Mestre Goffredo: um farol para as gerações (do passado, do presente e do futuro) da Velha e sempre Nova Academia – Walter Piva Rodrigues

Walter Piva Rodrigues
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – Turma 1972; docente no Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo desde 1973

Abre a Associação dos Advogados de São Paulo um momento muito especial para que se possa homenagear o “Professor Símbolo” das Arcadas, o querido Mestre Goffredo Telles Junior.

O aluno mais antigo e o mais moderno da Velha Academia sempre terão cada qual o seu depoimento muito próprio sobre a inesquecível e produtiva vivência acadêmica e sobre a semeadora e edificante militância de Mestre Goffredo pelo predomínio da Lei, do Direito e da Justiça.

De minha parte, registro, inicialmente, a frase na qual assentei um dos meus compromissos de vida. De tempo em tempo, ressoa, compassadamente pronunciada, na limpidez originária e cadência singular, a perene lição de Mestre Goffredo, verbis “Quero deixar claro que sempre estarei ao lado daqueles que batalham pelo Estado de Direito. Eu gostaria de ver a volta de meu País à Democracia. Estou com os estudantes “. (1)

Quantas vezes mais Mestre Goffredo esteve com os estudantes?

Como ingressei na Faculdade no ano de 1968, recordo-me de que, ao se aproximarem os primeiros exames semestrais dos calouros, uma das provas que amedrontava os iniciantes era a do Professor Goffredo, cujas aulas, sempre muito concorridas, despertavam interesse ímpar.

Lembro-me da noite anterior à data da prova; o livro aberto quando, lá de fora, chegou rápida a notícia sobre a suspensão das atividades acadêmicas.

Instalara-se, então, o inesquecível episódio da “tomada da Faculdade” pelo alunado, mais um entre tantos atos de reação, cada vez mais freqüentes, contra a ditadura militar-empresarial implantada em 1964, a par de outras demandas mais localizadas, como a reestruturação universitária e até mesmo curricular da própria Faculdade de Direito.

Alterou-se, de pronto, o ambiente acadêmico. O XI passou a abrigar intensas reuniões, realizando-se ali seminários com freqüência majoritariamente de veteranos. Entre os calouros, poucos, se ainda me lembro, como o Damião e o Antonio Augusto.

Pelo acesso da Rua Riachuelo (comentou-se que havia durante a “tomada da Faculdade” uma passagem entre o XI e o Páteo das Arcadas), vi ingressarem para os seminários os Professores Cesarino Júnior, Goffredo, Rocha Barros, Dalmo, Comparato, Mesquita. Os ausentes, como eu próprio, recebiam postilas e anotações para discussões fora do XI. Eram muito interessantes os textos: lá estava debatido um amplo temário – da Escola ao País; do golpe e ditadura militar à retomada da liberdade e democracia!

A presença dos Mestres alinhados com a defesa intransigente dos direitos humanos, entre eles, o Professor Goffredo , dava a garantia de que os alunos estavam na reta direção.

A propósito, tenho a registrar que a minha ininterrupta e amadurecida convivência nas Arcadas, iniciada em 1968, revela-me que os estudantes sempre agiram como bons comandantes de batalhas dentro e fora do velho Páteo de Pedras, seja pela reconquista da liberdade, seja pela construção (tarefa ainda não completada) da cidadania no nosso País.

Em outras ocasiões, igualmente, Mestre Goffredo esteve com os estudantes .

Não se apagará da memória, incorporando-se à tradição das melhores lutas pelo Direito travadas no Território Livre de São Francisco, o episódio do “enterro da Constituição” , iniciativa do Centro XI de Agosto reagindo à decretação do recesso do Congresso sob pretexto de introduzir a reforma do Poder Judiciário (pacote de abril de 1977).

A figura imponente, ereta e ao mesmo tempo suave de Mestre Goffredo na Tribuna Livre fez o ato, realizado em 28 de abril de 1977, repercutir nacionalmente, tendo o Professor nos emocionado a todos, proclamando, verbis :

“A Constituição é obra do povo. Não toleramos que a Constituição seja agredida por atos de Governo de força. (…) Não nos enganarão, jamais, os ditadores. (…) Recusamos aceitar como verdade o que é mentira . Não toleramos a falsificação do sentido autêntico das palavras. Para nós, ditadura é ditadura , Democracia se chama Democracia (…) “. (2)

Mais um episódio é preciso relembrar, ainda. Em plena ditadura, Mestre Goffredo, uma vez mais, esteve com os estudantes .

Como esquecer o Coronel Erasmo Dias e seu truculento ato de invasão do Território Livre, não só mediante impressionante aparato militar, mas, ainda, o “lança-tinta (vermelha?)” para identificar os “subversivos” e poder prendê-los após levantamento do sítio. Lá estava Mestre Goffredo, ao que me lembro, na Sala da Comissão de Pós-Graduação (ao lado da Sala da Congregação), com outros professores, Dalmo, Comparato, e os que imaginavam dar aulas naquele final de tarde (o horário tradicional do Pós sempre foi às 17 horas).

Alertado pelo office-boy de meu escritório sobre a “operação de guerra” nas cercanias da Escola, pude deslocar-me rapidamente para ali ingressar pela Rua Riachuelo antes que os soldados da Cavalaria impedissem o acesso.

