O desmantelamento do sistema brasileiro de controle de constitucionalidade – José Ignácio Botelho de Mesquita

José Ignacio Botelho de Mesquita
Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo; sócio honorário da Associação dos Advogados de São Paulo

Sumário

1. Do objeto deste estudo

2. 
O problema

3. 
O efeito vinculante das decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão

A coisa julgada e os efeitos da sentença no direito brasileiro

5. 
Do efeito vinculante no direito brasileiro

6. 
Encerramento

1. Do objeto deste estudo

O controle de constitucionalidade das leis e atos normativos por via principal , que se exerce entre nós pela Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN), padece de um pecado original. A despeito de sua vinculação teórica ao estado de direito, a então chamada representação por inconstitucionalidade nasceu no Brasil em pleno regime militar, como instrumento de controle do Legislativo pelo Executivo. Graças ao fato de se ter atribuído exclusivamente ao Procurador-Geral da República a legitimação para promovê-la, (1)   pode-se dizer que essa representação já nasceu de farda. E de fato, competindo ao Presidente da República a escolha e a nomeação do Procurador-Geral, (2)   competia-lhe também, com exclusividade, o poder de fato de representar ao Supremo Tribunal Federal para a declaração de inconstitucionalidade e, posteriormente, para a interpretação das leis e atos normativos federais e estaduais.

Não foi por outra razão que, em 1980, na VIII Conferência Nacional da OAB, visando ” ao aprimoramento da tutela da liberdade no processo “, apresentamos, entre outras propostas também aprovadas, a de “alteração do §1o do artigo 174 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, de modo a explicitar que o Procurador-Geral da República, quando provocado por autoridade ou terceiro para representar por inconstitucionalidade, entendendo improcedente a provocação, tem o dever , e não apenas o poder , de encaminhá-la com parecer contrário”. (3)  

A Constituição de 1988 cuidou de redimir daquele pecado o controle de constitucionalidade por via principal e o fez, como se sabe, mediante a abertura de um amplo leque de legitimados a demandá-la, ficando expressamente vedada a atribuição dessa legitimação a um único órgão. (4)   Graças a essa providência, a iniciativa da declaração de inconstitucionalidade em abstrato deixou de constituir instrumento de ação política do Executivo contra o Legislativo para, bem ao contrário, passar a constituir um instrumento oponível não só contra atos normativos do Poder Executivo, inclusive as medidas provisórias, como também contra atos legislativos que, a despeito de inconstitucionais, houvessem sido aprovados pelo Congresso Nacional mediante o beneplácito, ou por força de pressão, do Palácio do Planalto.

Sendo, todavia, ainda muito frágeis as nossas convicções democráticas, arqueadas sob a mole pesadíssima de uma herança de vinte anos de regime autoritário, não seria de estranhar que o Poder Executivo buscasse rapidamente recuperar o perdido domínio sobre o controle de constitucionalidade. E foi o que ocorreu.

O primeiro passo para neutralizar os efeitos da vitória conquistada pela Constituição de 1988 consistiu na introdução no nosso sistema constitucional de uma ação contrária à ADIN: a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADCON), atribuída a um seleto grupo de não mais que quatro escolhidíssimos legitimados: o Presidente da República, as Mesas do Senado e da Câmara dos Deputados e o Procurador-Geral da República.

Por meio dessa inovação, recuperou o Presidente da República o poder de opor-se à declaração incidental de inconstitucionalidade e de antecipar-se à declaração de inconstitucionalidade por via principal, (5)   com a prerrogativa – que logo mais lhe seria generosamente outorgada – de dispor de medida cautelar para suspender os julgamentos em curso, nos quais se estivesse questionando a constitucionalidade da lei ou ato normativo objeto da ADCON. (6)  

Esse estratagema não é novo e seus inconvenientes já haviam sido claramente denunciados por Jorge Miranda; dentre eles o de possibilitar “a fraude à Constituição, que seria qualquer órgão ou entidade com poder de iniciativa requerer a apreciação de certa norma para, uma vez obtida uma decisão de não inconstitucionalidade, impedir que noutro momento, em qualquer tribunal ou no próprio Tribunal Constitucional, com ou sem a mesma composição, essa norma viesse a ser argüida”. (7)  

