Juristas; membro honorário da Associação dos Advogados de São Paulo

Sumário

1. Terrorismo nos Estados Unidos: nova face da violência

2. 
Repercussão do terrorismo e do pretexto “antiterrorista”

3. 
“Guerra” do Afeganistão: um ato de agressão injusto

4. 
Motivação das guerras norte-americanas: armas e petróleo

5. 
Os verdadeiros desafios para a busca da paz

1. Terrorismo nos Estados Unidos: nova face da violência

Um ataque terrorista destruiu dois edifícios, conhecidos como as torres gêmeas, os mais altos do mundo, na cidade de Nova Iorque. Isso aconteceu em 11 de setembro de 2001 e, graças à alta tecnologia de que dispõem os Estados Unidos, foi transmitido pela televisão, dando ao mundo a possibilidade de ver um dos dois aviões atirados contra os edifícios atingir o seu alvo, bem no estilo de muitos filmes de aventura norte-americanos. Descontados os exageros das informações quanto ao número de mortos e pondo de lado vários aspectos que a censura imposta pelo governo dos Estados Unidos aos meios de divulgação não permitiu que ficassem claros – como o ataque simultâneo a edifícios do Pentágono, em Washington, e a disseminação de “antraz” no território norte-americano, que seria expressão de um terrorismo bacteriológico, fatos referidos nos primeiros dias após o ataque terrorista e depois completamente omitidos –, o que resta já é suficiente para se ter um fato novo de grande relevância. Os Estados Unidos, maior potência bélica e econômica do mundo, possuindo os mais sofisticados dispositivos de vigilância e controle, incluindo satélites artificiais, uma rede de radares e a mais moderna parafernália para detectar a aproximação de corpos estranhos ou indesejáveis e capaz de transmitir informações extremamente precisas e minuciosas, com espantosa velocidade, a todos os pontos da terra; essa terrível superpotência não era invulnerável, como acreditavam os norte-americanos e quase todo o mundo, com exceção, evidentemente, dos terroristas que provaram o contrário.

Esse foi um dado novo, extremamente significativo, que surpreendeu o mundo e despertou nas autoridades e no povo dos Estados Unidos um misto de sentimentos, incluindo surpresa e revolta pela agressão dentro de sua própria casa, indignação pelo atrevimento dos agressores, decepção porque acreditavam que os milhões de dólares gastos em armamentos e sofisticado aparato de segurança garantiriam sua absoluta invulnerabilidade e impunham temor a todos os outros povos da terra, e tristeza autêntica, em parte da população norte-americana, pelas vítimas, muitas delas pessoas modestas que haviam emigrado para os Estados Unidos na esperança de uma vida melhor. A par disso, o ataque terrorista despertou o medo, o terror, como pretendiam os autores da violência, um terror que ficou visível nos atos das autoridades e no comportamento da população, um terror que inspirou a adoção de medidas arbitrárias e violentas contra todos os que, supostamente, poderiam ter alguma ligação, parentesco, semelhança ou provável identidade de raça, de cor, de crença, de língua ou de etnia com possíveis terroristas presentes e futuros.

Estranhamente, poucas horas depois do ataque terrorista, e sem que houvesse qualquer sinal emitido pelos culpados, reivindicando ou admitindo a autoria, vangloriando-se do feito ou tentando justificá-lo, o governo norte-americano já anunciava ao mundo, com riqueza de pormenores, a identidade do chefe da organização terrorista responsável, Al-Qaeda, divulgando o nome, a foto e particularidades da vida e das características desse chefe, Osama Bin Laden, e relatando pormenores da preparação do atentado e da identidade dos executores da ação violenta. Como depois foi revelado por jornalistas e pessoas conhecedoras de fatos e dados importantes ligados a esse personagem, a família Bush, incluindo o avô e o pai do atual presidente norte-americano (o ex-presidente George Bush), há muito tempo tem ligações muito estreitas com magnatas do petróleo, entre os quais estão o próprio Osama Bin Laden e sua família. Apesar de reiteradas informações a esse respeito, divulgadas pela imprensa de vários países e já registradas em alguns livros e artigos, nem o atual presidente Bush nem qualquer órgão do governo dos Estados Unidos fez qualquer pronunciamento, para esclarecer, negar ou confirmar aquele relacionamento, que, a serem verdadeiras as informações divulgadas, envolvia interesses comuns na indústria petrolífera (a esse respeito veja-se o livro A fortunate son: George W. Bush and the making of an american president, de Steve Hatfield, citado por Frei Beto em impressionante artigo publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”, edição de 31/10/2001).

