Professor Goffredo, exemplo de conduta ético-social – Marco Antonio Rodrigues Barbosa

Marco Antônio Rodrigues Barbosa
Advogado militante; ex-presidente da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana

Ao ser honrado com o convite da Associação dos Advogados de São Paulo para escrever este artigo em homenagem ao Professor Goffredo da Silva Telles Junior, deparei-me com um dilema de difícil solução: quais os aspectos ou acontecimentos, relativos à vida deste Mestre dos mestres, dotado de inúmeros dons, talentos e virtudes, deveria eu testemunhar, no intuito de colaborar para esclarecer aqueles que ainda não tiveram o privilégio de conhecê-lo pessoalmente ou de conhecer suas diversas obras e seus múltiplos feitos? Deveria eu falar do poeta e sonhador? Do político, que exerceu vários e elevados cargos públicos e até mesmo eletivos, inclusive o de Deputado Constituinte? Deveria falar do escritor, advogado, jurista, ou do incomparável Professor Emérito da Universidade de São Paulo, profeta e humanista?

A escolha e sobretudo a decisão – convenhamos – são tão difíceis quanto encontrar outro brasileiro com tantas e tão diferentes aptidões no século passado e neste século, cuja lei é o trabalho, o profundo estudo, a aturada perseverança.

Diante desse dilema, decidi, depois de muito meditar, falar de fatos que testemunhei diretamente, relativos a este amigo, defensor intransigente da liberdade, da igualdade e da solidariedade entre os homens e que, sem ele saber, adotei como exemplo de vida e de conduta ético-social, e de quem ouvira falar ainda com tenra idade. E para não me perder, na multiplicidade e diversidade dos feitos e talentos do amigo, vi-me na circunstância de relembrar alguns episódios referentes à minha própria vida – pelo que, desde já, peço escusas ao Mestre e aos leitores –, por dizerem respeito, direta ou indiretamente, ao Professor Goffredo.

A primeira referência ao Professor Goffredo de que tenho vaga lembrança creio tê-la ouvido em São José do Rio Pardo – minha querida cidade natal, onde Euclides da Cunha escreveu Os Sertões e onde residi até os meus 18 anos. Talvez essa referência tenha decorrido das notícias das tertúlias, que se realizavam entre euclidianistas eminentes, que lá compareciam e ainda comparecem anualmente, entre 9 e 15 de agosto, para comemorar a Semana Euclidiana e homenagear Euclides da Cunha. O fato é que – e não sei bem por que –, desde pouca idade, passei a acalentar um sonho de um dia vir a conhecer alguns mestres que lá estiveram, dentre os quais o Professor Antonio Candido de Mello e Souza e o Professor Goffredo Telles Junior. E quem sabe um dia – suprema honra! – vir a ser discípulo de um deles.

Incentivado por meus pais, resolvi ser advogado, ingressando, em 1966, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde o Professor Goffredo assumira, interinamente, a cátedra que o Professor Spencer Vampré deixara vaga.

O meu sonho ia, aos poucos, se tornando realidade. Dois dias de manhã de todas as semanas, sem nunca faltar, ao que me lembre, comparecia na tradicional sala João Mendes Junior, o idealista, o filósofo, o sonhador, o poeta, e, sobretudo, o amigo cordial dos alunos e por estes adorado; ali, iniciava, invariavelmente, suas preleções com o vocativo Meus amigos , para, em seguida, com a paciência dos sábios, nos encantar a todos e nos ensinar, na Introdução à Ciência do Direito, a ciência da sabedoria da convivência pacífica entre os homens, pautada pela Justiça, pelos Direitos Humanos, pelas liberdades democráticas numerosas, diversificadas e necessárias à emancipação de cada um.

E o que de fato, dentre tantas coisas, fui aprendendo e creio ter aprendido com o Professor Goffredo?

Destaco algumas. A começar pela genialidade de suas definições, que, como autênticas alavancas, iam nos desvendando o Universo, fazendo-nos compreender, por exemplo: por que a idéia de homem consiste na definição essencial de homem – ser inteligente e autônomo; por que a idéia é produto da abstração e é sempre abstrata e geral – um conhecimento universal, não se referindo a nenhum ser concreto em particular; por que a idéia é o abstrato do individual sensível, sem o elemento individual sensível; ou, por outro lado, por que a ordem é a unidade do múltiplo, a união ética dos seres, voltada para um fim comum; por que a lei é a fórmula da ordem, não podendo existir desordem, pois esta é a ordem que não queremos, que nos infelicita e desagrada, na medida em que tudo está voltado para um fim, o qual deve ser justo, isto é, conforme, adequado, correspondente e proporcional , e que dar a cada um o que é seu é dar o justo , que é, em última análise, o seu .