Esse duríssimo golpe contra o nosso sistema de controle de constitucionalidade veio acompanhado da atribuição de efeito vinculante às decisões de mérito proferidas nas ações declaratórias de constitucionalidade, (8)   agora estendido também aos julgamentos pronunciados nas ações diretas de inconstitucionalidade. (9)  

O que seja esse efeito vinculante, a Constituição não define e veio a tornar-se objeto de um profundo mistério, acessível apenas aos iniciados no direito alemão de onde, diz-se, teria sido importado, mas sem correspondente no direito brasileiro. É este, aliás, um costume que se vem implantando entre os reformadores do nosso direito processual; criam-se novas disposições que, à luz do sistema jurídico em vigor, não fazem sentido algum e, a seguir, põe-se em atividade a mídia jurídica para explicar o que a lei não disse, mas teria querido dizer, e que todos nós, se não fôssemos tão ignorantes, já deveríamos ter entendido desde o primeiro momento.

O fato é que as explicações que estão sendo dadas não são satisfatórias e estão demandando melhor exame da matéria, para que dela nos possamos servir de modo útil e coerente; ou, quando for o caso, para dar-lhe o merecido combate. É a isto que se propõe o presente ensaio.

2. O problema

Dispõe o artigo 102, § 2o, da Constituição Federal, que as decisões de mérito do Supremo Tribunal Federal nas ADCONs produzirão “eficácia contra todos e efeito vinculante , relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo”. Trata-se de preceito que, à falta de alguma explicação, não faz o menor sentido. Com efeito, não se entende como possa um julgamento que produza efeitos “contra todos” não produzir efeito contra alguns, como sejam os demais órgãos do Poder Judiciário e do Executivo.

A explicação que se deu para isso foi a de que o efeito vinculante é um “instituto desenvolvido no direito alemão, que tem por objetivo outorgar maior eficácia às decisões proferidas por aquela Corte Constitucional (o Tribunal Federal Constitucional), assegurando força vinculante não apenas à parte dispositiva da decisão mas também aos chamados fundamentos ou motivos determinantes tragende Gründe )”. (10)  

Por diversas razões, é insatisfatória essa explicação. Primeiro , não é admissível que a interpretação de um instituto inserido na Constituição brasileira só se possa fazer recorrendo a uma lei de outro estado soberano. Segundo , a lei brasileira dispõe em sentido diametralmente oposto, afirmando que os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença, não fazem coisa julgada; (11)   e não há nenhuma razão jurídica que obrigue o juiz brasileiro a aplicar o direito alemão para a interpretação da Constituição Federal, com exclusão da lei nacional em sentido contrário. Terceiro , se julgada procedente a ADIN ou a ADCON, a extensão do efeito vinculante aos motivos da decisão nada acrescentaria à aludida ” força vinculante da parte dispositiva da decisão “; o efeito vinculante da motivação só teria utilidade no caso de ser negada a declaração pretendida pelo requerente, caso em que é na fundamentação que se situaria a conclusão oposta à demandada. Quarto , essa utilidade, no entanto, deixa de existir se se atribui às decisões proferidas, tanto numa como noutra daquelas ações, um ” caráter dúplice ou ambivalente “, conforme postula Gilmar Ferreira Mendes; (12)   nesse caso, a declaração oposta à pretendida pelo requerente, contrabandeada da motivação para o dispositivo do acórdão, adquiriria eficácia contra todos, nada lhe acrescentando a atribuição de efeito vinculante à motivação do julgado, onde ela já não mais estaria.

Como se vê, há fundadas razões a justificar um melhor exame da questão, a começar pelo direito alemão. (13)  

3. O efeito vinculante das decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão

O texto básico para o estudo da matéria é a Lei do Tribunal Constitucional Federal ( Bundesverfassungsgerichtsgesetz ), de 3 de fevereiro de 1971, com suas posteriores alterações, conhecida pela abreviatura: BVerGG.

