João Roberto Egydio Piza Fontes

Caros amigos:

Inicio me desculpando antecipadamente pela indigência do texto e a confusão das idéias, uma vez que a tarefa a mim confiada, embora honrosa, é das mais difíceis. Afinal, como se descreve um mito, ou melhor, o símbolo de uma geração de brasileiros ilustres a quem a pátria tanto deve e que nunca faltaram à Republica?

Ainda no campo das escusas, vale culpar alguém pelo infortúnio do escriba, e este alguém é a Dra.Maria Eugenia, advogada de escol, esposa e companheira inseparável do ilustre professor Gofredo, que ao responder as minhas ponderações sobre a enormidade da tarefa e a ausência de talento e arte deste advogado para escrever sobre o ilustre jurista, justamente por ocasião das comemorações de seu aniversario, retorquiu singelamente: “Que é isso Piza, escreva como se fosse uma carta de amor” e pôs fim a conversa. Esqueceu-se porém minha amiga , que a admiração e a paixão quando muito intensas podem silenciar  as palavras do melhor dos oradores, ceifar  as frases do mais produtivo dos autores, e fazer claudicar o mais inspirado dos poetas.

Tomadas pois as cautelas de estilo, ressalto que pretendo mencionar apenas fatos e situações que presenciei, sendo portanto insuficiente, limitado e parcial o relato. A vida e obra ou as vidas e obras do querido sinuelo das arcadas, professor Gofredo da Silva Telles Junior é por demais rica de emoções, pródiga de realizações para ser ao menos  tisnada em poucas linhas ou mesmo em poucos volumes. Para aqueles dispostos a tal empreitada recomendo a leitura de todas as obras já publicadas tanto teóricas como literárias, sem deixar de lado o encantamento dos discursos arrebatadores, e finalmente debruçar-se com afinco na inigualável “Folha Dobrada”. Depois disso quando já estiveres irremediavelmente conquistado, vem talvez a mais sutil e delicada das tarefas, qual seja: quedar-se horas, dias ou anos ao abrigo das arcadas e talvez, numa noite fria e brumosa os deuses permitam que ouças as vozes dos poetas, os discursos dos estadistas e as aulas dos juristas e então, só então, entenderás a importância da síntese de todos eles perpetrada na figura do ilustre aniversariante.O mais é fácil e eu conto um tanto.

Já lá se vão mais de trinta anos daquela manhã chuvosa quando me vi na aula inaugural na faculdade que de certa forma transformaria meu destino e o de tantos outros ali presentes. O professor era uma figura elegante quase aristocrática, que combinava com perfeição o raciocínio mais sofisticado e a singeleza da lógica cristalina na exposição de idéias. Tudo temperado com um certo ardor na oratória que a todos arrebatava, transformando jovens estudantes em entusiasmados defensores de idéias libertárias. 

Aos jovens de hoje pode parecer pouco, mas não era e nunca foi. Relembro aos céticos que estávamos no auge da ditadura militar e as palavras do ilustre professor funcionavam como um bálsamo para as almas intranqüilas dos jovens de então, pois, enquanto tantos se calavam, as idéias do mestre moldavam e preparavam os acadêmicos para as enormes responsabilidades que em futuro próximo enfrentariam. E o futuro não tardou e veio justamente pela mobilização generosa dos jovens no movimento estudantil, que praticamente ressurge das cinzas em meados dos anos 70. Primeiramente entremeando a luta pela reconstrução das entidades estudantis, UEEs e UNE, com as mobilizações por melhores condições de ensino nas universidades. Posteriormente, passando às reivindicações políticas mais gerais, como anistia, constituinte, etc… Enquanto isso, no Largo de São Francisco, talvez pelas próprias peculiaridades da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, os estudantes das arcadas, embora participassem das lutas gerais do movimento estudantil, confeccionavam uma agenda muito particular e que sempre nos pareceu mais politizada. As mobilizações que lá aconteciam já focavam, desde um primeiro momento, as lutas políticas mais gerais, especificamente no enfrentamento da ditadura militar, através da defesa de mecanismos políticos e jurídicos que preparassem o país para a redemocratização. Tais diferenças se explicam pela história desta faculdade e pela importância política e social de seu centro acadêmico, o famoso C. A. XI de Agosto, que desde a sua fundação sempre se colocou na vanguarda dos movimentos libertários experimentados pelo país. Neste sentido, diferentemente de outras escolas ou entidades estudantis, o ressurgimento do ME encontra ali solo fértil, tanto no ambiente acadêmico, como entre os professores. Some-se a isso a convivência enriquecedora com políticos da oposição que freqüentavam com habitualidade a faculdade a convite do XI, transformando o ambiente em um centro de aglutinação e irradiação das idéias e ações dos opositores do regime. 

Em tempos tão ricos de idéias e realizações, poucas pessoas estavam a altura de entender o momento histórico vivido, dentre elas, com certeza, a figura maiúscula e unânime do prof. Gofredo da Silva Teles se destacava, não só por ter preparado seus alunos para aquele momento, como também por ter vivenciado todos os perigos e incertezas das vésperas desse renascimento. E é através de um profundo sentimento de solidariedade com seus alunos e de responsabilidade perante a nação que se explica o seu apoio e a sua participação direta em todos os eventos históricos importantes que empolgaram aquela geração. 

