Synesio Sampaio Goes, Mesa de Amigos Prof. Goffredo FDUSP 18/11/2010

GOFFREDO

O professor.

Há poucos meses, tive a honra de falar sobre o professor emérito Goffredo da Silva Teles Jr., na missa de um ano de sua morte, junto com outros tres representantes de décadas diferentes de alunos.  Foi neste mesmo Salão Nobre, onde ele viveu momentos culminantes de sua vida acadêmica e onde seu corpo foi velado.  Agora, falo de novo.  Pretendo ser mais informal – não estou neste instante em um púlpito – e vou deixar de lado os títulos do mestre e falar simplesmente Goffredo, como seus milhares de alunos carinhosamente o fazem.  A honra desta vez é dupla, por compartilhar a mesa com o Tércio e o Celso, os dois colegas de turma que tiveram as mais sólidas e mais brilhantes carreiras profissionais nesta Faculdade.

Vivendo fora do país como diplomata, não tive o prolongado contato pessoal e profissional que meus dois amigos tiveram.  Nem participei, como o Flávio, aqui presente, de sua vida cívica. Fui orador da turma de 64, a primeira em que Goffredo foi paraninfo; 20 anos depois, falamos de novo juntos numa comemoração na emblemática Sala João Mendes Jr. Ouvi comentários de amigos comuns, li artigos, sobretudo gostei muito de suas memórias.  Reconheço que é pouco.  O que posso fazer é dar a imagem pessoal que tenho. Uma visão impressionista, de um pintor amador.  Seguramente sujeita a erros de avaliação.

Fui um aluno problemático no curso secundário.  Freqüentei alguns dos piores colégios de São Paulo, depois de ter sido expulso de alguns dos melhores. Digo isso para esclarecer que não trago a lembrança de bons professores,  por culpa minha, com certeza, do Ginásio e do Científico, e para valorizar o choque das aulas do Goffredo.  De que não me recuperei até hoje, 50 anos depois.  A concentração inicial, que servia também para dominar uma leve gagueira, o solene “Meus Senhores”, a fala clara, a voz agradável, o pensamento lógico; o silêncio absoluto da classe.  Não interessava o que acontecia lá fora, aquela aula era um momento de bem aventurança.  O mestre punha toda sua inteligência e todo seu coração em cada aula e conseguia fazer “uma obra de beleza”.

Havia catedráticos eminentes, Vicente Rao, Noé Azevedo, Cesarino Jr, Miguel Reale.  Porque será que as aulas do Goffredo foram as que mais ficaram gravadas na memória de gerações de alunos? Seria mais saber?  Não necessariamente.  Mais amor?  Muitos dizem que sim, e eu também. Ninguém amou tanto a Faculdade, ninguém amou tanto os moços da São Francisco.  “What survives me is love”, diz  Marlowe e os poetas sabem mais do que os filósofos. E por isso que estamos aqui hoje. Porque em Goffredo há o diferencial do amor.

Era um grande trabalhador intelectual – começava às 3, 4 horas da madrugada; e, no sentimento, era um romântico. Lendo  sobre a obra de José Bonifácio, o Moço, político reformista e abolicionista, grande orador, mestre adorado e também poeta, descobri semelhanças com Goffredo. É o único professor que virou estátua. Por quê? Porquê a nossa Faculdade gosta é dos românticos.  Nas três portas principais há placas de mármore celebrando não juristas ou estadistas, mas Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro Alves.  Nada mais romântico que o tórrido “Beijo” lá fora, no Largo, ou a tenebrosa campa de Júlio Frank, aqui dentro.  Aí  está  a família de coração de nosso mestre.

