Mario Lorenzi
Ex-colaborador convidado da Associação Internacional de Juristas Democratas e ex-membro honorário da Associação Brasileira de Juristas Democratas, Jornalistas e Escritores
Samuel Mac Dowell de FigueiredoAdvogado
Os autores deste artigo, um escritor e jornalista e um advogado, encontraram o Professor Goffredo em 1982, ano em que, após uma reunião de advogados realizada na cidade de Serra Negra, foi constituída a Associação Brasileira de Juristas Democratas. Tratava-se, na verdade, do restabelecimento da representação, em nosso país, da Associação Internacional de Juristas Democratas, entidade não-governamental que assessorava o Conselho Econômico e Social da Unesco e desempenhou um importante papel na defesa das liberdades civis e da igualdade econômica e social entre os povos, no pós-guerra e por todo o período da Guerra Fria. Entre as questões mais candentes, incluídas na pauta da entidade brasileira então constituída, encontrava-se o agravamento do endividamento externo dos países do Terceiro Mundo.
Não foi uma escolha fortuita dos fundadores da entidade – Dalmo de Abreu Dallari, Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr., José Carlos Dias, Técio Lins e Silva, Sepúlveda Pertence, Edgard Amorim, Almir Pazzianoto, Nelson Wedekind, os autores deste artigo e outros – a entrega da presidência da entidade ao Prof. Goffredo e, com ela, a condução da Conferência sobre a Dívida Externa dos Países do Terceiro Mundo. Essa conferência internacional veio a realizar-se, com um êxito inegável e uma influência imponderável sobre a negociação da dívida entre os países credores e devedores, no ano de 1986, em São Paulo, em um esforço conjunto da ABJD e do Cebrap, então presidido pelo Prof. José Arthur Giannotti. Das suas discussões interdisciplinares participaram mais de cem juristas e economistas, vindos da África, da Europa, da América do Norte e da América do Sul. Essa escolha não foi fortuita porque o Prof. Goffredo representa, perante todos nós, a expressão da luta infatigável pelo prevalecimento dos princípios em que acredita.
Sobre a importância de sua obra e de sua atuação como homem público muito se falou e continuará se falando em nosso país. Mas o que nos move, neste artigo, é a percepção do sentido de permanência com o qual o Prof. Goffredo dedica a totalidade de sua preocupação e de sua energia às questões que verdadeiramente importam a uma desejada e, possivelmente não-utópica, realidade econômica e social mais justa e mais equilibrada entre todos os povos. É a constância desse empenho, mais do que o brilho notável do jurista, que nos comove – e também nos constrange. Porque, lamentavelmente, entendemos que a ele não estamos oferecendo uma retribuição capaz de fazê-lo sentir-se acompanhado na determinação à qual entregou a sua vida. Dalmo de Abreu Dallari, Fábio Konder Comparato e poucos, muito poucos outros, são pessoas, ao lado do Prof. Goffredo, nas quais reconhecemos, hoje, os lutadores que pensávamos ser nos anos em que tínhamos o objetivo comum de vencer as ditaduras que amesquinhavam o Brasil e os demais países latino-americanos. Mas, com o abandono daquele sentido de permanência e com a nossa acomodação à nossa fadiga e às nossas questões individuais, por certo também deixamos de lado a essência das questões onde residem as causas dos desequilíbrios da nossa sociedade. Efetivamente, quantos de nós têm manifestado mais do que o seu desconforto pessoal ante a onda de violência que amedronta o país? Quantos de nós estão empenhados em obter apenas proteções individuais, solução que é legítima, mas insuficiente para debelar essa violência, e quantos mantêm a percepção de que ela subsistirá enquanto persistir a ausência de perspectiva econômica para a maior parte da população? Quantos estão preocupados em distinguir entre a criminalidade que tem origem na patologia e a que resulta de causas eminentemente sociais e de administração pública? Quantas, entre as instituições que nos representam, alimentam preocupações mais do que corporativas? No plano internacional, quantos de nós manifestam o repúdio à violência militar, ao intervencionismo e ao crescimento da pobreza em níveis sem precedentes e decorrentes de uma ordem econômica que já é reconhecida, em praticamente todos os foros, como lesiva e determinante de sérias exclusões? Poucos, muito poucos. Parecemos acostumar-nos, em nossa maior parte, à corrosão da razão, à destruição feita em nome da liberdade e à utilização da genialidade humana como instrumento de dominação e de abate de inimigos. Parecemos aceitar, no próprio terreno do conhecimento jurídico, que a lei e os tribunais internacionais sirvam ao interesse de potências e alianças hegemônicas, como se admitíssemos como ordem jurídica uma ordem unilateral e parcial.
No livro A folha dobrada , o Prof. Goffredo escreveu que: “O Direito, como o amor, tem a sua fonte original no coração dos homens”, conceito que ele buscou impregnar na consciência dos jovens estudantes e advogados, aos quais costuma dizer que, em lugar de se queixar, há que pensar e fazer. A esperança com que o Prof. Goffredo sempre vislumbrou o destino do homem o impede, talvez, de admitir que no coração do homem também nasce o seu individualismo e repousa a nostalgia por sua natureza selvagem, à qual deseja sempre retornar – através da exploração e da subjugação e por meio da guerra, tal como hoje a ordem política e econômica em vigor impõe ao mundo.
Não é essa ordem, por certo, que o Prof. Goffredo vislumbra. Temos a convicção de que ele repele a utilização do direito como instrumento do poder e nele baseia a aspiração pelo progresso do mundo em um padrão de equilíbrio, dignidade e decência.
Quando tivemos a idéia de escrever este artigo em conjunto, fomos estimulados pelo prazer que nos era trazido pela lembrança dos encontros que tivemos com o Professor, ao longo dos anos. Isto nos trazia orgulho e, ao mesmo tempo, apreensão. Como perceber o verdadeiro sentido de uma homenagem? Como extrair, do formidável conjunto de acontecimentos de uma vida verdadeiramente romântica, o que nos parecesse ser o valor maior entre todos os seus valores? De certo modo, ainda no livro A folha dobrada , ele próprio nos conduzia a essa descoberta, ao declarar: “Hoje, eu sei, é claro, que minha alma foi geneticamente construída para ser a alma de um professor”. Ao lermos a sua conclusão – “Senti o leve roçar do anjo na minha cabeça” –, sentimo-nos enriquecidos e fomos levados a pensar em sua sinceridade, na autenticidade da sua ideologia e no refinamento da sua escrita. Mas também pudemos compreender que, no seu pensamento, a conciliação entre os diferentes desígnios do homem está centrada na convicção quanto à sobrevivência dos ideais da Humanidade. Como se ele nos dissesse, infatigavelmente, que as civilizações podem parecer sucumbir, mas sobreviverão em um percurso subterrâneo para ressurgirem em uma aurora, renovadas e atuais.