Representação política, democracia e globalização – Alaôr Caffé Alves

Alaôr Caffé Alves
Professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

Por que é necessária a representação política? Quem representa, representa alguém ou um grupo de pessoas em relação a algum assunto ou interesse. Fala por esse alguém ou por esse grupo a respeito de determinada matéria. Uma representação política, portanto, é pertinente aos assuntos da direção das coisas públicas de interesse de todos. Essa direção implica o poder de dizer e orientar os negócios públicos, usando, se necessário, a força para a obtenção dos resultados a serem colimados segundo os valores e aspirações sociais da comunidade representada.

O exercício do poder, em geral, pressupõe sempre uma inequação, uma desigualdade básica em virtude da qual uma parte se sobrepõe à outra, impondo a sua vontade, seja por razões de conhecimento (razões ideológicas), como a relação médico e paciente; seja por razões econômicas (razões materiais), como a relação patrão e empregado; seja, ainda, por razões de poder exercer a força (razões políticas), como as relações Chefe de Estado, Parlamento ou Judiciário e cidadãos. Todos esses poderes (ideológico, econômico e político) estão entre si intimamente relacionados, de tal sorte que o exercício de qualquer deles pressupõe, de um modo ou de outro, o exercício implícito ou explícito dos outros.

O poder político implica o poder de exercer, em última instância, a força, a violência, a sanção legitimada. No direito, este poder é representado pela sanção jurídica prevista na norma. O Poder Legislativo trata da qualificação normativa das relações sociais que entende mereçam sanções a serem aplicadas pelo Executivo e pelo Judiciário; o Poder Executivo aplica as sanções administrativas e concretiza as sanções judiciais; e o Poder Judiciário julga da pertinência ou não, nos casos concretos, da aplicação das sanções estabelecidas pelas normas jurídicas. Todos eles são “Poderes Políticos”, perfazendo o corpo do Estado, precisamente porque manipulam, com legitimidade, a violência, a sanção sobre os membros da sociedade.

Geralmente, no exercício do poder político, não se usa diretamente a força, mas sim o convencimento mediante idéias e propagandas. Este expediente é o artifício ideológico do poder político, para obter a inclinação das vontades que representa. Parece, aqui, não haver violência expressa em atos abertos de força. Há somente uma violência simbólica, onde cada um tem que aceder às decisões do poder legítimo, porque este foi escolhido para representar a comunidade. Quanto mais os valores das autoridades representantes se identificarem com os da comunidade, tanto menor será a violência simbólica. Mesmo estes “valores da comunidade” são uma construção ideológica providenciada, consciente ou inconscientemente, pelas forças hegemônicas dessa comunidade, mediante os mais variados instrumentos de propaganda, de divulgação de idéias e de formação da opinião pública.

Os membros da comunidade, neste caso, têm a impressão de que estão governando a si mesmos, autogovernando, embora o façam segundo as idéias e valores de uma parcela hegemônica da comunidade. Tem-se, assim, a dimensão ideológica como alicerce do exercício básico do poder político sobre a maioria submetida, sem o exercício direto ou aberto da força, da violência. A violência política é mascarada pela ideologia, não obstante esta dissimulação seja fundamental para a auto-apresentação do Estado como uma organização legítima e comum a todos, destinada a promover a paz social. Por isso, supõe-se que a democracia, onde existem eleições de representantes e onde todos os valores são submetidos à discussão geral, seja a melhor forma de representar a sociedade em sua direção política.

Entretanto, é preciso frisar, o poder não será poder político se não for possível o exercício, em última instância, da violência para impor os seus propósitos e valores, supondo-se estes legítimos. Por isso, justifica-se ao Estado a instituição de forças armadas ou policiais, detentoras da possibilidade de reagirem legitimamente com atos diretos e abertos de violência. Pois bem, agora vêm as questões: quem estabelece os critérios e fiscaliza sua aplicação concreta para verificar se o poder está efetivamente sendo exercido segundo as aspirações de todos? Seriam os controladores da sociedade? Mas quem controla os controladores? Aí estão as questões-chave da representação.

Em segundo lugar, questiona-se: É efetivamente representativo o poder político, em face das aspirações de todos? As possíveis respostas também estão sujeitas às distorções ideológicas, porque as próprias aspirações declaradas publicamente podem não ser autenticamente de todos. Isto se verifica pelos incontestáveis movimentos das forças sociais, que são múltiplos e freqüentemente antagônicos. Veja o caso presente, e extremamente significativo, do movimento dos “sem-terra” em conflito aberto com os fazendeiros proprietários de grandes latifúndios.