No ano em que foi nosso professor, 1960, Goffredo passava por uma fase difícil.  Que durou anos!  A “idade média” de sua vida afetiva, nas suas palavras. Cito: “Aquele ano letivo eu o enfrentei lutando contra meus próprios demônios.  Vinha de longe essa refrega.  E eu percebia que  minha derrota se acentuava.  Muitos dias houve, em que me via arrebatado pelos sorvedouros das águas de baixo.   Quanta tristeza, meus Deus!  Minha Faculdade…   naquelas horas de mar grosso…  era o estaleiro de minha embarcação desarvorada”.   Nesse período, suas aulas continuaram luminosas. Quem sabe até mais atraentes, pela aura de mistério e boêmia que cercava o mestre favorito.

Amor, trabalho, romantismo; queria agora falar de respeito.  É o traço que precisa ser marcado na relação de Goffredo com os jovens:  o profundo respeito que tinha por cada um.  Não havia alunos medíocres, relapsos, desagradáveis. Irmanados com os bons, todos integravam a mocidade gloriosa do território livre do Largo de São Francisco.  Queria formar, não meros advogados, mas homens de bem, cidadãos prestantes.  Como ele o era.   Do mestre se ouvia a palavra, mas, sobretudo, se via o exemplo.

O memorialista.

Quem nesta Universidade, ou em outra, escreveu memórias com tanta verdade, com tanta poesia?  Com tal carga de emoção?  Quase mil páginas, lindamente escritas, num tom de absoluta sinceridade.  Uma vida cheia de trabalhos.  A evolução de seu inquieto pensamento: Filosofia, Direito, nos últimos tempos, Física e Biologia;  São Paulo e o Brasil vistos pelos olhos de um professor de cidadania; muitos momentos poéticos.  Não fala mal de ninguém.  Quando menciona alguma situação desagradável, não dá o nome de quem a causou. Não acerta as contas com desafetos.  Um livro generoso, que exala amizade e admiração.

Uma palavra sobre os três filósofos que se destacam nas  páginas dedicadas às preocupações que, desde muito jovem, tinha com a liberdade, a ordem, as leis da natureza e da sociedade. A paixão de sua mocidade foi Espinosa, o judeu que identificava Deus com a natureza e foi considerado um impiedoso ateu pela comunidade judaica de Amsterdam. Mas o casamento por amor, de toda a vida, foi com Kant: “O céu estrelado sobre minha cabeça e o sentimento moral dentro de mim” é uma visão kantiana que igualmente deslumbra e espanta Goffredo. Considera a Crítica da razão pura o maior livro da filosofia moderna e o reescreveu, integralmente, para que seus alunos pudessem entender uma obra difícil; mas que, para ele, era comparável à obra de Copérnico, na Astronomia. Mais tarde, encontrou-se em Henri Bergson, o pensador da intuição, da evolução, da inserção do espírito na matéria; que era um notável professor do “College de France” e escrevia com rara beleza. E que demonstrou grande coragem ao se reconverter ao judaísmo, em 1937, quando se intensificava o anti-semitismo. Tudo a ver  com nosso mestre…

Na fase madura de sua existência, Goffredo passou a ter  interesse pela Física Atômica – a complexidade dos elétrons, a transformação da energia em matéria – e pela Nova Biologia – a origem da vida, a evolução das espécies. Sobre este último ponto, quero lembrar uma linha de suas memórias: “Um dia, em eras remotas, um peixe primitivo ‘decidiu’ explorar a terra. Sobre o barro, porém, ele só podia se locomover a saltitar desajeitadamente… era o primeiro heróico esforço para dar início ao lento processo do desenvolvimento dos membros”.  Essa “decisão” do peixe ancestral ficou na minha  mente e resurgiu, há pouco, ao ler um livro recém-publicado, “The ancestor’s tale – a pilgrimage to the dawn of live, do biólogo  Richard Dawkins.  O peixe saltitante do Goffredo está lá, num capítulo chave; curiosamente há aí descrições e observações muito parecidas com as de Goffredo. Um comentário. Foi a evolução da ciência, mais que o estudo da filosofia, que levou Norberto Bobbio a perder a fé religiosa.  Ele acreditava na razão e achava que esta não iluminava o reino do mistério, onde vicejam as religiões. Com Goffredo não parece ter acontecido isto.  Embora se veja em suas memórias que Bíblia e religião não são temas que o interessem particularmente, ele, creio eu, conservou sempre a fé tradicional dos seus pais: fala em Deus, refere-se aos santos dos dias, vai a Igreja …

