CARTA À FAMÍLIA TELLES
Certos homens podem ser definidos por um punhado de palavras. Palavras existem muitas no dicionário para adjetivar um indivíduo. Invejoso, deselegante, inoportuno, são algumas destas palavras. Mas, há outras palavras, para se definir um homem. Gentil, culto, cortez, polido, educado, justo, estudioso, competente. Estas últimas palavras cabem para definir Goffredo, mas apesar de indicarem bem os contornos gerais de sua personalidade, não são suficientes para trazer à lume em sua totalidade, a efígie humana de Goffredo. E por que?
Porque certos homens não podem ser definidos por um punhado de adjetivos, pois estes nunca lhes seriam suficientes, por mais elogiosos que fossem. Eis aí uma limitação do poder de designar das palavras, das palavras significarem e dizerem coisas, em seu sentido próprio de um processo semiótico (semeion, gr.), ou seja, ‘de estarem por algo’, ‘de estarem no lugar de algo’, como signos. O lugar de Goffredo não se ocupa, não se preenche jamais, fica sempre vazio.
Somos sim, mortais, finitos, limitados. Nascemos, vivemos e deixamos rastros. Mas, apesar de mortais, alguns homens não passam. De uma certa forma, sempre ficam e sempre estarão. O esquecimento da memória frágil de uma juventude amolecida pelas tentações da sociedade de consumo não é capaz de apagar aquilo que certos homens fizeram, por mais anestesiada que a consciência histórica de nossos tempos possa estar, nesta pós-moderna condição.
Certos homens não passam e não passarão, pois nenhuma poeira há de corroer as linhas que escreveram, e que uma vez escritas, empoeiram, recostadas na forma de livros e artigos nas sagradas bibliotecas, centenárias bibliotecas, de nossa Faculdade. Isso porque esses homens falaram ao coração e à alma, não à mente, e não pregaram no deserto, como o quotidiano da labuta professoral pode dar a impressão.
Por isso, certos homens se tornam mitos, lendas. Goffredo, Professor Titular desde 1954, da coragem cívica da “Carta aos Brasileiros”, de 08 de agosto de 1977, após a morte de Wladmir Herzog, ocorrida em outubro de 1975, nos porões do DOI-CODI, em plena ditadura militar, aliás, portador da virtude enaltecida por Hannah Arendt como sendo o coração da vida democrática. Goffredo, da coragem intelectual da publicação, ainda nos idos de 1970, do artigo intitulado “O Direito Quântico”, publicado na “Revista Brasileira de Filosofia” (número 80), de avançar, além de seu tempo, para dizer que a ética está no núcleo da célula humana.
A “Carta de Goffredo”, datada de 21 de Outubro de 2002, e por ele assinada, que respondia a indagações minhas a ele dirigidas, reafirma essa sua crença e esse seu entendimento. Aliás, ainda conservo comigo, em minha hoje já extensa biblioteca pessoal, as 3 Cartas originais escritas por Goffredo, e a mim dirigidas, ‘como alguém que fala por’, das quais me senti por isso, um ad-vocatus nas sessões públicas que realizamos para externalizá-las, ensinando as novas gerações de seus entendimentos sobre a arte do justo.
Se a ética está ou não na célula humana, não sei. Acredito que, em parte sim, em parte não. Acredito que a ética é um atributo do indivíduo, tanto quanto um esforço da kultur, para invocar, na ambigüidade de sentido do termo alemão, o seu mais elevado teor, ou seja, um esforço da civilização pelo salto moral. Trata-se de escolher por valorizar os valores, e destes extrair a força do entendimento e das relações, no processo, nada simples, de auto-conhecimento e, nada fácil, de reconhecimento da alteridade. Trata-se de um esforço da civilização em fazer da existência uma oportunidade aberta para a expressão das virtudes, dos talentos e das capacidades, sempre diferenciadas, de todos e de cada um. Ao menos, isso é o que eu sinto, e, também, o que penso.
Mas, o que sinto é, também, saudades, pois muitas vezes me lembro do calor com que era recebido para colóquios e conversações vespertinas, sempre acompanhados de uma xícara de café, de muita cortesia e elegância no trato, pelo Professor Goffredo, em seu escritório, na Avenida São Luís, 268, inclusive, por vezes, acompanhado também pela docilidade de Olívia Telles Junior, ou, ainda outras vezes, de Maria Eugênia.
