Tribunal Penal Internacional – – A proteção dos direitos humanos no século XXI – Sylvia Helena F. Steiner

Sylvia Helena F. SteinerDesembargadora federal em São Paulo; membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e da Associação de Juízes para a Democracia; participou da delegação oficial brasileira na Comissão Preparatória do Tribunal Penal Internacional

Sumário

1. Introdução

2. A proteção da humanidade no plano internacional
3. O estabelecimento do Tribunal e sua competência
4. Os princípios gerais de Direito Penal
5. Composição e administração da Corte
6. Investigação e ajuizamento das ações
7. Das penas aplicáveis
8. Da apelação e da revisão
9. Da cooperação internacional
10. Da execução das penas
11. Considerações finais

1. Introdução

Após as profundas mudanças no perfil das sociedades, a partir do final do século XVII, com as alterações da vida econômica e social, a formação da burguesia como classe individualizada e em ascensão e a diminuição da autoridade da Igreja, surgem as primeiras idéias definidoras do conceito de direitos fundamentais. Tal gênese evolui no debate em torno de três direitos básicos para a sociedade que então se formava: o debate sobre a tolerância, decorrente da ruptura da unidade religiosa trazida pela reforma protestante; o debate sobre os limites do poder, decorrente das pressões da burguesia a reclamar participação no poder político; e o debate sobre a humanização do direito penal, também decorrente da idéia de limitação do poder, mas, essencialmente, com a independência dos juízes, a pregação contra a tortura e a necessidade de um procedimento penal com garantias. (1)   

Com o movimento iluminista do século XVIII, firma-se a concepção universalista dos direitos humanos, condensada na Declaração da Virgínia, de 1776, e na Declaração francesa, de 1789. Tal afirmativa histórica da universalidade dos direitos fundamentais, aliada à sua positivação nas Constituições dos Estados, trouxe como conseqüência necessária a evolução para a fase de internacionalização, tida como base de uma proteção mais eficaz a tais direitos.

A evolução do processo de internacionalização da proteção de direitos fundamentais encontra suas raízes normativas nos primeiros tratados de repressão ao tráfico de escravos e à escravidão, em meados do século XIX. (2)  Também nesse período vêm a lume os tratados de direito humanitário, tidos por alguns autores como o primeiro corpo organizado de normas internacionais especificamente destinado a proteger a pessoa humana. (3)   

Com os horrores e as atrocidades cometidas durante a Segunda Grande Guerra, as nações deram-se conta da necessidade de se criar um corpo normativo supranacional, que identificasse e consagrasse um rol mínimo de direitos fundamentais reconhecidos como inerentes à própria existência humana, e dotasse a comunidade internacional de um sistema de proteção a esses direitos, como condição de sobrevivência da espécie.

2. A proteção da humanidade no plano internacional

Não há discrepâncias sensíveis entre os doutrinadores quando atribuem ao período pós 2ª Guerra Mundial o início do processo efetivo de proclamação e de internacionalização dos direitos humanos. Como afirma Fabio Comparato, ” após três lustros de massacres e atrocidades de toda sorte, iniciados com o totalitarismo estatal nos anos 30, a humanidade compreendeu, mais do que em qualquer outra época da história, o valor supremo da dignidade humana. O sofrimento como matriz da compreensão do mundo e dos homens, segundo a lição luminosa da sabedoria grega, veio aprofundar a afirmação histórica dos direitos humanos. (…) Chegou-se, enfim, ao reconhecimento de que à própria humanidade, como um todo solidário, devem ser reconhecidos vários direitos: à preservação dos sítios e monumentos considerados parte integrante do patrimônio mundial, à comunhão das riquezas minerais do subsolo marinho, à preservação do equilíbrio ecológico do planeta”. (4)  

Igualmente marcante, no período que se seguiu à Declaração Universal, foi a renovação de determinados conceitos, especialmente ligados ao direito internacional, na medida em que diversos tratados e convenções passam a apontar um novo sujeito passivo, um novo titular de direitos no plano internacional: a humanidade. Não mais os Estados como sujeitos típicos do direito internacional, ou mesmo os cidadãos, vis-à-vis os Estados, mas a comunidade, o coletivo heterogêneo ou difuso, a espécie humana. Como bem resume Paulo Bonavides, “os direitos de terceira geração tendem a cristalizar-se nesse fim de século enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção de interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta”. (5)  