A partir desses conceitos, genialmente concebidos, o Mestre ia, paulatinamente, incutindo em seus discípulos as raízes dos Direitos Humanos, que, mais tarde, iriam frutificar fortemente em minha vida e em minhas atividades; com seus conceitos, ia descortinando para seus alunos o Universo, em especial o da ética social, da Justiça, porquanto, se dar a cada um o seu é dar a cada um o justo , esse ato constitui o ato de justiça.

Ia o Mestre, como se verifica, pouco a pouco, moldando o espírito dos seus discípulos, inclusive o deste aprendiz, recém-saído de um colégio estadual interiorano, mal sabendo onde estava e ainda muito longe, portanto, de ter o seu espírito formado.

Ao abrir os nossos olhos para os princípios de Justiça e fazê-los serem entendidos, o Professor, subliminarmente, despertava em seus alunos mais uma dimensão do princípio ético-social, que sempre norteou sua vida: a defesa constante e intransigente do fraco contra o forte, do pobre contra o rico, da luta pela supremacia do bem público, comum de todo o povo; fazia-nos entender que nunca deveríamos permitir a apropriação do Estado, do público, pelo privado; despertava o nosso senso crítico, ensinando-nos a ver, ouvir, procurar entender, saber reconsiderar, confessar nosso engano, e não simplesmente enxergar ou escutar. Com isso, ele ia, usando todos os recursos de sua inteligência lúcida e singular, de sua imaginação criadora e, com seu patriotismo sem limites, renovando constantemente os nossos valores, a nossa natureza, o alcance e a verdadeira vigência das formas visuais e auditivas, nessa busca incessante, angustiante e absolutamente difícil que é o verdadeiro do outro.

Enfim, em minha fase de estudante do primeiro ano nas Arcadas, o Mestre, com sua simplicidade de coração e atitude, provavelmente sem notar minha existência, ia, com o seu exemplo, aos poucos, me ensinando como ser simples e verdadeiro; como, no exercício futuro da advocacia e no cotidiano, colocar-me no lugar do outro, entendendo o que para este é verdadeiro , para, procurando fazer justiça, dar-lhe o seu justo , sem atormentá-lo com críticas ou lamúrias e sem ferir-lhe o amor próprio.

Rodou o tempo e, já formado advogado, voltei a encontrar-me com o Professor Goffredo na década de 70. Ele, com os outros cidadãos igualmente respeitáveis, tais como Prudente de Moraes Neto, presenciara o depoimento que o jornalista Rodolfo Konder, antes de exilar-se no exterior, prestara no escritório dos eminentes advogados José Carlos Dias, Arnaldo Malheiros Filho, José Roberto Leal de Carvalho e Maria Luiza Flores da Cunha Bierrembach, a propósito da prisão ilegal, tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nas dependências do DOI-CODI, em 25 de outubro de 1975.

Tratava-se de ratificar esse depoimento, para validá-lo em Juízo, já que Rodolfo Konder, exilado e impedido de retornar ao país, para não ser massacrado pela ditadura militar aqui instalada, não podia fazê-lo pessoalmente e diretamente ao juiz que presidia a ação declaratória que Clarice Herzog e seus filhos menores, representados por mim e meus colegas Sergio Bermudes e Samuel Mac Dowell de Figueiredo, moviam contra a União Federal, visando à declaração da responsabilidade desta pela prisão ilegal, tortura e morte de Vladimir Herzog.

E o Professor Goffredo, simbolizando tudo quanto neste país significa independência, consciência política e destemor, não se furtou: compareceu ao Tribunal e, com sua indiscutível respeitabilidade, prestou o seu depoimento em audiência da qual tenho o orgulho de ter participado como advogado. Ele, mais uma vez, colaborou para conduzir ao resultado que toda a Nação veio a conhecer ainda no final da década de 70, através da sentença proferida pelo Juiz Márcio José de Moraes: a covarde tortura e o assassinato de Vladimir Herzog, em circunstâncias semelhantes ocorridas anteriormente com o tenente José Ferreira de Almeida e, posteriormente, em 17 de janeiro de 1976, com o operário Manoel Fiel Filho.

Mais uma vez rodou o tempo. Na década de 80, a convite dos ilustres amigos José Carlos Dias e José Gregori, passei a militar na Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, onde exerci a Presidência durante 4 anos, a partir de 1987. E, mais uma vez, os caminhos de minha vida voltaram a cruzar-se com os do Mestre.