Nessa lei se revestem de especial interesse as disposições sobre a Reclamação Constitucional ( Verfas-sungsbeschwerde (14)   e sobre a eficácia vinculante ( Verbindlichkeit ) das decisões do Tribunal Constitucional Federal, o Bundesverfassungsgericht BVerG ). (15)

A Reclamação Constitucional tem por finalidade provocar o controle de constitucionalidade pelo BVerG . Em certa medida, ela cumpre as funções que, no Brasil, são desempenhadas pelo Recurso Extraordinário e pela ADIN; pode ser proposta: ( ) contra ato ou omissão de Ministros ou de autoridades federais ou estaduais; ( ) contra uma decisão judicial; e ( ) direta ou indiretamente, contra a lei. (16)  

No primeiro caso , o Tribunal declarará qual o dispositivo constitucional ofendido e mediante qual ato ou omissão teria ele sido violado, podendo dispor, também, que cada repetição do ato impugnado também será tida como ofensiva à Constituição. No segundo caso , o Tribunal cassará a decisão e, se a Reclamação houver sido intentada antes de se esgotarem as vias judiciais, a matéria será devolvida ao órgão judicial competente. Finalmente, no terceiro caso , deverá a lei ser declarada nula (17)  

Em qualquer desses casos, além de fazer coisa julgada Rechtskraft ) como qualquer outra sentença, as decisões pronunciadas pelo Tribunal terão efeito vinculante Verbindungswirkung ), isto é, vincularão os órgãos constitucionais da Federação e dos Estados, assim como todos os tribunais e autoridades. (18)   Porém, nos casos em que o Tribunal declara nula uma lei, ou a declara compatível ou incompatível com a Constituição, a decisão terá força de lei ( Gesetzeskraft ); não a decisão toda, mas apenas o seu dispositivo, que deverá ser publicado no órgão oficial. (19)  

É importante notar que o direito alemão distingue esses três institutos – a coisa julgada, o efeito vinculante e a força de lei –, e só confere a força de lei às decisões proferidas em Reclamação Constitucional dirigida contra a lei.

Essa distinção atende à circunstância acima referida de que nem toda Reclamação Constitucional se dirige contra uma lei, em abstrato e por via principal , pois há casos em que a Reclamação se dirige contra um ato de autoridade, ou uma decisão judicial, operando-se o controle constitucional em concreto e por via incidental . Só na hipótese do controle em abstrato terá a decisão força de lei, o que a tornará oponível contra todos. Nos dois outros casos a decisão fará coisa julgada entre as partes, e produzirá efeito vinculante perante os órgãos constitucionais da Federação e dos Estados e perante as autoridades federais e estaduais.

Não é pacífica na doutrina alemã a relação entre coisa julgada, efeito vinculante e força de lei.

Através das observações de Dieter C. Umbach e Thomas Clemens, no seu comentário à BVerGG , parece possível compor um quadro aproximado das relações entre Rechtskraft Verbindungswirkung Gesetzeskraft .

Segundo eles, muitos autores entendem que, do ponto de vista do resultado, “a atribuição de força de lei às decisões do Tribunal Constitucional apenas dilataria, do ponto de vista subjetivo, a autoridade da coisa julgada material dessas decisões, de modo a fazerem coisa julgada pró e contra todos. Força de lei coisa julgada , no entanto – advertem –, são duas espécies distintas. Aquela compreende os efeitos imediatos da decisão e esta apenas os seus efeitos mediatos a se produzirem em processos subseqüentes. (Diferentemente da força de lei) a coisa julgada a favor e contra todos apenas exclui que, num processo subseqüente, a questão decidida – sobre a constitucionalidade da lei impugnada – seja decidida de novo ou em sentido contrário; mas ela não impõe que, no comércio jurídico ( Rechtsverkehr ), a lei questionada seja considerada válida ou nula.