Já a Carta das Nações Unidas, em seu Preâmbulo, aponta para a necessidade de se preservar as gerações futuras contra o flagelo da guerra, e de se criarem mecanismos para a promoção do progresso econômico e social de todos os povos. A personalização da “humanidade” como sujeito de direitos na esfera internacional vem como principal marco divisório da história do direito das pessoas em nosso tempo. Nesse ponto, estamos com Norberto Bobbio, para quem os direitos do homem são direitos históricos, nascidos de modo gradual, partindo de um caminho contínuo da concepção individualista da sociedade, pelo qual se vai do reconhecimento dos direitos de cada cidadão frente ao Estado até o reconhecimento dos direitos do cidadão do mundo, cujo primeiro anúncio foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem. (6)  

A Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, aprovada em 1948, é o tratado que primeiro incorpora e invoca o conceito de “humanidade” como sujeito de proteção das instâncias internacionais, e cria obrigações para os Estados em relação a esse novo sujeito, incitando-os à cooperação para erradicar tal crime. As Convenções de Genebra, de 1949, firmam a idéia da existência de crimes contra a humanidade, definidos anteriormente nos Estatutos do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg e confirmados pelas Resoluções nºs 3 (I) e 95 (I), em 1946, pela Assembléia Geral das Nações Unidas. Também valem as referências à Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, firmada em Paris, em 1972, bem como a Declaração de Estocolmo sobre o Meio Ambiente, do mesmo ano, ambas consagrando direitos inerentes à humanidade.

Portanto, irreversivelmente incorporado ao direito internacional moderno o conceito de “humanidade” como sujeito de direitos, através dos instrumentos específicos de proteção relacionados com os crimes de guerra e de lesa-humanidade, ao patrimônio cultural e natural e ao meio ambiente. A partir daí, firma-se a idéia da existência de direitos que dizem respeito a todos os homens, independentemente da organização estatal a que estejam vinculados, e da necessidade de estruturar-se um sistema de supervisão, controle e implementação desses direitos por todos os Estados e pelas organizações internacionais.

A diversidade terminológica, tema ao qual retornaremos adiante, advém da novidade de tratamento dado aos novos sujeitos de direito internacional, a partir mesmo da Carta das Nações Unidas, que se refere ora às “nações”, ora aos “povos”, ora à “humanidade”. De qualquer forma, como o objeto dessa nova ordem normativa é a aplicação do princípio da solidariedade ou da fraternidade, dentro do contexto da evolução dos direitos do homem, a terminologia empregada não precisa ater-se ao rigorismo conceptual. O que importa é ressaltar a total desvinculação de tais conceitos ao tradicional conceito de “Estado”. Importa, ainda, lembrar que a indeterminação dos sujeitos titulares desses direitos implica na indivisibilidade do próprio objeto da proteção. Como bem salientado por Carlos Weiss, “a indivisibilidade do objeto é evidente, pois, ainda que seja do interesse de cada membro do grupo, categoria ou classe social a proteção do interesse, a prestação correspondente não pode ser realizada senão tendo em vista toda a comunidade, sem possibilidade de sua divisão em fração ou quotas”. (7)  

Essa constatação do desenvolvimento de novos conceitos nas áreas de proteção aos direitos humanos em geral, e aos direitos da humanidade em especial, leva igualmente a outras conseqüências, bem avaliadas por Cançado Trindade, dentre as quais a “erosão da autodenominada jurisdição doméstica. O tratamento dado pelo Estado aos seus próprios nacionais passa a ser assunto de interesse internacional(…)”. (8) Assim, prossegue o autor, a partir da globalização da proteção aos direitos humanos e ao meio ambiente, atesta-se o crescimento de obrigações erga omnes e o conseqüente declínio do instituto da reciprocidade. As obrigações em relação aos direitos humanos de quaisquer “gerações” passam a ser entendidas como garantias de ordem pública, o que significa uma verdadeira revolução nos postulados do direito internacional tradicional. (9)  Francisco Ortega Vicuña, em alentado artigo, sugere ainda outra grande mudança em tais postulados: aumentar a regulação internacional de matérias de interesse supranacional, vinculando os Estados, e leis domésticas passam a ser aplicadas a atividades que têm impacto ou são de propriedade supranacional, levando a uma gradual erosão da distinção dos âmbitos interno e internacional de jurisdição. (10)   

Vemos, no entanto, em relação aos crimes contra a humanidade, que a experiência trazida pelos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio, se por um lado despertou a consciência da humanidade para a necessidade dessa rede supranacional de justiça punitiva de violações massivas de direitos fundamentais, por outro não se mostrava a mais adequada, pelos vícios que a impregnavam. Com efeito, tratavam-se, ambos, de verdadeiros tribunais de exceção, criados pelos Estados vencedores e após os fatos, para julgar os nacionais dos Estados vencidos.

