Goffredo e suas lições de amor – José Carlos Dias

José Carlos Dias
Advogado

Meus Senhores….

Manhã de abril de 1959. Um garoto de 20 anos, baixinho, de cabeça raspada, está parado na esquina da rua Benjamin Constant com o Largo São Francisco. Vê-se que está nervoso, percebe-se emoção no jeito de olhar fixamente o prédio da Faculdade de Direito. Outro rapaz se aproxima, ficam juntos, mesmo olhar, ambos de terno cinza, conversam brevemente e caminham. Atravessam o largo, fingem não escutar os gritos perversos dos veteranos, passam pelos arcos da entrada e pronto: estão no pátio. Um funcionário negro parece divertir-se com as brincadeiras dos veteranos, mas seus olhos acompanham as meninas e os rapazes amedrontados que se unem aos dois. É o tradicional Joaquim; aproxima-se paternalmente e informa: naquele quadro está o horário das aulas.

E lá vão eles, os bichos; entre os bichos, eu, o baixinho de cabeça raspada por um veterano que me surpreendera dias antes, quando, afoitamente, fui à Faculdade para saber quando as aulas iriam começar.

Primeira aula, Sala dos Estudantes, Introdução à Ciência do Direito , Professor Goffredo da Silva Telles Junior. Tremi. Dois amigos, que tinham “bombado” com o Goffredo no ano passado, iriam ser meus colegas de classe, pois Introdução era a única disciplina eliminatória. Era conhecidíssimo: aulas maravilhosas, figura meio estranha, muito tímido, duríssimo, com ele não tinha jeito não, não dava moleza. As lendas se multiplicavam ora com o Goffredo, ora com o “Atalibinha”, ora com o Pinto Antunes, ora com a terrível figura do “Xandoca”, como eram conhecidos os catedráticos que nos iriam dar aulas.

Oito horas da manhã, sentado, caderno no colo, coração disparado, vejo entrar a figura mítica de Goffredo. Terno azul marinho com riscas de giz, muito sério, caminhando lentamente para a mesa. Senta-se, sem nos dirigir de imediato o olhar, mostra-se tenso, arqueia levemente as sobrancelhas, mexe com os lábios sem nada dizer, tira do bolso interno do paletó abotoado algumas fichas. É então que, depois de manter fixo, talvez por um minuto, o olhar no horizonte, nos vê, parece que só então nota que lá estão seus novos alunos, alguns poucos já o eram, lá estavam como repetentes. Goffredo mostra seu carisma.

“Meus senhores”. A partir daquele momento começou a tocar em mim a emoção pela escolha do Direito como vocação que, havia tanto tempo, intuía possuir, respirava o mesmo instante mágico que meu pai vivera no início do século, em 1903, ouvindo a primeira aula que lhe ministrara Pedro Lessa. Ou terá sido Reynaldo Porchat? Mas terá sido um dos dois que receberam, acolheram o então adolescente Theodomiro Dias, de 16 anos, no mundo do Direito.

Saí da aula fascinado, aquela maneira pausada de falar, seus olhos fixos na platéia atenta, um balancear sutil de cabeça, acompanhando o pensamento que, às vezes, o levava a desviar o olhar, como se à procura de uma idéia guardada em algum desvão da memória. Sim, tínhamos um poeta a nos dar aula de Direito, mais do que um jurista atado a fórmulas bacharelescas, escandindo pausadamente as frases com rigor métrico, esgotando-lhes o sentido, constante preocupação com a sintonia fina do raciocínio. Não, não me tinham o descrito assim, amedrontaram-me com medo da “bomba”. Sendo a disciplina eliminatória, seria preciso prestar atenção, anotar, não dava para estudar pelas apostilas vendidas pelo Centro Acadêmico, pois o professor alterava as aulas todos os anos, até conceitos ele os refazia, modificava-os e justificava a mudança com a humildade dos que não se acomodam, dos que não gostam de se repetir.