Se a sociedade não é um todo uníssono, visto haver interesses divergentes e não raro antagônicos, com diferentes capacidades (ideológicas, econômicas e políticas) de se fazerem presentes no âmbito do governo, como é possível a representação ser legítima? Ela será legítima somente se der oportunidade a que todas as linhas de força da sociedade, inclusive as mais fracas, possam se fazer ouvir na direção social? Isso é possível? Para melhor compreender as possibilidades de resposta, precisamos entender como as dimensões política e econômica estão vinculadas entre si.

Na Idade Média, o poder econômico vinha integrado com o poder político; as relações econômicas se identificavam com as relações políticas, pois o agente econômico e o agente político eram o mesmo (o senhor feudal): ele agia no âmbito econômico, comandando a produção da vida material, bem como no âmbito político, exercendo a força sob todos os ângulos possíveis (jurídico, militar, etc.). As condições ideológicas eram asseguradas pela idéia de uma sociedade hierarquizada, onde as pessoas tinham seu lugar definido previamente pelos céus. Isto soava como algo natural querido pela divindade. Nos tempos modernos, com o advento do capitalismo, o poder político se separou do poder econômico, devendo ser exercido com autonomia em relação a este último. A exploração econômica não pode mais ser respaldada por atos de violência do senhor feudal, que detinha o poder político (com o auxílio do poder ideológico) para esse desiderato: a força política era utilizada para a obtenção de segurança econômica e para a exploração dos servos da gleba e manutenção daquelas relações de servidão. Esta integração orgânica entre o político e o econômico desaparece com o advento da produção mercantil e dos mercados, onde o capital e o trabalho devem encontrar-se e ligar-se mediante contratos “livres” entre “iguais”, e não mediante a violência ou o constrangimento pela força direta (como ocorria nos sistemas pré-modernos escravistas e feudais). O poder político, neste momento – como possível exercício da força e da violência – dissocia-se e destaca-se como um poder próprio, comum a todos, como poder público dirigido pelos e aos cidadãos, fora da órbita econômica e dos afazeres cotidianos próprios dos indivíduos privados que perseguem seus destinos segundo os princípios do egoísmo e do conforto pessoal (burgueses), perfazendo a sociedade civil. Com o capitalismo mercantil e, depois, com o capitalismo industrial, a instância econômica se separa da instância política. A sociedade civil (o mundo dos negócios e da vida privada) não se confunde com a sociedade política (Estado).

Assim, aparece o poder político centralizado e personalizado na figura do Estado, encarnando os ideais da comunidade pública, separado da sociedade civil, onde permanecia a fornalha das atividades econômicas sob valores individualistas egocêntricos. Com esta separação, vem o grande problema da representação dos interesses individuais e de grupos e classes sociais no aparelho centralizado do poder político. O Estado é inerente ao corpo social e não pode ser deslocado para outro mundo. Ele não vem de fora, ele é um produto das lutas e dos anseios da sociedade que o engendra. Daí a necessidade de representação política, para o exercício do governo de todos em nome dessa comunidade.

No entanto, como já dissemos, a sociedade é fragmentada em inúmeros interesses, muitos deles poderosos economicamente e que, por isso, podem se fazer representar mais do que outros na máquina político-burocrática do Estado. Põe-se aqui a questão primordial: até que ponto, num sistema como o nosso, marcado por diferenças e abismos sociais profundos, onde existem capitais imensos e de altas influências social e política na distribuição das riquezas produzidas, pode haver autêntica representação política na condução dos negócios públicos?

Parece, na verdade, que a separação entre o político e o econômico não é tão expressiva ou tão nítida como os nossos ideólogos nos fizeram crer. É, na verdade, uma separação de fachada, uma separação ideologicamente preparada pelas forças hegemônicas da sociedade, para induzir ao engodo da neutralidade da ordem política, entendida como orientação democrática e igual para todos. Hoje, com o fenômeno da globalização, a questão se torna mais aguda e visível ainda. O econômico subordina mais amplamente e com maior intensidade a vida política aos seus imensos e globais interesses segmentados e privatísticos. Cada vez mais observamos a utilização da máquina estatal para o atendimento dos propósitos das grandes corporações mundiais, unificadas e fusionadas, sem nenhum escrúpulo dos governantes, que passam a representar muito mais a mediação entre o povo e essas corporações, para o melhor proveito destas, do que os reais interesses das grandes populações “representadas”.