Em razão disto, vêem outros autores, na força de lei , apenas uma extensão do efeito vinculante do ponto de vista subjetivo. Ambos – tanto a força de lei como o efeito vinculante –, diferentemente da autoridade da coisa julgada, produzem efeitos de direito material; enquanto por meio do efeito vinculante apenas as autoridades são vinculadas, a força de lei vincularia a todos, inclusive os entes privados. Esse entendimento, porém – ressalvam aqueles comentaristas –, sofre de uma imprecisão: o conceito de efeito vinculante está considerado apenas na perspectiva de subseqüentes processos administrativos ou judiciais e, daí, como ocorre com a coisa julgada, a decisão encontrada pelo Tribunal só produziria efeitos mediatos”. (20)  

A partir dessas reflexões, e do texto da lei, é possível estabelecer que a coisa julgada , como simples imutabilidade e indiscutibilidade da conclusão da sentença em face de processos futuros, não se confunde nem com a força de lei, nem com o efeito vinculante. Estes dois, a força de lei e o efeito vinculante , têm em comum o fato de provocarem efeitos imediatos no plano do direito material, o que a autoridade da coisa julgada não proporciona; e têm de diferente que, enquanto o efeito vinculante alcança os motivos determinantes da decisão, mas só obriga os órgãos constitucionais e autoridades federais e estaduais, a força de lei é restrita à declaração de nulidade ou ao julgamento de compatibilidade ou incompatibilidade das leis com a Constituição, vincula a todos, inclusive terceiros particulares, mas obriga apenas nos limites da conclusão do julgado. Finalmente, distinguem-se ainda o efeito vinculante e a força de lei , em que esta última é atribuída apenas aos atos de controle abstrato de inconstitucionalidade das leis. Os atos de controle concreto de inconstitucionalidade dos atos de autoridades e das decisões judiciais produzem apenas o efeito vinculante .

Corrobora essa orientação o entendimento manifestado por Gotthard Wöhrmann, no sentido de que:

“Por força do parágrafo 31 (1) da Lei da Corte Constitucional Federal, as decisões da Corte têm um impacto que vai além do caso individual em questão: os princípios concernentes à interpretação da Constituição, que resulta da decisão e os seus motivos ( reasons ), têm efeito vinculante para os órgãos constitucionais federais e estaduais assim como para todos os tribunais e autoridades. Decisões em que uma disposição de lei é declarada compatível ou incompatível com a Lei Fundamental, ou declarada írrita e nula ( null and void ), têm força de lei . Isto vale também para o caso em que a Corte julga uma disposição legal compatível com a Lei Fundamental apenas se interpretada de um modo específico (‘interpretação conforme a Constituição’)”. (21)  

Pode-se dizer que o efeito vinculante se caracteriza pelas seguintes particularidades: (a) é produzido pelas decisões de controle concreto de inconstitucionalidade de atos de autoridade e de decisões judiciais; (b) tem por objeto os motivos determinantes da decisão; (c) obriga somente os órgãos constitucionais da Federação e dos Estados e as autoridades federais e estaduais, não vincula terceiros particulares.

Cabe agora confrontar essas noções com as particularidades do ordenamento jurídico brasileiro, mas já é possível adiantar que, à luz do direito alemão, não se mostra correto o entendimento de que o efeito vinculante teria por objetivo estender à motivação o efeito vinculante da parte dispositiva da sentença. O efeito vinculante da parte dispositiva da sentença, ou seja, a “força de lei” ( Gesetzeskraft ), tem características completamente diferentes do “efeito vinculante” ( Bindungswirkung ), o que exclui a possibilidade de considerar-se um deles como extensão do outro.

4. A coisa julgada e os efeitos da sentença no direito brasileiro

O direito nacional também distingue da coisa julgada a força de lei. A coisa julgada , definida no artigo 467 do Código de Processo Civil, torna imutável e indiscutível a sentença; tem por objeto apenas a sua conclusão; e, em regra, vincula somente as partes perante as quais a sentença foi dada. (22)   Por sua vez, a força de lei, a que se refere o artigo 468 do mesmo Código torna obrigatórias as alterações que a sentença de procedência determina nas relações de direito material; tem por objeto apenas os efeitos pretendidos pelo autor (CPC, art. 459); e, quando pronunciada a sentença entre legítimos contraditores, faz com que esses efeitos, como os da lei, sejam oponíveis contra todos. (23)  

Portanto, quanto à coisa julgada ( Rechtskraft ) e a força de lei ( Gesetzeskraft ), não há maior diferença entre o direito brasileiro e o direito alemão, motivo pelo qual as Constituições anteriores à atual, ao cuidarem da representação por inconstitucionalidade de lei, nunca dispuseram, por absolutamente desnecessário e ostensivamente supérfluo, a respeito da produção de ” eficácia contra todos ” pela decisão que viesse a declarar a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo.

