Celso Lafer **
O professor Goffredo Telles Jr. completa hoje 90 anos. A sua vida tem como impulso mobilizador a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na qual estudou e lecionou durante décadas. Foi na faculdade que aprendeu a amar o direito como a disciplina da convivência guiada pela liberdade e pela justiça. Da faculdade nunca se separou, porque no seu “ambiente mágico”, como diz nas suas memórias, encontrou a maneira de alimentar a sua vocação de grande professor. A fecunda interação entre o fascínio pelo direito e a qualidade do magistério, enraizada no ambiente da faculdade, é a chave do seu percurso e tem uma dimensão mais ampla que cabe explicitar nesta celebração do seu aniversário.
A faculdade, fundada em 1827, em razão do diversificado e significativo papel político, jurídico e cultural exercido pelos seus alunos e professores na vida do país, tem a característica de um local da memória, para recorrer à formulação do historiador francês Pierre Nora. Locais de memória nascem e vivem de um sentimento de relevância da comunhão dos fatos passados com os do presente e de sua importância para o futuro. Daí, no caso da faculdade de direito, a sua aura.
Ela se expressa, por exemplo, no século 19, na letra do “Hino Acadêmico”, cuja música é de Carlos Gomes. São temas fortes da letra, de autoria do poeta e aluno da faculdade Bittencourt Sampaio: a esperança na mocidade acadêmica, o seu papel na elevação do Brasil -“Esse imenso colosso gigante”-, que quer a luz da verdade e da liberdade.
Essa aura, em novos contextos, viu-se sustentada pelos alunos do século 20, que, na sua maioria, seguindo a tradição, sentem a faculdade como “lar e templo/ Tribuna, trincheira e berço/ Página viva da história”, nas palavras do poeta Paulo Bomfim em 1977, também ele aluno da faculdade e sensível ao seu sonho de liberdade.
Faço essas considerações porque o professor Goffredo é representativo da força do sentimento dessa aura como um local de memória da vida nacional. Ele a representa para gerações e gerações da faculdade de direito (inclusive a minha turma, de 1964, que o elegeu paraninfo), que por isso mesmo com ele se identifica na comunhão do impulso renovador das tradições acadêmicas.
Um momento luminoso na vida e no magistério do professor Goffredo, em que essa aura renovadora se encarnou na sua palavra, foi a “Carta aos Brasileiros” por ele redigida e lida em 1977, na faculdade, no pátio das Arcadas. A “Carta” teve como ponto de partida a herança do que se ensina numa faculdade de direito. Teve como ponto de chegada anunciar a erosão do regime autoritário militar instaurado em 1964 ao catalisar, no país, a consciência do imperativo do Estado de Direito.
A “Carta” foi um fermento transformador na melhor tradição do papel da faculdade na vida do país, mas ela não é um acidente no percurso do professor Goffredo. Ela é uma expressão da lição de um mestre sempre cercado pela afetuosa admiração dos seus alunos. Esta deriva do cumprimento do mandamento do professor, que é para ele o de servir aos estudantes por amor a eles. O professor Goffredo, com a integridade e a civilidade de um homem de bem, serviu aos seus incontáveis estudantes. As suas aulas tinham a limpidez e a beleza da elaborada destilação do seu pensamento. Dessa destilação ele nos dá conta nas suas memórias, “A Folha Dobrada”, nas quais se fundem harmoniosamente o vivido e o pensado -sobre o Brasil, o direito, a filosofia, a cultura-, num percurso existencial rico e interessante, enraizado no cenário do nosso país desde a década de 1920 até os nossos dias.
Em maio de 1985, na antevéspera da sua aposentadoria compulsória, em homenagem que lhe prestamos no salão nobre da nossa casa, procurei explicar como ele conseguia amalgamar a serenidade do magistério ao ardor da palavra jovem, inspirado pela aura da nossa faculdade. A serenidade e o rigor advêm do seu trato com a lógica, da qual foi professor no início da década de 1940 no então Colégio Universitário (o chamado curso prejurídico), base do seu livro de 1949, “Tratado da Conseqüência: Curso de Lógica Formal”. Daí os cuidados que sempre cercaram uma argumentação norteada pela operação do raciocínio como ato da razão. A isso se soma o fascínio pelo significado das palavras, entre elas, obviamente, a palavra direito, que não é, como ele explica, unívoca ou equívoca, mas analógica, pois tem sentidos diversos mas conexos.
Com efeito, o direito é um sistema de normas (o direito objetivo), é uma permissão concedida por esse sistema (o direito subjetivo) e é uma qualidade de justo. É nesse empenho pela qualidade de justo que reside o ardor da palavra jovem do professor Goffredo, que nela descortina a matriz silenciosa, inspiradora do direito. É por esse motivo que ele não foi um professor de introdução, mas de iniciação -na acepção forte da palavra- ao direito. É o que aponta o título do seu livro de 2001, que condensa, como ele me escreveu, “meio século de apaixonado magistério”, que celebramos com amizade e admiração neste seu aniversário.
____________
* Artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo de 16/05/2005, p. A3
**Celso Lafer, 63, é professor titular da Faculdade de Direito da USP. Foi ministro das Relações Exteriores (governos Collor e Fernando Henrique) e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (governo Fernando Henrique). É autor de, entre outras obras, “A Reconstrução dos Direitos – um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt”.