Nessa década, os ensinamentos do Professor Goffredo, ministrados nos bancos escolares em 1966, tornaram-se redivivos em meu pensamento, em especial os relativos aos Direitos Humanos, como bens soberanos da vida , dos quais o homem necessita para a sua realização na plenitude de sua humanidade, sendo os direitos à fruição desses bens, precisamente, os direitos que passaram a ser denominados Direitos Humanos e as leis geradoras desses direitos não caíram do céu, “mas, pelo contrário, eram conquistas do homem, na longa luta contra a opressão. Eram conquistas obtidas a duras penas”. (1)  

Escusado ressaltar que, na década de 80, a fruição desses direitos continuava totalmente comprometida pela “ordem fundada na doutrina da segurança nacional , toda voltada para os objetivos nacionais permanentes : a ordem definida pelo Conselho de Segurança Nacional, a ordem imperturbável das Forças Armadas”. (2)   Cuidava-se, aí, não de uma ordem , mas de uma desordem ou de “uma ordem vigente no Brasil, fundada na doutrina da segurança nacional, (…) uma ordem política que nos era imposta pela força de um Governo absolutista: uma ordem que não admitia contestação, que não tolerava oposição vitoriosa, e que se apoiava em aparelhos repressivos. Era uma ordem agressiva e constrangedora, cega para os Direitos Humanos – contrária à ordem democrática. Para nós, democratas, criados no respeito pela dignidade soberana das pessoas, alimentados com o ideal permanente da liberdade, aquela ordem discricional – ordem do arbítrio – nos feria e infelicitava. Era a ordem que não queríamos . Para nós, a ordem dos órgãos de segurança era desordem “. (3)  

Urgia, mais uma vez, levantar a bandeira de uma grande causa: propugnar pela revogação da Lei de Segurança Nacional, que dava sustentação à Doutrina de Segurança Nacional. E a Comissão Justiça e Paz, empunhando essa bandeira, resolveu promover um ato “brechtiano”, denominado “Primeiro Tribunal Tiradentes”, presidido pelo saudoso Senador Theotonio Vilela, para julgar e condenar a Lei de Segurança Nacional – acontecimento este inesquecível, ocorrido no Teatro Municipal de São Paulo, lotado, que resultou num filme dirigido por Renato Tapajós, denominado “Em nome da Segurança Nacional”. E, mais uma vez, como protagonista da história do Brasil, o Professor Goffredo aceitou prontamente ser testemunha de acusação dessa lei, que, obviamente, acabou por ser condenada pelo corpo de jurados, composto também por outros ilustres brasileiros, tais como Hélio Bicudo, Professor Dalmo de Abreu Dallari, Luiz Ignácio Lula da Silva, Hélio Fernandes, dentre outros.

Logo depois, ainda na década de 80, impunha-se dar continuidade ao processo de transição democrática. Iniciava-se a luta pelas eleições diretas, repudiando-se, para tanto, as eleições indiretas, que viriam a ser realizadas no malfadado Colégio Eleitoral.

A Comissão Justiça e Paz de São Paulo, a qual, para nossa honra, passara a integrar Maria Eugênia Raposo da Silva Telles, esposa do nosso homenageado, mais uma vez empunhou a bandeira dessa importante causa, visando à condenação do Colégio Eleitoral. Para tanto, cumpria instalar, novamente no Teatro Municipal, o “Segundo Tribunal Tiradentes”; para tanto, necessitava-se de um Presidente, que, parodiando Carlos Heitor Cony, a respeito de Oscar Niemeyer, tivesse atingido “(…) aquele estágio de santidade sem Deus, fala o que quer e como quer e está sempre com razão, pois o eixo de seu pensamento é a realidade de um mundo injusto que até hoje não conseguimos modificar”. (4)  

E, mais uma vez, consciente de sua missão, não se furtou o Professor Goffredo. Recordo-me com saudade desse episódio, onde, como advogado de acusação do Colégio Eleitoral, atuou o depois Ministro Paulo Brossard; como advogado de defesa, meu colega de escritório Samuel Mac Dowell de Figueiredo e, dentre as testemunhas de acusação, o saudoso Deputado Ulisses Guimarães, que, questionado por mim, para explicar seu apoio posterior ao Colégio, justificou, de forma bem humorada e inteligente: a cobra se mata com o próprio veneno.

Agora, neste início de século, mais uma vez, fui honrado com o convite, para participar, como membro do Conselho Consultivo da Ouvidoria da Prefeitura Municipal de São Paulo, em companhia do Professor Goffredo.

Enfim, Professor, o que devo ainda dizer em sua homenagem? Lembro-me de Vittorio Gassman: indagado, em um programa de televisão, a respeito de sua própria vida, respondeu que esta deveria constituir-se de duas etapas, uma para ensaiar e outra para representar; no seu caso, Professor, homem perseverante, de profundo estudo, aqui ensaia e representa; sua vida sempre foi e é uma perpétua oficina regida pelo trabalho; seus feitos, seu exemplo e seus livros são essenciais, orgulho da geração atual e um legado à vindoura. Sua obra, vasta e brilhante, é, como diria Machado de Assis, fruto do engenho do filósofo, do prosador e do poeta, que conhece todos os tons da escala.

(1) – Cf. Goffredo Telles Junior, A folha dobrada – Lembranças de um estudante , Nova Fronteira, p. 907.

(2) – Idem, p. 919.

(3) – Idem, pp. 919/920.

(4) – Cf. “Folha de S. Paulo”, edição de 14/4/2002, p. 2.