Ordem e desordem – Tercio Sampaio Ferraz Junior

Tercio Sampaio Ferraz Junior
Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

O conceito de ordem é uma das reflexões que mais impressionam na obra de Goffredo da Silva Telles. Não há quem se esqueça, em suas aulas, de sua construção fechada e conseqüente, que principia pela multiplicidade dos seres para mostrar que ser e ordem se equivalem. Se algo é, constitui-se numa ordem. Não há ser que não manifeste alguma multiplicidade e nessa multiplicidade alguma disposição. Por mais singelo que seja um quid qualquer, está sempre em relação. Nada é que não seja para um outro. Por isso, seres só se percebem como disposições que unificam uma multiplicidade. Ordem é sempre unidade do múltiplo. Nada é isoladamente, mas sempre conjunto . Num certo sentido, a categoria da relação comanda os seres e o ser.

Com base na tradição escolástica, Goffredo assinala que a matéria da ordem é constituída de seres múltiplos (causa material). E cada um dos seres é, por sua vez, multiplicidade e unidade num conjunto. Aqueles termos se implicam: em cada multiplicidade há uma unidade e em cada unidade, uma multiplicidade.

E a desordem?

Ordem não é constituída apenas de sua causa material. Pois não se trata de uma disposição qualquer, mas de uma disposição que tem uma razão de ser. A razão de ser é sua causa final. A ordem é uma disposição conveniente. E aqui entra o fator cognitivo: a determinação da ordem pressupõe um fim que é conhecido. Em razão desse conhecimento é que ocorre uma certa disposição. O conhecimento é responsável pela conveniência. Daí a noção, que Goffredo vai buscar em Bergson, de que a desordem é também uma ordem, mas uma ordem que não nos convém. Por isso, um depósito de lixo é uma ordem, mas o lixo espalhado nas ruas é uma desordem, ainda que seja, este também, uma ordem ditada pelo ato de atirar objetos no solo.

Picasso, interrogado certa vez sobre as formas abstratas de alguns de seus quadros, que não espelhavam qualquer ordem visível, respondeu com outra pergunta: vejam um copo de vidro; agora aproximem o copo dos olhos, quase a tocá-lo com a vista, o que vocês vêem?

A ordem, nesse sentido, não é um conceito relativo, mas referencial. Relativo é o conceito de desordem. Daí a importância da noção de sistema de referência, que não relativiza a ordem, mas lhe confere sentido. Isto porque o sistema de referência é um conjunto de fatores que condiciona o conhecimento, e não o contrário. Ou seja, não é a diversidade dos sujeitos cognoscentes que provoca a diversidade dos sistemas de referência, mas é a diversidade desses que faz do conhecimento uma diversidade. Talvez se pudesse dizer que o homem não é a medida de todas as coisas (Protágoras), mas a “medida das coisas” – o sistema de referência – é que torna o conhecimento verdadeiro ou falso.

Não que o sistema não possa, ele próprio, ser um conhecimento. Como diria Luhmann, o ato de conhecer está submetido à categoria da reflexividade: é possível conhecer o próprio conhecer, donde, é possível conhecer o sistema de referência, a partir de outro sistema de referência. Assim, segundo Goffredo, se há uma certa relação (dialética) entre conhecimento e sistema de referência, o regresso a um dado primário não aponta para um eu transcendental, mas para um sistema de referência. Pois a premissa de seu pensamento é a noção de que ser é ordem, ordem é conjunto, múltiplos em unidade referencial. Ou seja, a hipótese de um eu transcendental requer, sempre, um sistema de referência.

Nesses termos, Goffredo não se filia a um idealismo transcendental. Se na base de qualquer conhecimento está um sistema de referência e este é sempre conjunto de dados para o sujeito cognoscente, é na realidade que se baseia o conhecimento, sendo realidade o que é apto a originar sensações e imagens. O conhecimento de nada é nada. O que permitiria dizer, à moda platônica, que o não-ser não é o contraditório do ser, mas apenas o outro.

Goffredo apela para o “trem de Einstein” para explicar-se. A abertura de duas portas de vagões do trem que passa, para o espectador externo, não é simultânea, mas o será para os viajantes do trem. Tudo depende do sistema de referência, mas os sistemas de referência não dependem do sujeito, porém o antecedem: sem sistema de referência o conhecimento é desconhecimento.

Diz Goffredo que a unidade da substância universal, princípio antiqüíssimo, hoje se patenteia nos laboratórios da física moderna. Daí o seu interesse pela teoria quântica. Mas isso não faz dele nem um naturalista muito menos um positivista. Ao dizer, assim, que o mundo ético não é um mundo de natureza especial, mas um estágio da natureza única, Goffredo movimenta-se no terreno metafísico. Sua preocupação não está em reduzir o mundo ético ao mundo físico, mas em inseri-lo na natureza única.

Nesses termos, sua peculiar noção de liberdade. Não há, diz ele, que se reduzir a liberdade a um ato de escolha, no sentido em que se emprega, habitualmente, o termo liberdade . Pois o ato de escolha é dependente num conjunto: depende do patrimônio genético, das informações recebidas, podendo-se falar de um ato sempre determinado por motivos. Mas a força de atração ou de repulsa, contida nessas informações, varia de sujeito para sujeito. Daí a imponderabilidade de uma previsão. Mas por isso não há uma diferença fundamental entre o comportamento de uma micropartícula e o comportamento de um ser livre. A diferença reside nas suas causas (sistema de referência) e não neles mesmos, desligados de qualquer conjunto.