Duas figuras de professor destacam-se em suas memórias:  Spencer Vampré e Brás Souza Arruda.  Não foram aqueles mestres que, no julgar pedestre das pessoas, triunfaram na vida:  grandes posições, prestígio e dinheiro; foram homens que amaram esta casa e seus alunos, que deram o melhor de sua existência à tarefa de escrever e ensinar. Notáveis diretores desta casa! Foram, sobretudo, homens que sonhavam: Arrudinha dizia que o Direito não evoluiria se não se imaginasse um Direito melhor; Vampré  quis fretar um navio e sair com os jovens pelos os mares do mundo…

 E uma figura de político, Santiago Dantas.  Diz Goffredo: “não havia no Brasil nome nenhum mais ilustre que este… ali estava o homem de que precisávamos para presidente da república.” Ele vai a Câmara dos Deputados, um dia, em 1962, para escutar Dantas defender a Política Externa Independente. Cito: “Lembro-me de meu estado d’alma ao deixar o Congresso e sair andando sob aquele céu imenso de Brasília; eu me sentia irmanado  como seres humanos de todas as latitudes. E, de repente, senti que eu pertencia a uma grande família: a esquerda”.  Goffredo comenta que Dantas era filósofo, amigo de poetas, professor admirado pelos alunos:  “Suas aulas causavam deslumbramento. Eram simples, de clareza meridiana e fascinavam pela beleza do discurso”.   É revelador constatar que suas palavras sobre o deputado por Minas se aplicam perfeitamente ao próprio Goffredo.   E olhem então estas, a propósito de Dom Quixote, apólogo da alma ocidental: “No fundo, bem no fundo, não são tão opostos o personagem Dom Quixote e o lúcido professor Francisco Clementino Santiago Dantas”.   Não teria também Goffredo muito de Dom Quixote?

Há momentos de alta poesia no seu livro. São inúmeros, vou lembrar dois. As primeiras aulas que deu em sua vida foram na casa de sua ilustre avó,  Olívia Guedes Penteado, ícone do Modernismo em São Paulo. Bom aluno de filosofia dos padres de seu querido Colégio São Bento, deu um curso de Lógica aos amigos da casa. Cito: “ eu as preparava longamente, com devoção apaixonada… as proferia como se ali estivesse falando de improviso sobre assunto familiar, sabido e ressabido, à moda dos doutores… mas com o coração em alvoroço.” Quem não vê aí o emotivo menino – Goffredo tinha 16 anos – que nunca abandonaria o longo magistério do eminente jurista… Outra página antológica é o encontro com a mulher de sua vida. Sábado, 28 de março de 1967. Goffredo vai a pé, de noite, à Folha de São Paulo para assistir à entrega do prêmio Juca Pato a seu primo Caio Prado Jr. Dou á palavra ao mestre: “Não andei muito. De súbito, numa abertura no meio do povo, eu a vi. Ela estava de costas para mim. Vestia um tailleur azul marinho. Pelo seu vulto, seu cabelo erguido sobre a altiva cabeça, sua extraordinária elegância, eu a reconheci. Quando ela se virou –Santo Deus – seu olhar, seu claro sorriso, doce como uma benção. Era Maria Eugênia.” 

O homem.