A partir de uma acusação ou suposição, até agora baseada apenas em afirmações de autoridades norte-americanas, sem apoio em qualquer prova, os Estados Unidos desencadearam uma ação de guerra extremamente violenta contra o Afeganistão, afirmando que Bin Laden estaria escondido em algum ponto, não precisado, do território daquele país. É oportuno lembrar que há não muito tempo o governo norte-americano forneceu armamentos e deu treinamento a grupos do mesmo Afeganistão, para que agissem contra a União Soviética a partir do território afegão. Esse hábito de tratar aquele país como território não sujeito a uma soberania e disponível para operações de guerra talvez explique, em parte, a desenvoltura com que os Estados Unidos invadiram o Afeganistão por terra e ar, com homens, tanques e armamento pesado, lançando bombas e foguetes contra populações civis pobres e indefesas, destruindo casas e dizimando famílias, semeando terror, provocando morte e destruição com brutalidade impensável num mundo civilizado.

2. Repercussão do terrorismo e do pretexto “antiterrorista”

Apesar da gravidade do ato terrorista de 11 de setembro de 2001, e de sua influência no comportamento do Estado norte-americano em seu relacionamento com o resto do mundo, é evidente exagero afirmar que o ataque terrorista às torres gêmeas de Nova Iorque modificou a relação de forças no mundo ou mudou a história da humanidade. Não é preciso qualquer esforço para verificar que a posição e o comportamento político dos Estados ou grupos de Estados mais poderosos do mundo, como China, Japão, Arábia Saudita e União Européia e seus integrantes, por exemplo, não sofreram qualquer modificação significativa. O que realmente mudou foi o sentimento de invulnerabilidade dos Estados Unidos, fato que influiu em seu quadro político interno e teve reflexos graves, muito negativos, em seu comportamento internacional. Mas mesmo em relação a isso não se pode dizer que tenha havido uma inovação, pois apenas foi mais acentuado o comportamento que já vinha sendo adotado pelos Estados Unidos.

O recente crescimento do militarismo não afetou de modo substancial as relações dos Estados Unidos com a América Latina. Os países latino-americanos são muito dependentes dos Estados Unidos em termos econômicos e, por esse motivo, nenhum governo da América Latina manifesta oposição ou mesmo simples restrição às arbitrariedades e violências cometidas pelos Estados Unidos. Um exemplo claro dessa submissão foi a atitude do governo brasileiro perante a deposição do embaixador do Brasil, Bustani, da presidência da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAK), mediante chantagem e coação do governo norte-americano. O chanceler brasileiro declarou à imprensa que o Brasil não iria entrar em conflito com os Estados Unidos para defender seu embaixador e por isso nem sequer condenou a imoralidade da medida. Por outro lado, as manifestações do povo brasileiro, praticamente unânimes, contra as agressões norte-americanas no Afeganistão, não permitem que o governo se manifeste apoiando os Estados Unidos. Esse mesmo quadro se repete em toda a América Latina, onde os sentimentos anti-americanos cresceram muito nos últimos meses.

Em relação ao Brasil, pode-se dizer com segurança, tendo por base o que tem sido dito e publicado nos grandes órgãos de imprensa, em conferências, debates públicos e reuniões políticas ou científicas em que o tema tem sido abordado, que há evidente rejeição da injustificada e injustificável agressão ao Afeganistão e ao seu povo, praticada pelos norte-americanos sob pretexto de “guerra ao terrorismo”. De modo geral existe certa cautela nos pronunciamentos, porque as pessoas temem que uma condenação muito forte dos Estados Unidos possa ser interpretada como apoio ao terrorismo. Mas, ainda assim, não têm sido raras as condenações expressas e veementes daqueles atos que muitos já qualificaram como ação criminosa e irracional dos norte-americanos. Na realidade, tem sido unânime a condenação do ato terrorista que destruiu as torres e matou ou feriu centenas de pessoas em Nova Iorque, mas até agora ninguém publicou ou falou alguma coisa em defesa da atitude norte-americana no Afeganistão, nem a favor do tratamento brutal a que foram submetidos os prisioneiros transportados para a base norte-americana de Guantanamo.