A garantia fundamental, reconhecida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, do direito a um julgamento justo, levou a comunidade internacional a evoluir no propósito de criação de um sistema judicial internacional permanente, independente e imparcial, para processo e julgamento de crimes que transcendessem a esfera de interesses dos Estados.

A instalação de dois Tribunais ad hoc na década de 90 – o Tribunal de Ruanda (ICTR) e o Tribunal da extinta Iugoslávia (ICTY), por Resoluções do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, já representou um avanço. Agora, a iniciativa partia do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, órgão em tese imparcial, dotado de legitimidade, nos termos da Carta das Nações Unidas, para declarar a existência de situação de conflito armado ou de reconhecer a prática de crime de genocídio ou de crimes de guerra em determinado território. Não mais o julgamento dos vencidos pelos vencedores, mas por uma Corte instalada por decisão de um organismo internacional.

Sem dúvida, uma evolução. No entanto, a imparcialidade das decisões do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas também vinha, e vem sendo questionada. O sistema universal de proteção a direitos e garantias fundamentais não poderia ficar a depender da decisão política de um órgão que nem sempre, como se tem visto, reflete efetivamente a vontade dos Estados. De outra parte, a preservação desses direitos está, muitas vezes, acima da vontade dos próprios Estados que o compõem.

Não sem motivo, pois, os reclamos da comunidade internacional pela criação de um sistema judicial imparcial, independente e permanente, destinado ao processo e julgamento dos mais graves crimes cometidos contra a humanidade. Reconhece-se que a segurança da humanidade, em certa medida, depende da existência de uma ordem internacional dotada de um sistema penal punitivo, como corolário dessa própria ordem legal internacional.

Por tais razões, no âmbito das Nações Unidas, já no início da década de 90, a Comissão de Direito Internacional elaborou o primeiro projeto de estatuto de um Tribunal Penal Internacional. Apresentado o projeto, a Assembléia Geral estabeleceu um Comitê, com a participação de todos os Estados membros e de observadores das Nações Unidas para discussão e apresentação de emendas ao projeto da Comissão. Esse Comitê reuniu-se entre 1996 e 1998, culminando pela apresentação de um reformado projeto para discussão na Conferência Diplomática de Plenipotenciários das Nações Unidas, reunida em Roma em junho e julho de 1998. Aos 17 de julho, finalmente, a Conferência aprovou o chamado Estatuto de Roma e criou o Tribunal Penal Internacional.

Feitas tais considerações introdutórias, tentaremos, de forma resumida, apresentar o Tribunal Penal Internacional, apenas em relação à sua estrutura e competências. Importante deixar claro que o objetivo do presente trabalho é apenas uma introdução à estrutura e competências da Corte. Assim, e para simplificar a compreensão do Estatuto, seguiremos a ordem das partes de seu texto, tal como nele apresentadas. Ao final, nos propomos a apresentar os temas que mais têm sido debatidos, mesmo porque a discussão sobre sua compatibilidade com nosso texto constitucional vem ganhando foros, na medida em que a comunidade internacional cobra das nações a adesão ao Estatuto. Assim, embora sem pretender apontar as soluções, este trabalho tentará demonstrar as dificuldades que vêm sendo postas em debate, principalmente em relação aos institutos da entrega de nacionais ao Tribunal, à alegada ausência de individualização das penas e à previsão da pena de prisão perpétua aos condenados.

3. O estabelecimento do Tribunal e sua competência

Em seu Preâmbulo, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional reconhece que os graves crimes cometidos no século XX contra homens, mulheres e crianças constituem uma ameaça à paz, à segurança e ao bem-estar da humanidade, e que não mais se pode admitir a impunidade dos infratores. A punição dos infratores, assim, contribui para a prevenção de novos crimes. Portanto, no interesse das gerações presentes e futuras, os Estados decidem estabelecer uma Corte de caráter permanente, independente, com competência sobre os crimes mais graves de transcendência para a comunidade internacional em seu conjunto.