Que bela fotobiografia não daria sua vida! O cenário básico seriam as ruas e as praças do velho centro de São Paulo, onde nasceu, viveu e morreu. E tantas outras evocativas imagens haveria!  O aristocrático menino que andava a cavalo, de botas e luvas, pelos Campos Elísios; o deputado de 30 anos, o terceiro mais votado do Brasil, vivendo e explorando o Rio Maravilha da década dos 40; o homem de grande beleza física e moral, que punha acima de tudo sua vocação universitária; quem sabe até o boêmio que bebericava com Dorival Caíme, nas noites desvairadas da Paulicéia; o corajoso professor que, ombro a ombro com os moços, era acuado pela polícia no pátio da São Francisco; a leitura da “Carta aos brasileiros”; o velho mestre, sempre envolto pela admiração dos seus discípulos…

Um dos momentos culminantes da vida de Goffredo foi a redação e a leitura da Carta aos Brasileiros. Já se escreveu bastante sobre ela. Todos reconhecem sua pertinência, sua oportunidade, sua bela forma. Muitos sabem que sua leitura, naquele  8 de agosto de 1977, foi um gesto de grande coragem pessoal. Qual sua importância prática? Para a São Francisco, foi um documento essencial: repôs o pensamento das Arcadas no eixo central, que a participação de dois professores no Ministério da Justiça havia deslocado para a direita. E para o Brasil, quanto contribuiu para a redemocratização? Vários livros a vêm como passo decisivo. Só uma lembrança: um dos mais recentes desses  manuais relevantes de História do Brasil — houve três ou quatro no Século XX  —  é o de Carlos Guilherme Motta, que considera a Carta fundamental para a consolidação da abertura democrática. O livro contém um capítulo sobre ela e, com quase mil páginas, tem apenas dois anexos: um deles é a Carta.

O historiador, em nota de pé-de-página, se permite uma recordação pessoal de  1968. Se eu fosse escolher uma só imagem do Goffredo para ficar para a posteridade seria esta. Cito: “ Lembro-me de um episodio vivido por mim, em que o professor e jurista esteve à frente dos estudantes, ajudando, em meio a estouros de bomba de gás lacrimogênio, a fugirmos de um cerco da polícia à Faculdade. Saímos por um corredor pouco conhecido do convento de São Francisco até os fundos deste e ganhamos a rua. Aquela presença serena, elegante em seu terno e gravata, nos dava uma tremenda sensação de   segurança em tempos de total insegurança.”

Duas impressões básicas do homem  Goffredo me ficam das informações dispersas que tenho.  Primeiro, era alguém que não concebia a vida sem trabalho intenso. Lembro-me da  teoria da “strenous life”, de Ted Roosevelt. No seu caso, trabalho intelectual, que para ele era não só o pensar, mas o fazer.  Segundo, um homem que não poderia viver sem amor. Levava uma vida virtuosa; para os estóicos, esta leva à felicidade; para Goffredo, não há felicidade sem amor.  Stendhal, pessoalmente, e seus personagens centrais viviam apaixonadamente – não foi a toa que escreveu De l’amour — mas seu amor era angustiante, borboleteante; em Goffredo não, é o amor sereno, imorredouro.  No fim de suas memórias, em 1997, ele tem um pensamento que une essas duas vertentes de sua vida: “durante todos esses 30 anos – referia-se a data de seu casamento com Maria Eugênia – dois arrebatamento conduziram meus passos: a obsessão pelas formas políticas da liberdade e o amor pela mulher que Deus me deu”.

Ser humano de grande sensibilidade, seguramente sofreu muito: as tristezas de seus “anos de atribulações”, as decepções da política, as injustiças da vida acadêmica, a perda de 2 filhos…  Mas será que não se pode considerar a sua, uma vida feliz?  Até o fim, admirado pelos moços, até o fim interessado em fazer coisas pelo Brasil, até o fim querido pela filha querida e amado pela mulher amada.  Que se pode esperar mais da vida?  Lou Andréas-Salomé disse de seu amigo Nietzsche: “A história desse homem é, do princípio ao fim, uma biografia da dor.” De Goffredo bem se poderia dizer: sua história é uma biografia do amor.