Não é fácil reproduzir o estado de espírito do jovem estudante de quarenta anos atrás, no Largo de São Francisco. Éramos tão presunçosos, salvadores da pátria, pelo menos, vivendo a política acadêmica de forma obsessiva, séria, como se fôssemos profissionais, sem nitidez ideológica marcante. Estudávamos na primeira dentre as três faculdades de Direito de São Paulo, e na nossa arrogância achávamos ser a primeira também em qualidade. Os estudantes dividiam-se em partidos e não arredavam pé, até as amizades balançavam, um Renovador e um Independente não se bicavam, ficavam marcados. Até hoje distinguimos antigos colegas pelo partido que pertenciam. No entanto, todos eram unânimes em torno da devoção medrosa a Goffredo. E foi por isso que, com certo despeito, nós do Renovador recebemos a notícia de que o Independente iria rodar semanalmente as aulas taquigrafadas de Introdução , trabalho muito bem feito pelo Desidério Fontana, nosso colega muito mais velho do que nós, com seus cinqüenta anos talvez, que seria até a morte o aglutinador de nossa turma, de nossos jantares. As apostilas do Fontana, um perfeccionista e detalhista, indicavam até as palmas que eram tão freqüentes. Só faltavam, diziam os maldosos, referências às esporádicas rateadas do mestre cuja gagueira, conta a história, vencera com obstinação e muito treino.

O bom trabalho do Fontana não me inibiu de anotar as aulas, datilografando metodicamente os resumos, fazendo anotações.

O curso crescia a cada aula. Saíamos empolgados da classe, comentávamos, discutíamos a evolução daquele homem nascido para ensinar e dar testemunhos, desiludido da política convencional, dos políticos profissionais e pragmáticos, demagogos e corruptos. Dava-nos o sentido poético do Direito, ensinava-nos a amar a Justiça, impregnava-nos de paixão, instigava-nos à indignação. Não exagero ao dizer que o conteúdo de suas lições rivalizava com a beleza da forma impregnada em seu discurso, suas aulas tinham música própria, introduzia-nos à ciência e à arte do Direito, entusiasmava-nos a seguir os nossos rumos com grandeza.

Veteranos, principalmente do segundo ano, vez por outra, vinham assistir a uma ou outra aula de Introdução , matar a saudade do Goffredo, ou perguntavam em que ponto estava o curso. Uma das aulas, talvez a mais linda, era presenciada por um número grande de estudantes para ouvir Goffredo ensinar onde estão as raízes do Direito: “o Direito é como o amor, nasce do coração dos homens”. Os aplausos continuavam, todos de pé, acompanhando a emocionada figura de olhar distante e levemente sorridente, sair lentamente da sala.

Esta aula tão célebre que a cada ano ele aprimorava, veio a inspirar um poema musicado pelo “Cachimbinho”, nosso bedel sambista. Desconheço o autor da letra, mas o sambinha é até hoje irreverentemente imortalizado pelos jograis da Academia, da turma de 64, grupo organizado pelo Flavio Flores da Cunha Bierrenbach que relembra a vida acadêmica e mostra o pano de fundo dos anos 60. A letra parece-me ser assim: “Meus senhores,/ a norma do momento/ é a do comportamento/ que vocês vão estudar./ Vou explicar:/ A sociedade/ pra manter a integridade/ tem que ter e respeitar/ sem abusar./ E a norma citada/ não pode ser violada/ em nenhum momento,/ pois atribui ao lesado/ a faculdade de exigir/ o seu cumprimento./ E a norma que mantém a sociedade/é aquela da atributividade,/ é a norma comumente assim chamada/ jurídica também./ Von Jhering se enganou quando afirmou/ que o Direito deriva da força, isto não, / pois seu Goffredo explicou/ que o Direito vem do fundo/ do coração.”