Portanto, o Tribunal Penal Internacional, como instituição permanente, exercerá sua jurisdição sobre pessoas, e em relação aos crimes mais graves de transcendência internacional, sempre tendo um caráter complementar às jurisdições internas. Vale dizer, o Tribunal exercerá sua jurisdição sempre que esgotadas, ou impossibilitadas de atuar, as instâncias internas dos Estados.

A competência do Tribunal Penal Internacional vem descrita no seu artigo 5º: sobre o crime de genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressão. Embora em seus artigos 6º a 8º o Estatuto aponte para uma descrição básica dos delitos de genocídio, de crimes contra a humanidade e de crimes de guerra, a tipificação desses delitos, com todos os seus elementos e circunstâncias, foi elaborada pela Comissão Preparatória designada pela Assembléia das Nações Unidas, e consta de um anexo ao Estatuto denominado Elementos dos Crimes. O crime de agressão, segundo previsão do artigo 5º (2), será submetido à competência da Corte apenas após a aprovação de emenda ao Estatuto, na forma prevista nos seus artigos 121 e 123. A grande resistência de alguns Estados, especialmente daqueles com poder de veto no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, na tipificação do crime de agressão, persiste, já que tiraria desse órgão o poder de determinar com exclusividade a existência de situação de agressão, como hoje ocorre.

Como elementos básicos, apresenta o Estatuto, no seu artigo 6º, que o crime de genocídio é qualquer ato praticado com intenção de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. As condutas básicas apresentadas no texto do Estatuto referem-se à matança de membros do grupo, lesões graves à integridade física, submetimento do grupo a condições de existência que possam acarretar sua destruição física, total ou parcial, assim como as medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo ou o translado forçado de crianças de um grupo para outro grupo.

Em seu artigo 7º, define os crimes contra a humanidade como aqueles cometidos como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil. Dentre as diversas condutas arroladas numa série de alíneas, destacam-se as condutas de homicídio, escravidão, deportação forçada da população, tortura, violações sexuais, desaparecimentos forçados e o apartheid .

Os crimes de guerra, apresentados no artigo 8º, são aqueles cometidos como parte de um plano ou política de cometimento de tais atos em grande escala, e que estejam previstos nas Convenções de Genebra de 1949, em situações de conflitos armados internacionais ou em situações de conflitos armados internos, exceto aqueles decorrentes de motins, atos isolados ou esporádicos de violência ou tensões internas. Entre outros, os homicídios, a tortura, a privação de julgamento justo, a tomada de reféns, os ataques intencionais contra a população civil que não participa das hostilidades, o ataque a pessoal e material de órgãos humanitários ou hospitais, as violações sexuais, o uso de armas de guerra que tragam sofrimento desnecessário.

O Tribunal exercerá sua competência em relação aos crimes cometidos após a entrada em vigor do Estatuto, tornada efetiva após a ratificação, ocorrida no mês de abril do ano passado, de mais de sessenta Estados. Para os Estados que aderirem posteriormente, a competência só poderá ser exercida sobre os fatos cometidos após a entrada em vigor para esse Estado (art. 11).

Os Estados, ao ratificar o Estatuto, estarão aceitando sua competência obrigatória, e somente sobre estes o Tribunal poderá exercer sua jurisdição. Em outras palavras, a Corte tem jurisdição sobre os Estados-Partes no Estatuto, e desde que os crimes tenham sido cometidos nesse Estado, a bordo de nave ou aeronave desse Estado, ou por um seu nacional (art. 12).

A iniciativa da investigação fica a cargo do Procurador, de ofício ou por provocação do Estado-Parte ou do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (art. 13). Em razão dessa regra e como garantia da própria independência do Tribunal, uma série de normas asseguram a independência do Procurador, que tem poderes investigativos amplos (art. 15). O caráter do procedimento penal no Tribunal Penal Internacional é essencialmente acusatório, embora, como veremos adiante, possuam os magistrados alguns poderes para requisitar complementação probatória.

O Tribunal Penal Internacional rege-se pelo princípio da complementaridade. Não antecede os sistemas judiciais internos. Ao contrário, para exercer suas competências exige o preenchimento de uma série de requisitos atinentes à admissibilidade, centrados especialmente na questão referente à primazia das jurisdições internas. Vem também prevista a possibilidade de julgamento pelo Tribunal Penal Internacional sempre que um Estado não esteja disposto a levar a cabo a investigação dos fatos, ou não possa fazê-lo. Prevê ainda a hipótese de que esteja em curso procedimento interno, mas conduzido de forma a demonstrar que tal procedimento seja incompatível com uma real intenção de apurar responsabilidades. Veja-se a amplitude da previsão, consistente com a prática de procedimentos viciados que levam muitas vezes à impunidade, pela prescrição das ações ou por sentenças absolutórias proclamadas com vistas a subtrair os acusados da jurisdição internacional (art. 17). No juízo de admissibilidade, os Estados têm amplo acesso à Corte para comprovar o pleno exercício da sua própria jurisdição.