No térreo da Faculdade, Mestre Goffredo, ao lado do elevador dos professores, fez outra veemente proclamação condenando a invasão do Território Livre . Enquanto as portas principais das Arcadas se fechavam rapidamente para proteger os estudantes ali acolhidos, o Presidente do XI, Mário Renato, o Jaú, pôs-se do lado de fora, igualmente protestando. Brucutus, carros de combate, gás lacrimogêneo, o tal “jato de tinta”, a tentativa de tirar de dentro do saguão alguns alunos por ousados e inconformados militares, enfim, tudo muito mais facilmente suportado pelos estudantes diante do companheirismo de alguns professores. Mestre Goffredo esteve com os estudantes .

Há, também, outro episódio em que a presença de Mestre Goffredo assegurou não só aos estudantes, mas aos segmentos da sociedade civil, reunidos em torno do Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte pronto acesso ao Gabinete da Presidência da República sem prévia audiência!

Como se sabe, Mestre Goffredo protagonizou um dos pontos altos da retomada da Liberdade e da Democracia no nosso País ao redigir e ao ler a “Carta aos Brasileiros” (1977), no Páteo das Arcadas, entre os seus queridos amigos estudantes da sua Escola, presente multidão heterogênea com expressivas lideranças da sociedade civil.

Quero, todavia, relembrar a redação pelo Professor Goffredo da sua ” Carta aos Brasileiros, ao Presidente da República e ao Congresso Nacional” , em outro momento histórico do Brasil, quando se opôs em nome de centenas de entidades da mais alta representatividade (CNBB, OAB, ABI, ANDES, Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, Centro Acadêmico XI de Agosto, etc.) à ilegítima Emenda nº 26/85, proposta pelo Presidente da República.

Mestre Goffredo não só denunciava a ilegitimidade da Emenda do Presidente Sarney, mas, ainda, conclamava por uma Assembléia Constituinte, Livre, Autônoma e Soberana, desvinculada do Congresso Nacional .

Esse documento foi lido em sessão solene na sede paulista da Ordem dos Advogados do Brasil e, posteriormente, por deliberação do Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte (no qual o articulista representava a secção paulista da OAB na qualidade de Conselheiro designado pelo seu Presidente, o advogado José Eduardo Loureiro), foi decidido que deveria a Carta ser entregue aos seus destinatários institucionais.

Em Brasília , Mestre Goffredo, na companhia inseparável de Maria Eugênia, Francisco Witaker (idealizador e organizador do Plenário), Marco Antonio Barbosa, Samuel Figueiredo, Margarida Genevois, Silvia Witacker e tantos outros representantes de entidades de estudantes e da sociedade civil, fomos ao Congresso e lá, prontamente, recebidos pelo Presidente Ulisses Guimarães, em gesto de carinho especial ao seu Mestre Goffredo e reconhecimento da relevância do movimento em prol da Assembléia Constituinte Livre e Autônoma .

Seguiu-se a caminhada em direção ao Gabinete da Presidência da República , sabendo-se de antemão que a audiência do Presidente havia sido negada. Mesmo assim, duas dezenas de pessoas, Mestre Goffredo à frente , vencemos a pé o caminho e na recepção fez-se o competente anúncio da presença do grupo.

Gabinete Civil da Presidência da República foi avisado e, assim que se pronunciou o nome de Mestre Goffredo, partiu ordem para a subida ; dispensados até mesmo rigores de exibição de identidade e outros requisitos solenes de vestimenta.

Ali, o então Assessor do Gabinete, ex-aluno da Velha Academia, hoje no Supremo Tribunal Federal, o Ministro Celso de Mello, recebeu os membros do Plenário, ressaltando o respeito à presença de Mestre Goffredo, que, dessa forma, liderou em audiência muito especial a entrega do documento em mãos do Ministro Chefe da Casa Civil , após franco e firme discurso contra a Emenda do Presidente.

Mestre Goffredo esteve com os estudantes!

As gerações novas – do presente e do futuro – devem ser lembradas do exemplar comportamento do nosso “Professor Símbolo”, o Mestre Goffredo, para que o melhor da tradição das Arcadas justifique seu culto, transformando-se em fonte permanente do longo e penoso processo de construção da cidadania em nosso País.

Guardo reportagem de “O Estado de S. Paulo”, edição de 10 de dezembro de 1969 (p. 15 – quarta-feira), sobre as nossas Arcadas [“Mestres e alunos têm suas críticas”, “Arcadas atraem cada vez menos” ( sic )].

Respondendo até que ponto é benéfica a tradição, o Professor José Ignacio Botelho de Mesquita deixou seu pensamento registrado, verbis : “A Faculdade de Direito tem uma só tradição, que é o amor pelo Direito e pela Liberdade. Na medida em que essa tradição se torne desconhecida, desprezada, posta de lado, ainda que momentaneamente, a Faculdade perderá a sua razão de ser, pois dela nada mais permanecerá senão suas formas exteriores”.

Se as gerações de hoje e de amanhã assumirem o compromisso de impedir que desapareça a razão de ser da nossa Escola, então devem guardar na lembrança os fatos narrados, inspirando-se no exemplo de militância do “Professor Símbolo”, o Mestre Goffredo Telles Junior.

Aí, uma conseqüência natural certamente fará com que essas gerações (do presente e do futuro) continuem empunhando, no Território Livre das Arcadas, as bandeiras pela Liberdade, pelo Direito e pela Justiça.

Se assim for, apelamos para que continuem reservando à geração do passado um lugar no mastro dessas mesmas bandeiras.

Assim, Mestre Goffredo estará sempre com os estudantes da sua Academia!

(1) – Cf. Goffredo Telles Jr., A folha dobrada – Lembranças de um estudante , Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, p. 939.

(2) – Ob. cit., p. 926.