Recordo a enorme satisfação que nos causou o professor ao aceitar fazer uso da palavra em um ato público pouco citado, mas que se constituiu na primeira manifestação pública do movimento estudantil de desafio a ditadura militar, desde a geração de 68. Na oração proferida na noite de 28 de abril de 1977 durante o ato conhecido como “O Enterro da Constituição”, já encontraríamos as idéias básicas que seriam retomadas posteriormente na famosa Carta aos Brasileiros, mas que já estavam ali presentes, das quais destaco pequeno trecho: “Nós queremos a ordem, mas a ordem do Estado de Direito. A Ordem fora do Estado de Direito é a desordem da Ditadura. Os cultores do Direito não podem permitir que se troquem o sentido das palavras. A ditadura se chama Ditadura, a democracia se chama Democracia…….O que não for ordem democrática é a ordem da Ditadura e nós execramos todas as Ditaduras.”[1]

Por essas e por outras manifestações é que o movimento de resistência ao regime passa a naturalmente priorizar como palco principal de seus atos públicos o Largo de São Francisco. As manifestações se sucedem e a repressão também, agora já não apenas estudantes e professores, aliás, nem todos, mas também ressurgem os movimentos populares, das mais variadas matizes, é a mística do território livre que a todos contamina e protege. Relembro nesta ocasião a criação de um interesante círculo vicioso, ou virtuoso como queiram, quanto mais aumentava a repressão, mais massivos se tornavam os atos públicos e mais populares aderiam aos estudantes insurretos. Creio que esse processo de realimentação da resistência apressou e muito a inevitável debacle do regime. Outro aspecto a ser explorado é a transformação de estudantes comuns em militantes do movimento, em período quase integral, concomitantemente com o abrandamento do controle da direção sobre a dinâmica dos acontecimentos. Em resumo, a luta contra a ditadura passa a ser priorizada em relação a todo o resto e adquire dimensão própria.

Diante de tal quadro, eis que surge a necessidade de um reordenamento de prioridades, ou de outro bordo, uma sistematização dos diversos anseios manifestados no âmbito da resistência. A solução surge naturalmente e pelas mãos do ilustre professor: estamos todos a assistir a gestação da famosa Carta aos Brasileiros.

Naquela época, ainda jovem estudante, confesso não ter tido  a exata noção da dimensão do referido documento, embora tivesse a honra de participar de seu ato de lançamento e ser um dos seus signatários. Quanto ao conteúdo e a qualidade do texto, a Carta fala por si, e não foi além nem aquém da perfeição característica dos trabalhos do ilustre professor. Hoje, com o distanciamento próprio do tempo decorrido, percebo nitidamente a indiscutível respeitabilidade que a Carta trouxe ao movimento oposicionista como um todo, tendo ela alcançado a quase unanimidade no seio popular e no Congresso Nacional. As idéias ali formuladas passaram a direcionar as ações futuras do movimento pela redemocratização do país, marco histórico em que se transformou e que veio influenciar a todos.

Mas, com certeza, muito já se falou do jurista, do professor, do advogado Gofredo da Silva Teles e sua participação na resistência à ditadura militar. Gostaria, porém, de explorar a riqueza e o entusiasmo com que o aniversariante tem se dedicado até hoje às grandes causas que empolgam a cidadania brasileira. Foi assim com sua marcante participação no movimento pró-constituinte, influenciando com suas idéias e seu trabalho as plenárias pró-participação popular. Não foi por acaso que a Ordem dos Advogados do Brasil sempre teve no ilustre professor um parceiro de primeira hora em seus principais embates. Recordo com admiração as palavras proferidas pelo professor quando do primeiro ato público do Movimento pela Ética na Política em São Paulo, realizado no salão nobre da Faculdade de Direito. O resultado, todos sabemos, o início do movimento que culminou com a declaração do impedimento de um presidente da República comprometido com um infamante esquema de corrupção.

A trincheira da defesa do patrimônio nacional também contou com a participação do ilustre professor na luta que se travou pela preservação da Companhia Vale do Rio Doce e da Telebrás, quando, acompanhado por alguns dos maiores juristas do país, denunciou à nação estarrecida o descalabro das privatizações efetivadas ao arrepio da lei, e cujos efeitos maléficos até hoje se estendem.

O rigor na preservação, em sua inteireza, da Constituição de 1988 encontrou no mestre aniversariante competente defensor. Assim também o foi no enfrentamento da tentativa, felizmente frustrada, de revisão constitucional, bem como na denúncia constante do abuso pelo Poder Executivo na edição das medidas provisórias, o que culminou com a limitação constitucional hoje existente.

Finalizando, retomo a constatação de que não há espaço nem tempo suficientes para que se aborde na sua integralidade as múltiplas facetas da vida deste ilustre brasileiro. Aliás, se a vida é, como já se disse, puro ruído entre dois silêncios insondáveis, o silêncio antes de nascer e o silêncio depois da morte, a existência do ilustre aniversariante é mais, uma verdadeira explosão de sons, imagens e aromas a inebriar a todos que tiveram a ventura de privar da sua convivência. Confesso meu indisfarçável orgulho em ter o destino me colocado primeiro na posição de seu aluno, depois de seu companheiro de jornadas e, sempre, de seu eterno admirador. O resto, ora, o resto é apenas silêncio.

                                              Profundamente grato

                         João Roberto Egydio Piza Fontes

[1] Jornal do Brasil – 29/04/1977