Finalizando este tópico, vale a referência à previsão expressa do respeito à coisa julgada (art. 20).

4. Os princípios gerais de Direito Penal

O Estatuto do Tribunal Penal Internacional traz expresso o princípio da legalidade em seu artigo 22. Não se admite a analogia, nem a interpretação extensiva. Também é expresso o princípio da legalidade das penas (art. 23), embora o sistema de penas nele previsto seja diverso daquele por nós reconhecido. Em verdade, todas as discussões havidas no âmbito do Comitê Preparatório, antes da aprovação do Estatuto, centraram-se em torno da adoção de um modelo de Tribunal que não refletisse, com preferência, nenhum dos sistemas judiciais predominantes – do common law ou do civil law. Também não se perseguiu um sistema híbrido, apenas conjugativo de ambos, mas sim um sistema novo, especial em relação aos modelos conhecidos. Nem sempre a proposta foi realizada, já que diversos institutos do Estatuto refletem ora um ora outro sistema, e muitas vezes colidem exatamente em razão desse hibridismo.

Assim é na realização do princípio da estrita legalidade das penas, cuja previsão é tão-somente em relação à qualidade destas (reclusão por até trinta anos ou prisão perpétua, além de multa e confisco do produto do crime – art. 77), sendo que deixa à livre discricionariedade dos juízes a quantidade da pena aplicável para cada delito.

Também prevê o Estatuto a irretroatividade de suas normas, exceto as que vierem a beneficiar o acusado (art. 24). A responsabilidade penal é individual, previstas as figuras de autor ou partícipe (art. 25). De se destacar as previsões dos artigos 27 e 28, que afastam as chamadas imunidades dos Chefes de Estado ou de qualquer autoridade que exerça cargos oficiais, ainda que tais imunidades sejam em regra reconhecidas em outras normas de direito internacional para outros fins. Em relação aos chefes militares, aponta-se inclusive para a possibilidade de atribuir-se-lhes a prática de crimes pela omissão em exercer sobre as tropas sob seu comando a vigilância necessária, ou por não adotar as medidas necessárias para evitar que os crimes fossem cometidos. Em regra, os crimes são punidos apenas a título de dolo (art. 30).

São inimputáveis os menores de dezoito anos (art. 26). São consideradas circunstâncias eximentes a doença mental ou desenvolvimento mental retardado, a legítima defesa e a coação diante de ameaça de morte ou lesões graves. Outras eximentes podem ser reconhecidas pela Corte (art. 31). Também a estrita obediência a ordens superiores, em circunstâncias que o Estatuto descreve, podem ser tidas por eximentes (art. 33).

O Estatuto traz previsões sobre o erro de fato ou de direito, no sentido de que não constituem eximentes de responsabilidade, exceto se tais erros demonstrarem a inexistência do dolo (art. 32).

5. Composição e administração da Corte

O Tribunal Penal Internacional compõe-se de Seções de Instrução, Seções de Julgamento em Primeira Instância e Seção de Recursos. (11)  Além desses órgãos, integram-no a Procuradoria e a Secretaria.

O corpo judicial é composto de dezoito juízes. Escolhidos pela Assembléia dos Estados-Partes, devem ter, além de reconhecido valor moral e competência para ocupar os mais altos cargos do Poder Judiciário em seus Estados de origem, formação em direito penal e processual penal ou em direito internacional humanitário, além de outros requisitos elencados no artigo 36. O Estatuto exige, ainda, que a composição da Corte assegure o equilíbrio da representação de gênero, de representação dos principais sistemas jurídicos e de distribuição geográfica eqüitativa. Os mandatos são de nove anos.

Estão previstas hipóteses de dispensa de magistrados, ou de sua recusa, tudo a assegurar a imparcialidade dos julgamentos (arts. 40 e 41).