Sei que não é fácil os jovens de hoje compreenderem como um sexagenário, depois de quarenta anos de vivência áspera do Direito, como advogado criminal, ainda é capaz de reviver “academicices”, a cantarolar as trovas que viveu, ainda sinta o entusiasmo que o energizou, a esperança que aprendeu a cultivar e a metabolizar. Tanta fé aprendeu em grande parte com aquele que foi o mito de tantas e tantas gerações.

Convidado a escrever sobre Goffredo, pus-me a pensar muito e me desafiei a pensar sobre o filósofo, o pensador, o intelectual, o político na acepção de quem interfere no instante histórico de seu país com sua denúncia ou com seu apoio, o orador brilhante desde a mocidade, esse jovem bem nascido e bem crescido que não envelhece, sobre este ser humano predestinado à paixão.

E por falar em paixão, a nossa geração acadêmica, sem dúvida, pulsa em especial no seu coração. É que a paixão de Goffredo se materializou em Maria Eugênia, bonita e brilhante, querida caloura da turma de 64.

Como acontece com os grande mestres, Goffredo acompanhou seus discípulos, encorajando-os, dando-lhes conselhos, ouvindo-os, torcendo por eles, sempre uma palavra amiga.

Veio a ditadura e com ela o medo, a tortura, o silêncio, a morte, as aulas ouvidas e assimiladas, depois transformadas em pó, no menoscabo da violência militar. Goffredo ficou de luto, alunos morreram, outros desapareceram, muitos se exilaram, muitos concederam, muitos transidos de medo ou covardes por vocação, arregaçaram. Entre os resistentes, suas lições sempre presentes. Alguns alunos seus, entre os quais eu, passamos a defender perseguidos políticos.

E neste capítulo, lembra-me bem um episódio marcante em minha vida profissional e que é reproduzido em A folha dobrada : meu escritório foi palco de uma audiência a portas trancadas, presentes o Professor Goffredo, Prudente de Moraes Neto, o Padre Caetano Zolim, Hélio Bicudo, estando eu acompanhado de meus companheiros Arnaldo Malheiros Filho, José Roberto Leal de Carvalho e Maria Luiza Flores da Cunha Bierrenbach. A audiência se destinava a tomar o depoimento de Rodolfo Konder, recém-saído das dependências do Doi-Codi, onde fora torturado e testemunhara a morte de Wladimir Herzog. Ao cabo de várias horas, o Professor Goffredo com solene emoção, disse mais ou menos assim: “Triste é a condição de um país em que um escritório de advocacia precisa ser transformado em um tribunal clandestino como única forma de se obterem as provas”.

O original do depoimento foi confiado a mim para que o utilizasse quando estimasse oportuno e mais duas cópias foram entregues a Prudente de Moraes Neto, representando a ABI e outra ao sacerdote que representava Dom Paulo Evaristo Arns. O depoimento viria a ser por mim juntado, cerca de um ano depois, Rodolfo no exílio, no processo em que foi julgado. Durante a defesa li o depoimento perante o Conselho da 2ª Auditoria do Exército da Justiça Militar, os juízes-oficiais ouviram a leitura extremamente constrangidos. E Rodolfo foi absolvido. O que significa que também Wladimir Herzog o teria sido, se vivo estivesse, pois o grau de envolvimento na prática política imputada a ambos era exatamente o mesmo.

O depoimento de Rodolfo foi peça importante, fundamental mesmo, na ação civil promovida por Clarice Herzog na qual ficou reconhecida pela Justiça Federal a responsabilidade da União pelo assassínio do jornalista.

Começava então a organizar-se, com mais nitidez, a resistência democrática. A morte de Herzog, como bem relata Goffredo em seu livro A folha dobrada , teve um sentido catalisador, sua morte foi cobrança de vida, uniram-se os cristãos, de diversas linhas, aos judeus, aos muçulmanos, aos fiéis de todas as crenças, aos ateus, todos em busca do ar, da liberdade de pensamento e participação política. O ato ecumênico na Catedral da Sé foi um dos marcos que mudou a nossa história.