A novidade, portanto, ficou reduzida apenas ao indigitado efeito vinculante . Aliás, a atribuição de eficácia vinculante ( Verbindungswirkung ) às decisões que declaram a nulidade da lei e sua compatibilidade ou incompatibilidade com a Constituição constituiria novidade até mesmo para o direito alemão. Lá, como vimos, quando se trata de controle de constitucionalidade em abstrato , a utilidade do efeito vinculante fica superada pela força de lei ( Gesetzeskraft ), de muito maior alcance.

Cabe então indagar em que poderia o efeito vinculante alemão fazer algum sentido no direito brasileiro.

5. Do efeito vinculante no direito brasileiro

A primeira observação a fazer, repetindo o que já se disse antes, é que não há nenhum interesse prático na atribuição de efeito vinculante às decisões de mérito que julguem procedentes as ações de inconstitucionalidade ou de constitucionalidade. Sua eficácia erga omnes já torna vinculante a declaração da Corte não só para o requerente e quaisquer autoridades, tribunais ou órgãos constitucionais da União e dos Estados, como para quaisquer terceiros, os particulares inclusive.

Julgada procedente uma ação direta de inconstitucionalidade, a norma tida como inconstitucional é posta fora do ordenamento de direito positivo, e não haverá nenhum órgão constitucional, autoridade ou tribunal que disponha de competência para fazer com que essa mesma norma retorne ao ordenamento jurídico. Diante dessa eficácia, perdem qualquer interesse os motivos da decisão; eles não ampliam nem diminuem os efeitos do julgado.

Cabe examinar, portanto, a hipótese contrária, ou seja, a de ser julgada improcedente uma ADIN ou uma ADCON.

Conforme já tivemos oportunidade de assinalar, instilou-se no direito brasileiro a tendência de considerar essas ações como se tivessem caráter dúplice. Assim, o julgamento de improcedência da ADIN declararia a constitucionalidade e o de improcedência da ADCON declararia a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo.

É uma tendência mórbida, segundo já assinalado por Jorge Miranda, que representa, no caso brasileiro, uma espécie de pá de cal sobre o direito de entidades independentes, como o Conselho Federal da OAB, ou as Confederações Sindicais, de provocar o controle de constitucionalidade por via principal.

O risco de, ao demandar a declaração de inconstitucionalidade de uma lei, provocar a declaração de sua constitucionalidade com eficácia erga omnes , constitui um fator do mais alto grau de desestímulo à iniciativa de propor uma ADIN. A imposição do risco de, indo buscar lã, sair-se tosquiado, é mais do que suficiente para que as entidades que representam a Sociedade Civil se abstenham de provocar o controle abstrato de constitucionalidade, tornando preferível atulhar a Justiça com demandas individuais, em que se postule o controle de constitucionalidade em concreto, mediante o reconhecimento da inconstitucionalidade por via incidental .

Paradoxalmente, qualquer dos legitimados para a ADIN, que não o fosse para a ADCON, poderia, não obstante, propor a ADIN para provocar a produção do resultado prático da ADCON, sem dispor de legitimação para tanto.

Note-se, contudo, o seguinte: na medida em que prosperasse essa interpretação constitucionalmente aviltante, e ao que parece outra não teria sido a inspiração da Lei nº 9.868/99, não haveria jamais o caso de julgamento de mérito da ação de controle de constitucionalidade, cuja conclusão não acabasse tendo força de lei. De fato, julgada improcedente a ADIN, dar-se-ia a procedência da ADCON, que estaria nela embutida. A decisão de mérito sempre adquiriria força de lei, tornando totalmente desnecessário contrabandear, de lá para cá, o Bindungswirkung do direito alemão.