O Procurador, também escolhido pela Assembléia dos Estados-Partes, atuará de forma independente, inclusive para a administração da Procuradoria, onde poderá contar com Procuradores Adjuntos. Além dos requisitos da idoneidade moral e reconhecida competência, devem demonstrar experiência na prática do exercício de ações penais (art. 43), dentre outros requisitos. Suas relevantes funções vêm elencadas nas diversas alíneas do citado dispositivo.

O Secretário do Tribunal Penal Internacional exerce relevantes funções, na medida em que é responsável por toda a estrutura administrativa do Tribunal.

Uma série de medidas disciplinares, e mesmo de demissão do cargo, vêm previstas nos artigos 46 e 47 do Estatuto. Estão ainda expressos os privilégios e imunidades dos membros do Tribunal (arts. 48 e 49), bem como o poder de os magistrados elaborarem o Regulamento da Corte, ou mesmo emendarem as regras de Procedimento e Prova (arts. 51 e 52).

Cabe aqui ressaltar o poder discricionário que se dá aos juízes do Tribunal Penal Internacional, à semelhança das experiências que vêm sendo apreendidas dos Tribunais de Ruanda e da extinta Iugoslávia. Tem-se entendido que a discricionariedade dos magistrados é condição para o próprio êxito das ações propostas perante estas Cortes, já que por vezes as regras de procedimento, se demasiadamente rígidas, poderiam torná-los inviáveis. Assim, embora passíveis de críticas pelo risco possível ao princípio da estrita legalidade do procedimento, tem sido reconhecido, às Cortes de Ruanda e da extinta Iugoslávia, um poder de reforma das regras de procedimento bastante freqüente.

Exatamente em razão das experiências dos Tribunais ad hoc que estão instalados, algumas das regras previstas para o Tribunal Penal Internacional deixam bastante aberto o espaço para a criação jurisprudencial, traço, aliás, marcante nos sistemas jurídicos assentados no common law .

6. Investigação e ajuizamento das ações

O Procurador, ao receber uma noticia criminis , e a entendendo procedente, poderá determinar o início das investigações. Dispõe ele de poder discricionário para decidir sobre a oportunidade de iniciar a investigação, caso entenda, a exemplo, que o ajuizamento da demanda não redundaria em benefício para a justiça ou para as vítimas. Entendendo não haver condições para intentar a ação, comunicará à Seção de Instrução. Em alguns casos que define, a Seção poderá rejeitar a proposta de arquivamento feita pelo Procurador (arts. 53 e 54). Se a proposta de instauração de procedimento provier do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, a atividade do Procurador é vinculada.

Durante a fase de investigação, o acusado goza de direitos e garantias expressos no artigo 55, destacando-se o direito de não auto-inculpar-se, o direito de ficar calado e o de ser assistido por defensor.

A Seção de Instrução acompanha toda a fase de investigação dos crimes e de colheita de provas (art. 57). Compete-lhe tomar as medidas necessárias a tal fim, inclusive expedir ordens de detenção provisória do acusado (art. 58). Também o juízo de admissibilidade da ação é procedido nessa instância. Entendendo procedentes as acusações contra o acusado, é a Seção de Instrução que celebrará a audiência de confirmação das acusações, exercendo um juízo que, em nosso sistema, equivaleria ao de pronúncia (arts. 60 e 61).

Confirmada a acusação, inicia-se o processo propriamente dito, que tem lugar nas Seções de Julgamento de Primeira Instância, nos termos do disposto nos artigos 64 e seguintes do Estatuto. O acusado poderá declarar-se culpado e, se sua declaração vem amparada em provas, e a Seção não entender necessárias novas provas ou diligências, poderá desde já proferir a sentença. Caso contrário, nela iniciar-se-á o processo (art. 65). Não há regras rígidas de procedimento, vigendo aqui o princípio da mais ampla discricionariedade dos juízes. Alguns atos obrigatórios de procedimento estão previstos no segundo anexo do Estatuto, denominado Regras de Procedimento.

O Estatuto reconhece o princípio da presunção de inocência (art. 66) e assegura uma série de direitos ao acusado (art. 67), constantes de um rol em muito assemelhado ao rol de garantias judiciais presentes nas Convenções de Direitos Humanos, inclusive na Americana. Pode-se afirmar, assim, que o Estatuto do Tribunal Penal Internacional acolhe o modelo garantista de processo penal, embora, como dito anteriormente, muitas vezes as garantias sejam amainadas quando em confronto com as garantias de proteção às vítimas e testemunhas, também asseguradas no Estatuto (art. 68). O regime probatório é amplo, e mesmo a Seção de Julgamento de Primeira Instância, apesar do modelo eminentemente acusatório da Corte, pode requisitar novas provas, se entendê-las necessárias.

