Relembrando o professor Goffredo Telles Junior (1915-2009)

Em agosto de 1997, quando a famosa Carta aos Brasileiros completava vinte anos, o deputado Paulo Teixeira organizou na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo uma homenagem ao professor Goffredo Telles Junior.

Surpreendido com o convite para fazer uma saudação, em nome da Associação Juízes para a Democracia, ao meu antigo professor, invadiu-me a sensação de que não seria capaz de bem me desincumbir do encargo.

Procurei socorro numa gaveta onde guardo meus tesouros, que não são jóias nem ornamentos de exibir senão bens mais ricos, recordações gratas de momentos singulares da vida. Ali estava a Carta, autografada pelo professor Goffredo, seu autor, no mesmo dia de agosto de 1977 em que a lera, diante do Brasil, nas Arcadas.

Depois, apanhei na estante o livro A criação do direito (1), cuja primeira parte, tratando do fundamental problema filosófico da liberdade, vem epigrafada por uma frase de Rudolf Stammler: “O jurista que não é mais do que jurista é uma triste coisa”.

Considerei comigo mesmo que o professor Goffredo sempre foi efetivamente muito mais que um jurista. Partícipe ativo dos debates sobre a democracia e a gestão da coisa pública desde a década de 1930, revelou-se um verdadeiro cidadão de seu país. Representou o povo brasileiro em muitas lutas e viveu serenamente atormentado — porque há coisas que doem e  gratificam a um só tempo —  pela idéia de jamais deixar de lado sua dimensão de cidadão.

Vasculhando a memória em busca de aulas significativas, muitas vieram de pronto como se tudo tivesse ocorrido há poucos dias e não vinte e três anos antes (estávamos em 1997 e, hoje, mais doze anos passados,  a sensação ainda é a mesma).

Mas não pretendia me limitar, na saudação, a passagens conhecidas de aulas que todos os ex-alunos sabiam na ponta da língua: os conceitos de ordem e desordem, de norma jurídica, de legal e legítimo. Queria algo particular: um ponto em que o discurso do professor tivesse tocado o aluno especialmente, dando-lhe a sensação de que a ele fora transmitida com exclusividade uma espécie de revelação.

A referência na Carta aos valores soberanos do ser humano (2) logo me fez lembrar de algo efetivamente singular : uma aula em que o professor, a propósito de sua antiga experiência como membro do Conselho Penitenciário durante quase trinta anos (3), afirmara que em cada presidiário cuja conduta e vida tinha de analisar ele sempre investigava bem e encontrava algum detalhe, ao menos um, em que aquele homem fosse mais virtuoso, melhor, que ele, o conselheiro.

Foi minha primeira lição de direitos humanos.

Nos doze anos seguintes àquela homenagem, muitas outras aulas, eu e colegas da Juízes para a Democracia recebemos do professor Goffredo.

Lemos, comovidos, sua autobiografia, recheada de lições de filosofia — A folha dobrada — lembranças de um estudante.

Conversamos muito sobre nossas lutas — não apenas juízes democráticos, mas de juízes reunidos para a democracia, num sentido dinâmico, de construção dela — e sempre encontramos nele um interlocutor atento, paciente e sábio.

Eu mais Lino Machado, kenarik e Dora, fizemos longa entrevista com ele, para publicação na revista da AJD (4).

No primeiro aniversário de sua partida — dolorosa para um sem número de alunos e amigos que poderiam relatar experiências semelhantes — relembramos tudo isso, agradecendo, mais uma vez, as lições dele recebidas, que nos animaram a ser, também, além de cultores da disciplina da convivência humana e juízes, cidadãos.

De livro póstumo, extraímos e fazemos nossas, para ele, as palavras invocadas na abertura do discurso em homenagem ao professor Spencer Vampré :

“Não estará ele entre nós ? Não ouvirá o meu chamado ? Tão viva é sua lembrança ! Tenho a sensação de vê-lo ! Custa-me crer que ele aqui não se encontre” (5).

Dirceu Cintra, ex-presidente da AJD, desembargador em SP

Notas

(1) Tese com a qual o professor Goffredo Telles Junior conquistou a cátedra na Faculdade de Direito da USP, em 1954.

(2) Sobre os bens soberanos, veja-se o capítulo XXXV do recente livro sobre antigas lições do professor Goffredo, intitulado Iniciação na Ciência do Direito (Saraiva, 2001, p. 341).

(3) A experiência é relatada no capítulo 18 na autobiografia A Folha Dobrada — lembranças de um Estudante (Nova Fronteira, 1999, pp. 180 e seguintes).

(4) Justiça e Democracia nº 4, AJD/Ateliê Editorial, 2001.

(5) Goffredo Telles Junior, Três Discursos, Migalhas, 2009.