Para extrair alguma utilidade do efeito vinculante, temos que ser otimistas e dar como certo que a Lei nº 9.868/99 será interpretada pelo Supremo Tribunal Federal em conformidade com a Constituição ( Verfassungskonforme Auslegung ), no sentido de que a ADIN e a ADCON não são ações dúplices e que, portanto, o julgamento de improcedência de qualquer delas não dará lugar a uma declaração em sentido contrário com força de lei.

Nesse caso, o julgamento de improcedência da ADIN terá como fundamento a conclusão de que a lei em causa é compatível com a Constituição. E, no julgamento de improcedência da ADCON, o seu fundamento será a conclusão de que a lei questionada não é compatível com a Constituição.

Por se limitarem essas conclusões à motivação das respectivas sentenças, a conseqüência será que tais conclusões não adquirirão a autoridade da coisa julgada, nem terão força de lei; motivo pelo qual passaria a haver interesse em que pudessem essas conclusões vir a produzir “efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo”, deixando livres para nova tentativa os demais legitimados à propositura da ação e livre também, para novo julgamento, o Supremo Tribunal Federal. Um sistema perfeitamente coerente com os princípios processuais e constitucionais, e de inegável interesse prático. (24)  

Não é essa porém a única hipótese em que pode fazer sentido o efeito vinculante . Ele interessa também ao caso em que a Corte considera a norma compatível com a Constituição, mas desde que interpretada num certo sentido. É o caso da chamada interpretação conforme a Constituição Verfassungskonforme Auslegung ). (25)  

Introduzida na Constituição de 1969 pelo já mencionado “pacote de abril”, não foi “recepcionada” pela Constituição de 1988, mas, mesmo assim, vem sendo praticada pelo Supremo Tribunal Federal.

É caso em que, demandada a inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo, a Corte julga que a norma não é inconstitucional desde que interpretada de determinado modo. A chamada interpretação conforme fica confinada à motivação do acórdão que, no dispositivo, concluirá simplesmente que a norma não é inconstitucional e pronunciará a improcedência da ADIN.

Nesse caso também se revela útil a atribuição de efeito vinculante à motivação do acórdão, porque, de outro modo, não haverá como acomodar ao direito brasileiro a eficácia da Verfassungskonforme Auslegung do direito alemão, cujo alcance prático é de inegável amplitude.

Por fim, cabe ponderar que o aproveitamento do efeito vinculante da forma como estamos propondo se ajusta perfeitamente à utilidade que dele se extrai no direito alemão.

Visto que as decisões proferidas em controle abstrato de constitucionalidade já dispõem de força de lei, o que faz desnecessário que se lhe acrescente o efeito vinculante, torna-se claro que esse efeito só interessa aos casos em que se dá o controle de constitucionalidade em concreto.

O controle em concreto se dá, na Alemanha, nos casos em que a Reclamação Constitucional é dirigida contra atos de autoridade ou decisões judiciais e, nesses casos, o reconhecimento da inconstitucionalidade da lei (em que o ato ou a decisão se baseou) ou a conclusão de que o ato de autoridade ou a decisão judicial, em si mesmos, contrariam a constituição, verificar-se-ão por via incidental e na motivação da sentença que, com fundamento no vício de inconstitucionalidade, irá acolher o pedido de declaração da nulidade do ato de autoridade ou de cassação da decisão judicial.

A interpretação que estamos propondo para a atribuição de efeito vinculante às decisões que julgam a ADIN e a ADCON mantém-se fiel a essas características, pois também restringe o efeito vinculante a hipóteses em que o reconhecimento da constitucionalidade ou da inconstitucionalidade, embora se trate de controle em abstrato, dar-se-á por via incidental e estará limitado à motivação do acórdão.

6. Encerramento

Iniciamos este ensaio relembrando o nascimento ingrato, no Brasil, do controle de constitucionalidade por via principal. Podemos finalizar dizendo que o mesmo está ocorrendo com outro instituto, recém-nascido, que também integra o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade.