Sempre que há oportunidade, a guerra promovida pelos Estados Unidos é qualificada como errada, injusta e inadequada, porque está muito evidente, para qualquer pessoa de boa-fé e imparcial, que as populações civis, vítimas da guerra, são pessoas pobres e indefesas que sofrem a destruição de suas casas modestas, além da morte de muitos familiares e amigos, sem terem tido qualquer participação nos atos terroristas de 11 de setembro. O governo brasileiro tem mantido atitude ambígua, não defendendo nem condenando as ações norte-americanas, o que pode ser interpretado como reconhecimento de que o povo brasileiro não aprova a guerra e, ao mesmo tempo, demonstração de que o governo brasileiro teme contrariar os norte-americanos, provavelmente pela excessiva dependência do Fundo Monetário Internacional e dos interesses econômicos de poderosas empresas sediadas nos Estados Unidos.

3. “Guerra” do Afeganistão: um ato de agressão injusto

Toda guerra é, em princípio, um momento de irracionalidade, de substituição de todos os avanços conquistados, às vezes penosamente, durante a longa marcha civilizatória da humanidade pela força bruta, é um momento de retorno à barbárie. Por esse motivo, quando no século dezenove as guerras se tornaram mais “tecnológicas”, ficando mais fácil matar o inimigo à distância, e quando os meios de divulgação já permitiam a difusão mais ampla de informações sobre os males causados pela guerra, começou um esforço de homens de boa vontade, no sentido de estabelecer limites às ações de guerra. Foi assim que se desenvolveu o chamado “Direito de Genebra”, que tem seu ponto de partida com a celebração de um acordo multilateral, conhecido como Convenção de Genebra, em 1864, sendo esse um marco fundamental no desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário. Depois disso vieram diversos tratados e acordos internacionais, fixando limites ético-jurídicos para as violências em ações de guerra, tratando da proteção devida às populações civis envolvidas numa circunstância bélica e, além disso, colocando as exigências mínimas quanto ao tratamento a ser dispensado aos prisioneiros de guerra, para que se preserve a dignidade humana.

A síntese das exigências postas em defesa da dignidade humana e da civilização é uma frase muito bem destacada por Christophe Swinarski em seu livro Direito internacional humanitário (São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990), quando informa que consta do preâmbulo da Declaração de São Petersburgo, de 1868, o seguinte princípio: “as necessidades da guerra devem-se deter em face das exigências da humanidade”.

Examinadas do ponto de vista jurídico, considerando não só o Direito Internacional Humanitário, mas todo o conjunto de princípios e normas, costumeiras e escritas, que rege as relações entre os povos civilizados, pode-se concluir que as ações militares norte-americanas, geralmente referidas como “a guerra no Afeganistão”, não têm qualquer justificativa jurídica e se caracterizam como ato de agressão, pois o Estado do Afeganistão não atacou nem ameaçava atacar os Estados Unidos. Além disso, é um ato de barbárie, pois o que se vê é a maior potência bélica do mundo usando armamento sofisticado para ataques maciços e indiscriminados, destruindo cidades e vilas, matando milhares de pessoas desarmadas e indefesas, que jamais tiveram participação em qualquer ação política externa, armada ou desarmada. As violências praticadas contra o povo do Afeganistão caracterizam crime contra a humanidade, além de também ocorrerem ali crimes de guerra, como definidos nos tratados vigentes. As ações de guerra levadas a efeito no Afeganistão representam a negação de todos os avanços da civilização no relacionamento entre os povos. É praticamente certo que tão logo seja instalado o Tribunal Penal Internacional haverá denúncias, muito bem fundamentadas, contra os mentores da guerra norte-americana no Afeganistão, pois existe prova abundante da prática de crimes e muitos dos principais responsáveis têm identidade conhecida.

Por tudo isso e por tudo o mais que tem sido mostrado pela televisão, por jornais e revistas, com fotos impressionantes mostrando a destruição e o massacre de populações, e ainda pelo depoimento de pessoas que estiveram na região, inclusive por informações oriundas de fontes norte-americanas, não há qualquer possibilidade de se admitir que a guerra do Afeganistão seja uma “guerra justa”. Antes de mais nada, até mesmo a expressão “guerra” é inadequada, pois o que se tem no Afeganistão é uma forte e violenta ação armada promovida pelo Estado norte-americano, sem que exista um Estado inimigo. As vítimas das ações não são pessoas ou grupos armados, não há confronto entre forças inimigas, não se podendo falar em direito de defesa contra o Afeganistão quando nem os Estados Unidos ousam apresentar o Afeganistão como Estado agressor atual ou potencial. Mais do que tudo, até agora não foi apresentado qualquer motivo sério, com real fundamento, que justificasse as ações de guerra norte-americanas em território afegão. Assim, portanto, fica completamente excluída a hipótese de se admitir que esteja ocorrendo uma guerra justa.