Ele tinha vigor, lucidez e humor para nos receber, até para além dos 90 anos de idade. Mesmo a contra-gosto das recomendações médicas, dos rigores e dos horários que as limitações físicas começam a impor ao corpo, sentia-se e via-se brilhar em seus olhos, o mesmo fulgor que incendiava a geração que pôde assistir presencialmente a leitura da “Carta aos Brasileiros”. Era a mesma alma, o mesmo homem, com o mesmo compromisso. Nada havia mudado.
A essa época, me lembro de ter dado palpites a Goffredo no processo de reedição de suas obras, todas grandiosas, a que se dedicou nos últimos anos, e que hoje, renovadas, estão à disposição do público leitor, pelas mãos de sábios editores. Minhas recomendações foram poucas, meus incentivos foram muitos, mas seu fôlego foi ainda mais surpreendente.
Eis o caso das renovadas e belas edições de: “Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica”, 8. ed., 2006, Juarez de Oliveira; “O povo e o poder”, 2. ed., 2006, Juarez de Oliveira; “Carta aos Brasileiros”, 2007, Juarez de Oliveira; “Estudos”, 2005, Juarez de Oliveira; “A criação do direito”, 2. ed., 2004, Juarez de Oliveira; “Palavras do amigo aos estudantes de direito: bosquejos extra-curriculares proferidos no escritório do Professor em 2002”, 2003, Juarez de Oliveira; “Ética: do mundo da célula ao mundo dos valores”, 2. ed., 2004, Juarez de Oliveira; “Tratado da conseqüência: curso de lógica formal”, 6. ed. 2003, Juarez de Oliveira; “Iniciação na ciência do direito”, 2001, Saraiva. São todas obras atuais e disponíveis ao público leitor.
Isso porque entendo que as riquezas jusfilosóficas produzidas no Brasil não podem e não devem ficar empoeirando em prateleiras obscuras, ou estar recônditas do mais primeiranista dos estudantes de direito. Muito menos, estar longe do alcance de milhares de culturalmente famintos operadores do direito, que destas obras podem extrair alento para suas tarefas e labutas, em torno da aplicação do direito. Nesse sentido, a minha empreitada pessoal, não somente estimulando a republicação das obras de Goffredo, mas também auxiliando os Professores Tercio Sampaio Ferraz Junior (especialmente, “Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito”, 2002, Atlas) e Celso Lafer (especialmente, “A internacionalização dos Direitos Humanos”, 2007, Manole), na publicação de suas inigualáveis contribuições à Filosofia do Direito, esta que não é área de conhecimento de somenos importância na formação jurídica.
Na carta intitulada “Duas palavras”, contribuição de Goffredo a mim endereçada, mas voltada para atender a um lotado auditório de expectadores num evento promovido pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito, com apoio do Centro Acadêmico, no Auditório XI de Agosto, naquele que ficou sendo o coletivo esforço de publicação intitulado “O que é a filosofia do direito?”, saído pelo patrocínio e sob os cuidados da Editora Manole, em 2004, contando com as contribuições de Alaôr Caffé Alves, Celso Lafer, Eros Roberto Grau, Fábio Konder Comparato, Goffredo da Silva Telles Junior e Tercio Sampaio Ferraz Junior, sob a minha coordenação editorial, pode-se ler: “Em suma, a Filosofia do Direito é a reflexão aprofundada sobre os princípios de que se originou, na sociedade humana, a disciplina da liberdade, o regulamento do dever e da responsabilidade, ordenação incluída no determinismo infrangível que dirige a movimentação de tudo, no imenso Universo. Reflexão, de fato, sobre a liberdade. Ou seja, reflexão sobre essa excelsa virtude do mais evoluído dos vivos; do ser apurado, resultante da permanente seleção natural das espécies, nas imensidões dos céus e no lento decurso de infinitos tempos”(p. 25). Neste texto, ao distinguir entre o jurista e o especialista, Goffredo deixa claro que “Quando o profissional do Direito passa a dedicar-se a uma tal reflexão, o simples bacharel se promove a jurista” (p. 26).