No capítulo das provas, vale ressaltar que não se admitem as provas obtidas por meios ilícitos. Mas tal disposição estatutária vem também amainada, já que a prova ilícita só pode ser rejeitada se ficar comprovado ter sido obtida por meio que ponha em dúvida a credibilidade da prova, ou que sua admissão atente contra a integridade do processo ou venha em demérito do próprio juízo (art. 69,7).

As decisões da Seção de Julgamento de Primeira Instância obedecem ao sistema duplo de reconhecimento de culpabilidade e posterior aplicação das penas. As sentenças serão exaradas por maioria, sendo que os votos divergentes devem ser declarados (art. 74). A decisão deverá, ainda, indicar a extensão dos danos que devem ser reparados às vítimas e a forma de sua reparação (art. 75). A pena deverá ser imposta em audiência pública (art. 76), para a qual poderá ser requerida ao Estado-Parte a entrega do acusado na forma do artigo 90.

7. Das penas aplicáveis

Parte sensível nas discussões que se vêm travando junto aos meios oficiais e acadêmicos diz respeito exatamente ao capítulo das penas aplicáveis em caso de condenação proferida pelo Tribunal Penal Internacional.

O artigo 77 do Estatuto prevê que a Corte poderá impor aos condenados pena de reclusão, por um determinado período que não pode exceder trinta anos, ou pena de prisão perpétua, quando assim o justificarem a extrema gravidade do crime e as circunstâncias pessoais do condenado. Prevê, ainda, a aplicação cumulativa e facultativa de pena de multa, e de perda dos bens adquiridos com o produto do crime.

Em completa obra que relata todos os caminhos percorridos desde o primeiro esboço do Estatuto, elaborado pela Comissão de Direito Internacional, passando pela Comissão Ad Hoc , pelo Comitê Preparatório e pela Conferência de Plenipotenciários de Roma, Rolf Einar Feife, autor do capítulo referente às penas aplicadas pelo Tribunal Penal Internacional, (12) registra as discussões que num primeiro momento centravam-se sobre a previsão ou não da pena capital no Estatuto. O primeiro projeto não previa a pena de morte, mas a pena de prisão perpétua. No Comitê Preparatório, que antecedeu a Conferência de Roma, as discussões foram acirradas, já que diversas delegações insistiam na inclusão da pena de morte, ao argumento de que sem a possibilidade de haver essa pena o objetivo intimidatório da Corte seria diminuído, bem como sua credibilidade reduzida. Outros, contrários à pena de morte, acenavam com a incompatibilidade entre tal pena e disposições expressas em Convenções de Direitos Humanos por seus Estados ratificadas, o que tornaria incompatível a ratificação do Estatuto. Em verdade, verificou-se que a preocupação maior das delegações que insistiam na previsão de pena de morte era no sentido de que sua exclusão pudesse ser entendida como uma norma “programática”, por assim dizer, de abolição dessa forma de punição dos sistemas internos nos países que viessem a ratificar o Estatuto.

Tanto é verdadeira essa ilação que na Conferência de Roma chegou-se a um acordo, no sentido de que o Estatuto não preveria a pena de morte, mas teria expressa uma cláusula de “não censurabilidade” do sistema de penas existente nos Estados. (13) Nesse sentido, o artigo 80 do Estatuto estabelece que: “Nada nessa Parte afeta a aplicação pelos Estados das penas prescritas por sua lei nacional, nem a lei dos Estados que não preveja penas prescritas nessa parte”.

Já a discussão sobre a pena de prisão perpétua não alcançou avanços significativos, exceto na expressa previsão de sua revisão, após vinte e cinco anos, prevista no artigo 110. Aliás, relata o mesmo autor, a permanência de norma que autorizasse a pena de prisão perpétua era vista como um “gesto de boa vontade”, no sentido de mostrar-se flexibilidade na argumentação pela exclusão da pena de morte. Os maiores oponentes à previsão da pena de prisão perpétua foram justamente os países ibero-americanos. Afinal, como resultado de várias negociações, manteve-se a pena de prisão perpétua, rejeitando-se a pena capital.