4. Motivação das guerras norte-americanas: armas e petróleo

As guerras norte-americanas dos últimos dez anos, incluindo Iraque, Kosovo e Afeganistão, não têm as características das guerras tradicionais contra um Estado inimigo. Não se trata de guerras defensivas contra Estados que estivessem ou estejam ameaçando a soberania, a independência ou a liberdade dos Estados Unidos ou que tivessem praticado ou estejam praticando atos de agressão contra o Estado norte-americano. Não são também guerras motivadas pela disputa entre dois sistemas políticos fundamentalmente opostos, como foi a guerra ao nazi-fascismo e poderia ter sido uma guerra contra a União Soviética. As guerras norte-americanas dos últimos dez anos são, em parte, mas indiretamente, uma conseqüência do desaparecimento da União Soviética. Livres da necessidade de evitar o perigo soviético e de apresentar ao mundo uma imagem de justiça e respeito, para angariar mais aliados, os Estados Unidos sentiram-se livres para agir agressivamente em favor de seus interesses. O exame atento das circunstâncias mostra sem dificuldade que são duas as motivações básicas dessas guerras: o petróleo e a indústria armamentista.

Os Estados Unidos são muito dependentes do petróleo para a continuidade de suas atividades produtivas e para a manutenção de seu estilo de vida, o american way of life . Embora tendo suas próprias reservas petrolíferas, os Estados Unidos estão muito longe da auto-suficiência em petróleo. Por esse motivo existe sempre o temor de uma suspensão inesperada e substancial do abastecimento por fontes externas, o que seria terrivelmente desastroso para a economia norte-americana e para a continuidade das atividades normais de praticamente todo o povo.

Ao que tudo indica, os estrategistas norte-americanos concluíram que o Iraque é o Estado mais vulnerável, entre os que dispõem de muito petróleo em seu território, e por esse motivo foi considerado o caminho mais fácil para que os norte-americanos tomem posse de imensas reservas petrolíferas. Por isso foi feita a primeira guerra contra o Iraque, que resultou em fracasso norte-americano, apesar da utilização de forte e pesado aparato de guerra. A primeira tentativa de se apoderarem do petróleo iraquiano foi malsucedida, mas continua a convicção de que seja esse o melhor caminho e daí o anúncio que vem aparecendo agora com insistência na imprensa, oriundo de fontes oficiais norte-americanas, de que está sendo preparada uma grande investida contra o Iraque, provavelmente para o início do próximo ano. Isso desmoraliza de uma vez a pálida tentativa feita por algumas autoridades norte-americanas, no sentido de ligar o Iraque aos atos terroristas de 11 de setembro.

Na mesma linha da preparação de uma nova ofensiva bélica contra o Iraque se inscreve a recente atitude imoral do governo dos Estados Unidos, coagindo e corrompendo membros da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAK), para que tirassem da presidência o diplomata brasileiro José Maurício Bustani, eleito regularmente para o cargo pelos membros da Organização e cujo mandato estava em curso. Apesar de vagas alegações de falhas na administração da Organização para a Proibição de Armas Químicas, o exame dos argumentos norte-americanos e das circunstâncias, feito por analistas especializados e profundos conhecedores dos fatos, deixou mais do que evidente o motivo real da deposição de Bustani, afinal consumada. O fator determinante da investida dos Estados Unidos contra o diplomata brasileiro nada teve a ver com o desempenho administrativo: foi o fato de que ele estava fazendo gestões, com perspectivas de êxito, para que o Iraque passasse a fazer parte da Organização para a Proibição de Armas Químicas e, em conseqüência, se sujeitasse ao programa de inspeção e destruição de armas químicas. Desse modo, seria eliminado o pretexto que vem sendo usado pelos norte-americanos para tentar justificar nova agressão ao Iraque, que é a existência de um vasto arsenal de armas químicas.