Aliás, no que tange ao sentido mais profundo das reflexões de Goffredo, é Tercio Sampaio quem capta e descreve a idéia de sua metafísica. Em seu artigo “Ordem e desordem”, na Revista do Advogado, volume n. 67, exclusivamente dedicado ao Professor Goffredo, de 2002, Tercio afirma: “Por força do mistério, não há, na metafísica de Goffredo, positivismo e nem naturalismo, pois ela se curva humildemente, diante do ´insondado´. ´Insondado´, mas não insondável, pois conhecimento é abertura para o mistério e a realidade é mistério que se abre. O mistério existe, diz Goffredo. A verdade também existe. E ambos se opõem. Verdade e mistério são contraditórios, porque a verdade é conhecimento e o mistério é falta de conhecimento” (p. 35).
Também me lembro da cerimônia de seu enterro, das pessoas presentes, de seus comentários, das lágrimas, da honra de viver aquele momento, de despedida de um grande jurista, sendo publicamente homenageado e pranteado em seu túmulo.
Goffredo é, por isso, um ícone. É um símbolo para o Largo de São Francisco. Símbolos não são erigidos, assim se consagram por sua história, e apenas colhem do entorno o reconhecimento que lhes é devido. É isto que faz dele um mestre que não passa, que sempre fica. Nas palavras de Celso Lafer, quando de dedica a desfolhar o sentido d´A Folha Dobrada de Goffredo (“Revista dos Advogados”, 2002, p. 36): “…ele foi e é não o Professor de Introdução, mas o Mestre da Iniciação ao Direito”.
Este sim podia dizer, em vida, que foi poeta, patriota, crente e que amou na vida. E, por amar demais, deixou lições (lectio, lat.), nem coleções de livros e nem artigos científicos apenas, mas sobretudo lições, de vida, de virtude, de doçura, de justiça. Lições não são para serem estudadas, como se equivocam certos acadêmicos, por vezes. São para serem sorvidas, ab-sorvidas, como se faz com o bom e maturado vinho.
Mas, por que precisamos de ícones, de lendas e de símbolos? Precisamos deles, pois em momentos de indefinição, de crise, de hesitação, eles sempre comparecem para sinalizar o caminho a seguir. São faróis na tempestade da existência, a cuidar das embarcações perdidas, são portos-seguros, são referências. Asseguram, no que podem, a continuarmos a testemunhar o mesmo, quando temos a sintonia que nos faz neles nos socorrer. Eis aí Goffredo como testemunha ocular da história desse país.
Particularmente, sou de uma família franciscana, não somente por profissão, mas por destino. Meu pai foi velado neste salão, onde hoje homenageamos e lembramos os 95 anos de idade de Goffredo.
Carlos Alberto Bittar, nascido em 03 de abril de 1939, hoje teria 71 anos. Quantas lições a mais teria deixado aos seus alunos? Não se pode calcular. Um brasileiro anônimo entre tantos, que nascido na cidade de Três Rios, no Estado do Rio de Janeiro, se tornou Professor Titular desta Casa, com a Tese “Reparação civil por danos morais”, defendida em 1993. Recentemente, quando do Evento Comemorativo dos 20 anos do Código de Defesa do Consumidor, promovido pela OAB-SP, por graça e gentileza da Professora Titular Silmara Juny de Abreu Chinelato, seu nome foi lembrado, também neste salão, no que tange à sua contribuição em torno da proteção do consumidor no Brasil.
Também neste salão, defendi minha Tese de Doutorado, em 29 de novembro de 1999, sob o título “Semiótica do discurso jurídico”, após uma invernada rigorosa vivida na França, sob a primorosa orientação de Tercio Sampaio Ferraz Junior, para, alguns anos depois, em 01 de dezembro de 2003, ser aqui titulado como Livre-Docente. Tendo sido aprovado em Processo Seletivo, de 2002, me tornei Professor desta Casa, para me efetivar na carreira através do concurso público, em 2005, desde quando, na condição de Professor Associado, tenho podido dar algum testemunho pessoal, ao lado de meus colegas de Departamento, na área da Filosofia e da Teoria Geral do Direito, com a nítida sensação de quem conhece a nobreza de sua atividade, e está ciente de que leva uma chama longeva adiante, que se atualiza, e que também no futuro encontrará outros a herdarem-na.