Aprendemos que não podíamos desprezar oportunidades para marcar posição na luta pela redemocratização do país.

Em 1977 teríamos que comemorar os cento e cinqüenta anos da fundação dos cursos jurídicos no Brasil. O Diretor da Faculdade era Alfredo Buzaid, o grande jurista que, lamentavelmente, tanto se comprometera com a ditadura, como Ministro da Justiça do Presidente Médici. Não dava para engolir a programação oficial que se daria no salão nobre.

É o que dizíamos eu, Almino Afonso e Flávio Bierrenbach, num almoço que tivemos no Círculo Italiano. Seria preciso que algo acontecesse e no pátio da faculdade, mas um acontecimento que não se restringisse a uma nostálgica festa acadêmica, mas que tivesse um sentido de seriedade e responsabilidade como ex-alunos, pelas lições que tivemos, compromissados com o que aprendemos na escola. Seria preciso uma aula, mais que isso, uma profunda avaliação político-jurídica, um laudo que afirmasse a falência múltipla dos órgãos do Estado de Direito no Brasil. A conversa foi se aquecendo. Como faríamos? Quem seria o autor da autópsia, o relator do laudo, quem seria a figura independente e com força moral e cultural capaz de fazer-se ouvir e atrair a atenção para os que queriam conspirar em prol da democracia? Era urgente, inadiável, um grito forte e definitivo da sociedade civil que representasse um basta ao silêncio forçado e ao cotidiano sem paz.

A escolha nasceu do sentimento unânime dos três à mesa: o Professor Goffredo da Silva Telles Junior. E com urgência impunha-nos a tarefa de falar-lhe. E foi o que fizemos, de pronto, marcando um almoço no mesmo restaurante. Flávio telefonou a Maria Eugênia e fez a convocação. Em poucos dias estávamos nós cinco em clima de amizade solene. Coube-me ser o encaminhador da proposta. Empolgado, nosso Professor de pronto topou. E se pôs, com brevidade surpreendente, a redigir aquele texto que viria a se chamar Carta aos Brasileiros . Quantas reuniões fizemos, outros tantos se juntaram a nós, no agradável apartamento da Av. São Luís do casal Maria Eugênia e Goffredo. Com humildade, o nosso mestre queria opiniões e críticas de seus alunos.

Finalmente, depois de cuidadosos preparativos, com a carta impressa em milhares de exemplares, com muitas assinaturas de lideranças do mundo jurídico, celebramos o evento, no pátio da Faculdade, tendo falado em nome dos organizadores o José Gregori. Finalmente ouvimos, emocionados, a leitura da Carta pelo Professor Goffredo. Ele estava particularmente tomado de emoção, sem jamais elevar a voz acima do equilíbrio do velho professor, a cadência do poeta era a mesma. O pátio estava apinhado de gente, era a sociedade civil em vibração intensa. A repercussão nacional foi enorme, os grandes jornais estamparam em primeira página a notícia, alguns deles já trazendo na íntegra a Carta que continuou a receber assinaturas em grande quantidade.

Muito mais poderia estar a dizer para ilustrar a grande influência, marcante influência que o Professor Goffredo teve em minha formação, como terá tido em tantos jovens de tantas idades e de tantas gerações. O magnestismo, a doçura da personalidade, o inconformismo com a negação da Justiça, sua capacidade de indignação, foram as marcas que o tornaram, juntamente com meu pai Theodomiro Dias, Queiroz Filho, Franco Montoro, referências de padrão ético e de luta pelo Direito, em minha vida.

Mais do que lições no mundo jurídico, estas pessoas, entre outras que não são muitas, ensinaram-me o mais importante: somente se vive com grandeza aquilo que se pôde sonhar. E com Goffredo continuo a sonhar que “o Direito é como o amor, nasce do coração dos homens”.