Dispõe a Constituição Federal em seu artigo 102, § 1o, que a argüição “de descumprimento de preceito fundamental decorrente desta Constituição será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei”.

Essa disposição soava aos ouvidos de muitos, imbuídos de imperturbável crença democrática e inabalável fé nas liberdades constitucionais, como alvissareiro prenúncio da introdução em nosso direito constitucional da Verfassungsbeschwerde (Reclamação Constitucional) do direito alemão; instituto previsto no artigo 93 da Constituição alemã e disciplinado pela Lei do Tribunal Constitucional Federal ( BVerGG ), cujo § 90 assim dispõe:

“É lícito a qualquer pessoa, alegando ter sido ofendida pelo Poder Público em um de seus direitos fundamentais, ou em um de seus direitos incluídos no artigo 20, § 4, nos artigos 33, 38, 101, 103 e 104 da Constituição, propor a Reclamação Constitucional perante o Tribunal Constitucional Federal”. (26)  

Fomos, porém, brutalmente sacudidos desse engano d’alma ledo e cego, que a fortuna não deixa demorar muito, pelo advento da Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999, que atribuiu a legitimação para essa argüição, não a qualquer um do povo ofendido em seus direitos fundamentais, mas apenas “aos legitimados para ação direta de inconstitucionalidade”, que outros não são, em boa parte, senão os mesmos que poderiam ser responsabilizados pela argüida ofensa aos direitos fundamentais. Ou seja, a previsão constitucional foi utilizada no sentido exatamente contrário ao prometido pelo preceito constitucional. Um verdadeiro escárnio!

E, para completá-lo, finis coronat opus , recorreu o legislador à técnica do artigo 174 do RISTF, mencionado no início desse trabalho, de corte autoritário, dispondo no artigo 2o, § 1º, que, na hipótese do inciso II (vetado pelo Presidente da República), “faculta-se ao interessado, mediante representação, solicitar a propositura da argüição de descumprimento de preceito fundamental ao Procurador-Geral da República que, examinando os fundamentos jurídicos do pedido, decidirá ( ) do cabimento de seu ingresso em juízo”.

É assim que o autoritarismo ascendente vem ganhando terreno no Direito Processual, à custa da subtração sistemática dos meios e recursos constitucionalmente assegurados para garantir o respeito aos direitos e às liberdades fundamentais.

Denunciar o autoritarismo totalitário, onde quer que ele se apresente, quaisquer que sejam as vestes sob as quais se oculte, é o primeiro passo para assegurar a sobrevivência da Constituição e homenagear ideais professados pelo insuperável mestre e queridíssimo colega, o eminente Professor Goffredo da Silva Telles Junior.

(1) – Cf. o artigo 114, I, letra l, da Constituição Federal de 1967, posteriormente alterado pela Emenda Constitucional nº 7, de 13 de abril de 1977 – o famigerado “pacote de abril” –, para acrescentar à representação por inconstitucionalidade também a representação para a “interpretação de lei ou ato normativo”, a chamada interpretação em abstrato.

(2) – Constituição Federal de 1967, artigo 138, alterado para pior pela Constituição Federal de 1969, artigo 95.

(3) – Botelho de Mesquita, Tese nº 15, “O princípio da liberdade na prestação jurisdicional”, in Anais da VIII Conferência Nacional da OAB, Manaus, 18 a 28/5/1980, ed. OAB, p. 392, nº 5. Dispunha então o artigo 174, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal: “Provocado por autoridade ou por terceiro para exercitar a iniciativa prevista neste artigo, o Procurador-Geral, entendendo improcedente a fundamentação da súplica, poderá encaminhá-la com parecer contrário”.

(4) – Constituição Federal, artigo 125, § 2º.

(5) – Constituição Federal, artigo 103, § 4º, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 17/3/1993.

(6) – Lei nº 9.868, de 10/11/1999, artigo 21.

