FDUSP, 18/XI/2010
CELSO LAFER
Nesta mesa de Amigos voltada para celebrar os 95 anos do nascimento do Professor Goffredo, o ponto de partida da minha intervenção é, naturalmente, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na qual moram a alegria e a amizade, vale dizer, a alegria da amizade, como explicitam as trovas acadêmicas – que ontem ouvimos, cantadas pelo Coral Acadêmico na abertura deste Congresso. Com efeito, para o prof. Goffredo – nosso querido Mestre – a Faculdade foi o impulso mobilizador de sua vida. Nela estudou e nela lecionou durante décadas. Foi na Faculdade que aprendeu a amar o Direito como a disciplina da convivência guiada pela liberdade e pela justiça. Da Faculdade nunca se separou porque no seu “ambiente mágico”, como diz nas suas memórias significativamente intituladas – A Folha Dobrada – encontrou a maneira de alimentar a sua vocação de grande professor. A fecunda interação entre o fascínio pelo Direito e a qualidade do magistério enraizado no ambiente da Faculdade é a chave do seu percurso e tem uma dimensão mais ampla que cabe reiterar nesta mesa de Amigos.
A Faculdade, fundada em 1827, em função do diversificado e significativo papel político, jurídico, cultural – exercido pelos seus alunos e professores na vida do país, tem a característica de um local da memória, para recorrer à formulação do historiador francês Pierre Nora. Locais de memória nascem e vivem de um sentimento de relevância da comunhão dos fatos passados com os do presente e de sua importância para o futuro. Daí, no caso da Faculdade de Direito, a sua aura. Ela se expressa, por exemplo, no século XIX, na letra do Hino Acadêmico cuja música é de Carlos Gomes. São temas fortes da letra, de autoria do poeta e aluno da Faculdade, Bittencourt Sampaio: a esperança na mocidade acadêmica, o seu papel na elevação do Brasil – “Esse imenso colosso gigante” – que quer a luz da verdade e da liberdade. Esta aura, em novos contextos, se viu sustentada pelos alunos do século XX que, na sua maioria, seguindo a tradição; sentem a Faculdade como “… lar e templo/Tribuna, trincheira e berço/Página viva da História…” nas palavras do poeta Paulo Bomfim em 1977, também ele aluno da Faculdade e sensível ao seu sonho de liberdade.
Faço estas considerações porque o prof. Goffredo é representativo da força do sentimento desta aura como um local de memória da vida nacional. Ele a representa para gerações e gerações da Faculdade de Direito (inclusive a minha turma, de 1964, que o elegeu paraninfo), que por isso mesmo com ele se identifica na comunhão do impulso renovador das tradições acadêmicas, como no passado se identificou com José Bonifácio, o Moço que, no século XIX, encarnou o significado desta aura e que hoje nos recebe de braços abertos no simbolismo da sua estátua, localizada na entrada da Faculdade.
Um momento luminoso na vida e no magistério do prof. Goffredo, em que esta aura renovadora se encarnou na sua palavra foi a Carta aos Brasileiros por ele redigida e lida em 1977 na Faculdade, no páteo das Arcadas. A Carta teve como ponto de partida a herança do que se ensina numa Faculdade de Direito. Teve como ponto de chegada anunciar a erosão do regime autoritário militar instaurado em 1964, ao catalisar, no país, a consciência do imperativo do Estado de Direito.
A Carta foi um fermento transformador na melhor tradição do papel da Faculdade na vida do país, mas ela não é um acidente no percurso do prof. Goffredo. Ela é uma expressão da lição de um Mestre sempre cercado pela afetuosa admiração dos seus alunos. Esta deriva do cumprimento do mandamento do professor, que é para ele o de servir aos estudantes por amor a eles. O prof. Goffredo, com a integridade e a civilidade de um homem de bem, serviu aos seus incontáveis estudantes. As suas aulas tinham a limpidez e a beleza da elaborada destilação do seu pensamento. Desta destilação ele nos dá conta nas suas memórias, A Folha Dobrada, nas quais se fundem harmoniosamente o vivido e o pensado – sobre o Brasil, o Direito, a Filosofia, a Cultura – num percurso existencial rico e interessante, enraizado no cenário do nosso país desde a década de 1920 até os nossos dias. Lembro que a originalidade da concepção deste livro do prof. Goffredo foi destacada por Antonio Candido, aqui no Salão Nobre, em cerimônia religiosa e acadêmica logo após o seu falecimento. Aponta ele a bem sucedida combinação da memória do pensamento e da memória de vida. A memória é a sede da alma, como dizia Sto. Agostinho e mais não precisa ser dito para realçar o impacto que causa a leitura de A Folha Dobrada, ao desvendar a alma de um ser humano da estatura do prof. Goffredo.
Em maio de 1985, na antevéspera da sua aposentadoria compulsória, em homenagem que lhe prestamos no Salão Nobre da nossa Casa, procurei explicar como ele conseguia amalgamar a serenidade do magistério ao ardor da palavra jovem, inspirado pela aura da nossa Faculdade. A serenidade e o rigor advém do seu trato com a Lógica, da qual foi professor no início da década de 1940 no então Colégio Universitário (o chamado curso prejurídico), base do seu livro de 1949, Tratado da Conseqüência: Curso de Lógica Formal. Daí os cuidados que sempre cercaram uma argumentação norteada pela operação do raciocínio como ato da razão. A isto se soma o fascínio pelo significado das palavras, entre elas, obviamente, a palavra Direito, que não é, como ele explica, unívoca ou equívoca mas analógica, pois tem sentidos diversos mas conexos. Com efeito, o Direito é um sistema de normas (o Direito objetivo), é uma permissão concedida por este sistema (o Direito subjetivo) e é uma qualidade de justo. É neste empenho pela qualidade de justo que reside o ardor da palavra jovem do prof. Goffredo, que nela descortina a matriz silenciosa, inspiradora do Direito. É por este motivo que ele não foi um professor de Introdução mas de Iniciação – na acepção forte da palavra – ao Direito. É o que aponta o título do seu livro de 2001, que condensa, como ele me escreveu, “meio século de apaixonado magistério”, que celebramos com a mais afetuosa admiração nesta mesa de Amigos, cientes de que ele – para invocar a imagem de que se valeu para homenagear, em 1964, seu amigo e antecessor na cátedra, o prof. Spencer Vampré – soube plantar rosas no nosso pátio de pedra.
Novembro de 2010