Enquanto para as micropartículas o comportamento depende da altíssima velocidade, para os seres livres, da imensa complexidade de sua constituição. Micropartículas são essencialmente onda , embora sejam também corpúsculos. Já uma pedra é, essencialmente, corpo , embora construída de micropartículas. Assim, pode-se dizer, o homem é corpo e onda. Corpo, porque possui massa. Onda, porque contorna obstáculos (difração). No homem, essa propriedade de difração constitui a sua inteligência. Devido à sua imensa complexidade, o homem adquire propriedades que não são da matéria, como a capacidade de escolher, de autonomia. Donde a liberdade tem a ver com o grau de probabilidade do comportamento.

De certo modo, altíssima velocidade e imensa complexidade são conceitos inseridos em sistemas de referência. Se o cálculo de probabilidade das altíssimas velocidades é possível, nos seres livres, a imensa complexidade, que faz com que estes adquiram propriedades que não são da matéria (escolha, autonomia), levanta a questão da relação entre matéria e inteligência, cuja união, porém, é ainda um mistério tão profundo quanto a união de corpo e onda nas micropartículas. Assim, os graus de probabilidade e de seu cálculo, embora diferentes num e noutro, fazem do mundo, sem diferença, um único e grande mistério. De um lado, o mistério da origem cósmica, de outro, o mistério da liberdade.

Para mostrar, de um outro ângulo, o locus desse último, talvez valha a pena recorrer a uma explicação lógica, quando atentamos para a estrutura do conceito de liberdade (cf. Freytag-Löringhoff, Die logische Struktur des Begriffs Freiheit in Freiheit , org. Josef Simon, Freiburg/München, 1977, p. 37 e segs.).

Do ponto de vista lógico, o predicado liberdade , em termos de cálculo lógico, é um predicado de três variáveis e não de uma só – não (Lx = x é livre), mas sim (Lx, y, z = x é livre de y, em vista de z).

Para esclarecer as três posições, pode-se usar, da linguagem corrente, a noção de vinculação e de valoração hierárquica. Assim, ser livre é sempre ser livre de algo ou alguém, mas a mera desvinculação não esgota o conceito, pois temos aí um mero negativo. Daí a idéia de ser livre de algo, para uma outra coisa que, na verdade, é uma outra vinculação. Entre a primeira, da qual se é livre, e a segunda, à qual se adere, há uma relação de avaliação hierárquica: a primeira vinculação é negativa, a segunda é positiva.

Em outras palavras, liberdade de aponta para uma exceção que se abre a uma vinculação genérica, apreciada negativamente e que a precede. Por exemplo: livre de preocupações pressupõe a vinculação genérica, negativa: a vida preocupa . Esta vinculação menos valiosa, na qual se abre a exceção, aponta para outra vinculação – liberdade para –, mais valiosa (a tranqüilidade). Nesse contexto, a asserção molecular (Lx = x é livre) gera uma ilusão de substância definível (que é liberdade?) e que, efetivamente, é insuscetível de verificação. Ou seja, embora na aparência as asserções a mesa é quadrada a liberdade é valiosa sejam equivalentes, só a primeira, mas não a segunda, pode ser submetida ao controle da verdade. A segunda é, efetivamente, parte de uma asserção: x é livre ser livre é valioso . Enquanto uma variável, livre, é sempre um predicado, nunca um sujeito. Isto é, ser livre compõe um sentido, mas não expressa, por si, um sentido pleno. Trata-se de um problema comum a tantos substantivos abstratos, formados pelo sufixo “ade”. Esta percepção de “liberdade” como uma variável de três valores pode elucidar, de um ponto de vista lógico, porque, na investigação da liberdade, sempre topamos com um quid irredutível a uma substância e, nesse sentido, a um mistério.

Por força do mistério, não há, na metafísica de Goffredo, positivismo nem naturalismo, pois ela se curva, humildemente, diante do “insondado”. “Insondado”, mas não insondável, pois conhecimento é abertura para o mistério e a realidade é mistério que se abre. O mistério existe, diz Goffredo. A verdade também existe. E ambos se opõem. Verdade e mistério são contraditórios, porque a verdade é conhecimento e o mistério é falta de conhecimento.

O mistério, desse modo, parece uma peça importante no que poderia chamar-se de humanismo de Goffredo. O mistério da origem cósmica, alimento de que se nutrem as religiões, é o mistério da divindade, como o mistério da liberdade nutre a antropologia filosófica. No mistério, cosmos e ser humano se encontram. Diante do mistério, o homem se curva diante do homem, como se curva diante da divindade. A apropriação da natureza desafia o mistério ecológico, como a apropriação do homem pelo homem desrespeita o mistério da liberdade. Ser humano e ser cósmico confluem no mistério. Sondá-los e decifrá-los não significa prostrá-los diante da técnica, mas encontrar no mistério um limite. Ora, se direito tem a ver com liberdade, talvez se entenda, afinal, por que Goffredo, tantas vezes, ao término de seus cursos, nunca se cansou de repetir que o direito tem suas raízes enterradas no coração humano.