Assim, somente as grandes forças da mobilização democrática das comunidades serão capazes de impor obstáculos às aspirações dos grandes complexos econômico-financeiros e dos Estados a estes associados. É preciso, porém, fazer um reparo quanto ao que se entende por democracia, que não deve ser entendida apenas como uma dimensão de luta social em nível meramente político. A democracia tem também uma profunda interface com a dimensão econômica, especialmente com as forças do mercado.

As gigantescas corporações econômicas, produtivas e financeiras comunicam-se mediante o mercado. As pessoas agem e conseguem os seus benefícios materiais, vitais e culturais de acordo com as forças de seu bolso. Quem tem recursos econômicos, tem acesso a bens e serviços produzidos pela comunidade; quem não os tem fica à margem da vida social plena ou à margem da dignidade humana, visto que não pode satisfazer suas necessidades básicas. O mercado, cuja dinâmica é determinada pela produção e pelo sistema financeiro sob controle dos grupos privados, é o principal regulador da inclusão ou exclusão social, subordinando inclusive a ética social aos seus ditames. Ele funciona todos os dias nas praças e nas bolsas, aprofundando as desigualdades e a miséria entre os homens, contra os anseios da solidariedade e da dignidade humana. Nesse sentido, a democracia não deve ter apenas como objetivo a luta, no nível político, contra os desmandos centralizadores, contra o autoritarismo ou as ditaduras. Ela não tem apenas uma dimensão política. Seu escopo é também, e principalmente, a luta no âmbito econômico, buscando neutralizar as forças perversas e diuturnas dos mercados, através da universalização ética da ação participativa e crítica de todos, no processo permanente e continuado de decisão social das coisas públicas. Não basta, portanto, o retorno cíclico, em nível político, de quatro em quatro anos, para depositar de maneira solitária e ineficaz o voto nas urnas da democracia burguesa. É preciso atuar diariamente, visto que as forças do capital e do mercado são eficazes diariamente.

Aí ficam as bases para começar a refletir a respeito de qual o valor do voto universal, do voto distrital, do voto misto, da representação democrática, dos mecanismos dos partidos, das instituições políticas tradicionais de rua, etc., pois eles, quaisquer que sejam escolhidos, afastam muito mais do que aproximam o povo das decisões de governo. Os mecanismos que condicionam a representação política do povo no Estado estão aferidos e ajustados precisamente com os valores dominantes da sociedade e que não são efetivamente os decorrentes dos interesses de todos. Os partidos políticos são verdadeiros filtros institucionais para catalisar previamente os representantes da comunidade, segundo os interesses hegemônicos.

A meu ver, a instituição da mera representação política está longe de contribuir para a solução da governabilidade política da comunidade. É preciso bem mais do que a mera representação política, e da sua alternância de tempos em tempos nos postos de governo. É indispensável uma presença garantida, responsável, diuturna e participativa do povo nos negócios comuns da comunidade. É preciso inaugurar uma nova democracia, a democracia participativa de integração social.

Entretanto, é preciso reconhecer, dadas as dimensões de nossas comunidades, que não pode haver participação sem representação. Para sua eficácia, será necessário estabelecer formas não tradicionais de representação, onde não seja posta em jogo apenas a democracia das ruas, inominada, fabricada mediante cartazes e santinhos, cujos sujeitos aparecem apenas nas ocasiões espaçadas das eleições. Essa democracia participativa deve realizar-se mediante redes organizadas de representações, onde as instituições culturais, produtivas, religiosas, profissionais, de vizinhança, de lazer, etc., tenham vínculos diretos ou indiretos com o poder político, propugnando pelas administrações transparentes e alijando a influência absoluta dos partidos políticos e dos grupos econômicos.

A representação não pode ser um fim em si mesma. Ela deve ser apenas um meio para garantir a efetiva participação das instituições sociais e dos homens concretos no governo das comunidades. Somente assim é possível assegurar, acreditamos, a força e a universalidade necessárias para contrabalançar ideológica e politicamente o imenso poder econômico privado surgido com a globalização.