(7) – Manual de Direito Constitucional , 1988, p. 384, t. II. A ADCON, a rigor, nem deveria ter sido incluída na competência do Supremo Tribunal Federal. O Supremo Tribunal Federal é órgão a quem compete, precipuamente, “a guarda da Constituição “, enquanto que a ADCON tem por objeto a guarda da lei ordinária questionada em face da Constituição. A finalidade da ADCON é impedir que prosperem decisões que, no conflito entre a Constituição e a lei ordinária, tenham dado primazia àquela sobre esta. Portanto, a ADCON é instrumento para fazer com que a lei ordinária prevaleça sobre a Constituição, o que não se coaduna de modo nenhum com as funções próprias de um guardião da Constituição.

(8) – Constituição Federal, artigo 102, § 2º.

(9) – Cf. Lei nº 9.868, de 10/11/1999, artigo 28, parágrafo único.

(10) – Gilmar Ferreira Mendes, “O efeito vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal nos processos de controle abstrato de normas” , in Revista Jurídica Virtual do Palácio do Planalto , edição de agosto de 1999, e em www.jusnavigandi.com.br/doutrina, 24/7/2000, p. 1.

(11) – Código Processo Civil, artigo 469, I.

(12) – Op. cit ., item 4, p. 10.

(13) – Ao leitor que não domine o idioma alemão, informo que já se dispõe na Internet da tradução de textos alemães, tanto de legislação como de doutrina, para o inglês e, em alguns casos, também para o francês e o espanhol. Procurar em: www.iuscomp.org/gla; www.triacom.com/archive/courtterms.de.html; www.jura.uni-sb.de/; e www.jura.uni-muenster.de/

(14) – BVerGG , §§ 90 a 96.

(15) – Idem, § 31.

(16) – Idem, § 94, nºs 2, 3 e 4.

(17) – Idem, § 95, nºs 1, 2 e 3.

(18) – Idem, § 31, nº 1.

(19) – Idem, § 31, nº 2.

(20) – Bundesverfassungsgerichtgestz – Mitarbeiterkommentar und Handbuch , CF Müller J. Verlag, 1992, pp. 559/560 (n/trad. livre).

(21) – ” The Federal Constitutional Court: an introduction “. Esse artigo foi primeiramente publicado por Inter Naciones como parte de: A Lei da Corte Constitucional Federal e reproduzido em www.iuscomp.org/gla. (n/tradução para o português).

(22) – Código Processo de Civil, artigos 467, 469 e 472, respectivamente.

(23) – Código Processo de Civil, artigo 468. É curial, de resto, que os efeitos da sentença vinculem a todos; um ato jurídico, por exemplo, não pode ser nulo para alguns e válido para outros – só será nulo se o for para todos. Cf. Botelho de Mesquita, ” A coisa julgada no Código do Consumidor”, in RF 320/79, e “A autoridade civil da coisa julgada penal”, in Estudos de Dir. Proc. em memória de Luiz Machado Guimarães , Forense, Rio de Janeiro, 1997, p. 233.

(24) – Nesse caso, o efeito vinculante se reveste de uma outra utilidade de não menor tomo. É que na ADCON julgada improcedente o reconhecimento da inconstitucionalidade da norma se dá por via incidental , caso em que competiria ao Presidente do Supremo Tribunal Federal comunicar a decisão ao Senado Federal para que este, mediante resolução, suspendesse a execução da lei (CF, art. 52, X, RISTF, art. 178). Como o Senado normalmente se recusa a isso, a atribuição de efeito vinculante à motivação da decisão dada na ADCON supriria em certa medida a omissão do Senado Federal.

(25) – Um excelente estudo sobre o princípio da interpretação conforme a Constituição , com ampla análise de direito comparado, encontra-se no acórdão do Supremo Tribunal Federal-Pleno proferido na Representação de Inconstitucionalidade nº 1.417-7-DF, de que foi relator o Ministro Moreira Alves, in RT 631/211.

(26) – No original: ” 1. Jedermann kann mit der Behauptung, durch die öfentlich Gewalt in eine seiner Grundrechte oder in einer seiner in Artikel 20 Abs. 4, Artikel 33, 38, 101, 103 und 104 des Grundgesetzes enthaltenen Rechte verletzt zu sein, die Verfassungsbeschwerde zum Bundesverfassungsgericht erhebem “.