Coloca-se ainda na mesma linha da motivação pelo petróleo o apoio dado pelos Estados Unidos ao recente e fracassado golpe na Venezuela, tentando depor um presidente constitucional eleito pelo povo. O fracasso do golpe, pelo modo como ocorreu, e a prisão de golpistas que assumiram o poder imediatamente e se expuseram demais porque se acreditavam vencedores, possibilitou a obtenção de provas irrefutáveis do envolvimento norte-americano. Também nesse caso muitas provas vieram de fontes norte-americanas, ligadas aos mais altos níveis do governo dos Estados Unidos, que, assim, não teve como negar o apoio aos golpistas, mas tentou amenizar sua culpa, dizendo que só dera apoio à mudança do governo por meios constitucionais. A Venezuela não estava agredindo ou ameaçando os Estados Unidos, nem remotamente. Qual o motivo do apoio norte-americano à deposição do presidente constitucional venezuelano? A resposta a essa indagação não exige qualquer esforço. Iraque e Venezuela têm algo em comum: grandes reservas de petróleo. Não se deve esquecer, afinal, que o ex-presidente Bush tinha estreita ligação com o setor petrolífero, que lhe deu sustentação e, obviamente, esperava algo em troca. O esquema ganhou novo alento e teve continuidade com Bush filho.

Ao lado do petróleo, como fator de motivação para as mais recentes guerras norte-americanas, existe o grande interesse da indústria de armamentos. Com a eleição de Bush, simplório e inexperiente, os tradicionais “falcões” ligados ao complexo industrial-militar tiveram enorme facilidade para se apossarem de posições-chaves e para ditar a política externa dos Estados Unidos. Como foi amplamente noticiado pela imprensa, logo depois de 11 de setembro as ações das indústrias de armamentos tiveram alta excepcional na Bolsa de Nova Iorque e se colocam hoje entre os investimentos mais atraentes. É interessante notar que o ato terrorista foi altamente benéfico sob vários aspectos, além da valorização das ações na Bolsa de Valores. Os gastos norte-americanos com armamentos foram ampliados e o mesmo fenômeno se verificou em vários países cujos governos são fortemente influenciados pelos Estados Unidos.

Um exemplo disso é o que vem ocorrendo no Brasil, que, sabidamente, tem grande parte da população precariamente assistida ou completamente desassistida quanto a necessidades fundamentais, como saúde, educação e moradia, embora a Constituição diga que o direito a esses bens é direito de todos e dever do Estado. O governo não cumpre esse dever constitucional sob alegação de falta de recursos. Entretanto, segundo informação do jornal “O Estado de S. Paulo” (edição de 5 de maio de 2002), o Brasil acaba de adquirir um super porta-aviões, passando a fazer parte do “clube restrito” (expressão usada pelo jornal) dos possuidores dessa preciosidade, que tem custo e manutenção elevadíssimos e que, evidentemente, não é uma prioridade do povo brasileiro. Ainda segundo o mesmo jornal, “em todo o mundo apenas oito marinhas mantêm porta-aviões: Estados Unidos, Grã-Bretanha, França, Rússia, Itália, Espanha, Índia e Brasil”. Além desse tremendo desperdício, que só é bom para a indústria de armamentos e para os que se beneficiam dessas transações, informa ainda o jornal que para ter aviões que não destoassem do conjunto, o Brasil adquiriu um certo tipo de avião norte-americano muito moderno, tendo comprado “no Kuwait 23 unidades do pequeno, robusto e ágil subsônico americano”. É estranho que o Brasil tenha comprado no Kuwait aviões norte-americanos, o que talvez se explique pelo fato de que o Kuwait, que é uma das “potências petrolíferas” do mundo, faça parte de um consórcio “petróleo-armas”.

Retomando a análise das recentes guerras promovidas pelos Estados Unidos, é importante ressaltar que um ponto comum nas guerras do Iraque, Kosovo e Afeganistão é que nos três casos não havia guerra declarada e o agressor era o mesmo. Além disso, como já foi assinalado, nos três casos houve a forte influência da indústria de armamentos, interessada em que haja guerra, não paz. Um ponto diferenciador em relação ao Afeganistão é o pretexto do combate ao terrorismo com amplitude mundial. Vários países que enfrentam no seu interior o problema de grupos terroristas, como a Inglaterra e a Espanha, aproveitaram-se do pretexto para intensificar suas ações antiterroristas no plano interno e por esse motivo preferiram não condenar as violências norte-americanas. Outros países, como o Japão e os próprios Estados Unidos, aproveitaram o pretexto da universalidade do terrorismo para aumentar seus gastos militares. Esse é um ponto só relativamente diferenciador, pois em todos esses casos está presente o interesse da indústria armamentista, devendo-se ainda atentar para o fato de que o pretexto do combate ao terrorismo facilitou o avanço do militarismo no mundo.