Isso porque – Imagine-se por um momento! – uma vez fosse de todo apagada, empobrecidos estariam, em muito, os domínios da Ética, do Direito e da Justiça. Na “Oração de Agradecimento”, datada de 12 de agosto de 2008, e por ele assinada, que respondia aos estímulos de organização de um evento em sua homenagem, o Ciclo de debates “Filosofia, Sociedade e Direitos Humanos”, ocorrido em 25 de agosto de 2008, coordenado pelo Professor Tercio Sampaio, e por mim organizado, com a colaboração dos Professores do Departamento, Goffredo afirma: “Para os seres humanos, viver é conviver” (p. 03). E, mais adiante, ainda acrescenta: “… a convivência exige disciplina. Sem disciplina para o comportamento das pessoas, a vida em sociedade seria um permanente conflito, e se destruiria a si própria. Tornar-se-ia impossível. Pois bem, tal disciplina, eu a denomino DISCIPLINA DA CONVIVÊNCIA HUMANA” (ps. 03 e 04). Eis aí a sua definição para a ciência do direito, que ladeia outras preocupações do espírito humano pela convivência, mas que exerce papel socialmente insubstituível.
Falar do Direito em seu berço de nascimento é muito fácil, pois estamos sentados sobre a fonte de onde jorram as lições que encadearam a formação do Direito no país. Enfim, sou muito suspeito para falar do Largo de São Franscisco, pois minha vida familiar e pessoal está a ele ligada.
Também sou suspeito para falar de Goffredo, o mais fransciscano dos franciscanos. Sou franciscano e daqui somente sairei, enquanto destino, como esses dois honrosos exemplos de homens saíram. Não posso e não consigo distinguir estas coisas; não consigo e não devo distinguir estas coisas. Elas são uma e a mesma coisa para mim, ou seja, é o que confere sentido à minha vida.
Certa feita, foi o filósofo Jean-Paul Sartre que afirmou que estamos, paradoxalmente, jungidos à nossa liberdade. Não se pode estar livre de ser livre. Isso significa que temos que fazer escolhas, e a minha escolha foi a docência, induzido pela campanha de vida de mestres como Goffredo, aliás de quem nunca fui diretamente aluno, mas de quem recebi os ecos que podem ser sentidos e percebidos pelos espíritos mais sutis ocupando os espaços de nossas Arcadas.
Não fui aluno de Goffredo, mas fui encantado há 18 anos atrás, quando nessa Casa entrei como estudante, pelas aulas de Introdução ao Estudo do Direito, e, depois, orientado e conduzido até aqui, pelo Professor Tercio Sampaio Ferraz Junior, a seguir essas trilhas, palmilhando-as a partir de minhas particulares intuições e pesquisas, dentro de minhas também pessoais limitações e perspectivas.
Ao se falar da Filosofia, não se pode esquecer que essas são as trilhas de Silvio Romero, Pedro Lessa e Tobias Barreto. Essas são as trilhas que não permitem que as tochas que circundam o túmulo de Julius Frank se apaguem, em pleno coração vivo do Largo de São Francisco. Essas são as trilhas de Goffredo Telles Junior, de Fábio Konder Comparato, de Alaôr Caffé Alves, de Celso Lafer, de Tercio Sampaio, e tantos outros cultores da jus-sabedoria. Essa escolha se tornou para mim o meu grilhão, que aceito com responsabilidade e gravidade, mas com a tranqüilidade de estar no lugar certo, fazendo a coisa certa.
Se sou suspeito para falar do Largo, de amizade posso falar com muita sinceridade e grande franqueza. A família Bittar, ao lado da grande família dos professores, alunos e funcionários do Largo de São Francisco homenageia, mais uma vez, o Professor Goffredo da Silva Telles Junior, Professor Emérito da Universidade de São Paulo (desde 1986), e sua família, em seus 95 anos de idade.
São Paulo, 18 de novembro de 2010.
Eduardo C. B. Bittar
Professor Associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco