João Batista Ericeira

CARTA A GOFFREDO TELLES 27 de Junho de 2009 ficará assinalado como o dia em que o Brasil ficou mais pobre ética e culturalmente, em decorrência do falecimento aos 94 anos de idade, do advogado e professor Goffredo Telles Jr, legando aos seus compatriotas o supremo exemplo de amor ao país, de compromissos viscerais com a Justiça. Há quase trinta e dois anos atrás, dia 11 de Agosto de 1977, mestre Goffredo lia no pátio da Faculdade de Direito de São Paulo, a “Carta aos Brasileiros”, o documento que escrevera em uma manhã invernosa de julho movido pela paixão cívica, repugnando a ditadura vigente, propugnando o restabelecimento do Estado Democrático de Direito. O regime aparentemente estava no auge do autoritarismo, fechando o Congresso, determinando reforma do Judiciário por Decreto, criando os senadores biônicos, os colégios eleitorais adredemente preparados para eleger os governadores de estados aliados. O sucessor do Presidente da República Ernesto Geisel já era conhecido, criatura dileta do sistema, o chefe do Serviço Nacional de Informações general João Baptista Figueiredo seria incumbido da tarefa de completar a abertura lenta e gradual, que se operava em jogo de avanços e recuos. Os empresários, a classe política, convalidavam o regime, esquecidos do clamor das ruas e da mudança da correlação de forças da política internacional: a orientação do Departamento de Estado em relação aos governos da América Latina mudara com a posse de Jimmy Carter na Presidência dos Estados Unidos. Juscelino Kubitschek, João Goulart, Carlos Lacerda, no espaço de dois anos haviam deixado a vida para ingressarem na História. O clima era de desesperança, não havia a certeza de que se veria a luz no fim do túnel, mas o documento da lavra de Goffredo Telles deu novo alento aos jovens, a todos que sonhavam com o restabelecimento das garantias constitucionais totalmente suspensas em 13 de Dezembro de 1968 pelo Ato Institucional nº. 5. O documento foi comparado ao Manifesto dos Mineiros, de 1943, detonador da liquidação da ditadura do Estado Novo instalada em 1937 sob a presidência de Getúlio Vargas. Não foi o primeiro gesto cívico de Goffredo, em 1932 alistou-se para lutar na Revolução Constitucionalista visando a convocação da Assembléia Nacional Constituinte. Em 1933, como San Thiago Dantas, Miguel Reale, filiou-se a vertente antitotalitária da Ação Integralista Brasileira. Na conjuntura mundial em que o mundo se dividia entre o comunismo e o nazi-fascismo, o integralismo sustentava os valores da cultura e do nacionalismo, diante do Estado Novo que parecia irreversível com a falência dos postulados do liberalismo. Sete anos depois, em 1940 ingressou por concurso público na Universidade de São Paulo na cátedra de Introdução ao Direito de sua querida Faculdade do Largo de São Francisco. Por 45 anos embeveceu os alunos com aulas fascinantes. No dizer do professor Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores, “elas tinham a beleza da obra de arte, pois combinavam uma eloqüência desataviada provida do sal da emoção”. Em 1946 fez outra concessão a política partidária, elegeu-se deputado a Assembléia Nacional Constituinte, permitindo-lhe contribuições a Carta alimentadora dos sonhos democráticos de pós – Segunda Guerra Mundial. Em 1957 exerceu a Secretaria de Educação e Cultura na gestão do prefeito Adhemar de Barros. Suas passagens pela política partidária quedaram-se efêmeras, logo retornava as Arcadas de sua Faculdade de Direito, para sonhar novas utopias e plantar rosas no seu pátio de pedra, como mencionou em discurso de saudação a memória de Spencer Vampré, o antecessor na cátedra de Introdução ao Direito. As utopias fizeram-lhe sonhar com a constitucionalização do golpe de Estado de 64 através de projeto de Constituição que ofereceu a discussão da comunidade acadêmica. Insurgiu-se contra a revisão da Constituição de 1988, em 1993, em uma segunda “Carta aos Brasileiros”. Em 2007, por ocasião das comemorações dos 30 anos da primeira “Carta aos Brasileiros”, seus antigos alunos lançaram a campanha “Estado de Direito Já”. Escrevi então o texto “O Eterno Subversivo” louvando-lhe a obra, a trajetória intelectual, cívica, digna de ser seguida pelos profissionais de Direito, como exemplo de coerência e fidelidade aos valores republicanos. No livro “O Direito Quântico” com base nas descobertas da física e da biologia, fundamentou a ordem jurídica na imprevisibilidade da movimentação humana, segundo um sistema ético de referência, que leve em conta a Liberdade e a Justiça, utilizando a metodologia do diálogo. Durante toda a vida professor e advogado, a reivindicação da Liberdade o transformou em eterno subversivo, na medida em que esta é o antídoto para todas as ditaduras, dos militares, do Parlamento, do Judiciário. Deixa a vida pública onde sempre viveu como modelo para a cidadania e a advocacia do Brasil. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, costuma citar-lhe esta definição: “o político é um servidor público. Ele deve servir ao público e não se servir do público”. A sociedade brasileira deve e Goffredo Telles a última carta em que prometa lutar para a realização do seu legado, para que um dia a política e os políticos estejam efetivamente a serviço do país.