Desse conjunto de fatos e circunstâncias pode-se extrair uma conclusão segura quanto a fatores que estão na base da motivação das guerras norte-americanas dos últimos dez anos: petróleo e venda de armamentos. O terrorismo, essencialmente imoral, foi bom para o mundo dos negócios e forneceu pretexto para novas agressões armadas. É preciso denunciar e combater o terrorismo, seja ele praticado por Estados ou por grupos organizados, mas é preciso não perder de vista que o terrorismo está longe de ser o grande problema da humanidade, a causa de toda a violência, o principal obstáculo para a conquista da paz.

5. Os verdadeiros desafios para a busca da paz

O mundo está vivendo em situação de grave desequilíbrio, motivado, substancialmente, por tremendos desníveis econômicos e pelas discriminações que os acompanham, aumentando cada vez mais o número de miseráveis, de excluídos, de pessoas sem qualquer perspectiva. Essa é a matéria-prima para a deterioração do tecido social e para a implantação da desordem ou de “ordens marginais”, como ocorre ostensivamente, por exemplo, na Colômbia e também ocorre, embora com menor visibilidade, em quase todo o mundo, inclusive nos países mais ricos. A violência urbana, o crescimento do crime organizado, o aparecimento de uma criminalidade rica, como os “criminosos de colarinho branco” e os traficantes de drogas, o aumento do número de desempregados, tudo isso é agravado pela falta absoluta de perspectivas para os jovens.

Os dualismos que se colocam hoje estão ligados às condições econômico-sociais: concentração da riqueza ou justiça social; tentar conter a desordem e a violência por meio de maior repressão – o que só irá gerar mais violência –, ou, ao contrário disso, atacar as verdadeiras causas da violência, indo além dos belos discursos e passando a ações concretas, destinando uma parte da riqueza ao oferecimento, em todos os povos, do mínimo exigido pela dignidade humana. Existe riqueza e pobreza no norte e no sul, as categorias “direita” e “esquerda” estão diluídas. O que há de comum é o distanciamento cada vez maior entre ricos e pobres, seja entre Estados ricos e pobres, seja entre os indivíduos do mesmo Estado.

Tendo em conta a evidente e muito acentuada superioridade econômica e militar dos Estados Unidos e considerando a pouca ou nenhuma importância dada pelos norte-americanos ao direito nas relações internacionais, há quem se interrogue sobre a utilidade de se continuar falando em Direito Internacional, na busca de uma ordem harmônica e pacífica. Na verdade, o processo civilizatório da humanidade já caminhou muito e nessa caminhada acumulou-se experiência e ficou provada a importância do Direito para a convivência respeitosa e digna dos povos do mundo, mas muitas vezes ficou demonstrado que o “egoísmo essencial” de alguns seres humanos, de que falava Kant, supera a racionalidade e a consciência ética. Apesar dos grandes avanços científicos e tecnológicos, a barbárie ainda está presente e tem seus momentos de triunfo. É o que assinala, com grande ênfase, Goffredo Telles Junior, reconhecendo o lado negativo, mas concluindo que na própria humanidade já existe o germe da reação humanista. Diz o eminente mestre, professor emérito da Universidade de São Paulo:

“A guerra ainda grassa no mundo. Ainda explode, em casos extremos, quando Estados – ou, mesmo, grandes agrupamentos humanos – promovem, para escândalo e revolta das Nações em geral, a violação dos altos princípios éticos da humanidade – como a soberania, a liberdade, a igualdade, a independência e a cidadania –, que são apanágio de nossa civilização e das democracias modernas. Mas a consciência e a cultura de nossos dias anseiam pelo banimento da guerra em toda a face da Terra” ( Iniciação na ciência do direito , São Paulo, Saraiva, 2001, p. 245).

Agora, mais do que nunca, tem sentido e é necessário falar de Direito Internacional. Os precedentes históricos da Paz da Westphalia, do Congresso de Viena e da Conferência de São Francisco mostram que a busca de equilíbrio e de convivência pacífica passa, necessariamente, pelo Direito. Um dado novo, muito importante, é o substancial aumento da consciência de direitos de todos os povos, especialmente das camadas mais injustiçadas. Por esse motivo, embora haja muitas derivações para a criminalidade, em grande parte pela falta de outras perspectivas, verifica-se também uma extraordinária multiplicação de grupos sociais e comunitários organizados, reivindicando direitos, sobretudo os direitos econômicos, sociais e culturais. O apoio a esses grupos, a denúncia das injustiças, a exigência de aplicação efetiva do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: esse é o caminho para o combate autêntico à violência e para a eliminação das injustiças, condição necessária para dar consistência aos ideais de paz.