8. Da apelação e da revisão

O Estatuto prevê que a acusação e a defesa poderão apelar da sentença. O Procurador poderá recorrer ao fundamento de vício de procedimento, erro de fato ou erro de direito. A defesa, ou o Procurador em seu nome, poderá apelar invocando vício do procedimento, erro de fato, erro de direito ou qualquer outro motivo que afete a justiça ou a regularidade da decisão ou do processo. Também poderão apelar para sustentar a desproporção entre o delito e a quantidade de pena aplicada (art. 81). Estão previstos apelos contra decisões que chamaríamos interlocutórias, como, a exemplo, as referentes à competência e à prisão provisória (art. 82).

Há hipóteses de legitimação extraordinária para recorrer, como a do Estado, na hipótese de o Procurador ser autorizado a investigar em território desse Estado, e a das vítimas, por seu representante, da decisão que fixa a reparação (art. 82, 2 e 4) . As apelações são julgadas pela Seção de Recursos, que poderá reformar a decisão recorrida, ou determinar que nova decisão seja proferida pela Seção de Julgamento de Primeira Instância (art. 83).

O Estatuto prevê, ainda, um processo de revisão da sentença, que poderá ser requerida pelo próprio condenado ou por seus familiares, ou pelo Procurador em seu nome. Os requisitos para a revisão são os de que haja novas provas, que não estivessem disponíveis ao tempo do julgamento e que tenham valor probante a ponto de que, se conhecidas, teriam levado a outro veredito. Também tornam possível a revisão o reconhecimento de que uma prova em que se tenha baseado a condenação fosse falsa, ou de que um ou vários juízes tenham incorrido em descumprimento de suas funções durante o julgamento (art. 84).

Essa parte do Estatuto encerra-se com a expressa previsão de indenização por erro judiciário (art. 85).

9. Da cooperação internacional

Ainda que de maior interesse sejam as regras de procedimento e as atinentes à tipificação dos delitos, num trabalho que apenas se propõe a apresentar aos estudiosos brasileiros um esboço do Tribunal Penal Internacional não poderíamos deixar de nos referir a alguns dos institutos previstos em seu instrumento de criação. Em verdade, a compreensão sobre o sistema internacional de proteção aos direitos fundamentais passa, necessariamente, pela compreensão de determinados princípios e institutos de direito internacional. Um deles é o princípio, ou norma cogente, do pacta sunt servanda. Nada mais traduz que não o dever de os Estados cumprirem as obrigações assumidas quando ratificam um tratado internacional.

Portanto, a menos que, como nas palavras de Pedro Dallari, o Estado deseje cometer um estelionato internacional, (14) está ele obrigado a agir de acordo com o pactuado com outros Estados. No caso do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, um dos deveres que se impõem aos Estados-Partes é o da cooperação (art. 86). Por tal obrigação, os Estados se comprometem a cooperar na investigação dos fatos e no ajuizamento dos crimes de competência do Tribunal. Assim, a exemplo, podem os Estados ser chamados a cooperar para cumprimento de ordem de detenção e entrega de pessoas à Corte (art. 89), facilitar o trânsito de pessoa detida por ordem da Corte ou a entrega de documentos. Uma série de formas de cooperação vem elencada no artigo 93.

10. Da execução das penas

A Parte X do Estatuto, em seus artigos 103 e seguintes, prevê as formas de execução das penas aplicadas pelo Tribunal. Principia por consignar estar a critério da Corte a designação do Estado onde o condenado irá cumprir pena, dentre aqueles que tiverem manifestado disposição em receber condenados. Serão levados em conta, no entanto, as garantias que puderem ser oferecidas de aplicação de normas internacionais sobre tratamento de presos, a opinião do acusado, sua nacionalidade e outros fatores. A Corte poderá, a qualquer tempo, determinar a remoção do preso de um para outro Estado, de ofício ou a seu pedido.

Estão assegurados aos presos todos os direitos assegurados aos demais condenados, acrescidos do direito à comunicação irrestrita com o Tribunal (art. 106, 3). Da mesma forma, não poderá o condenado ser processado e julgado, ou extraditado a terceiro Estado, enquanto estiver à disposição da Corte, nem poderá ter reduzida ou alterada a pena que lhe foi imposta (art. 110).

Ao cumprir dois terços da pena imposta, ou vinte e cinco anos, se a pena imposta for a de prisão perpétua, a Corte procederá de ofício à revisão da reprimenda, a fim de verificar se pode ser reduzida (art. 110, 3). No caso de não ser deferida a redução, a Corte se obriga a proceder periodicamente a novas revisões (art. 110, 5).

11. Considerações finais

Pretendemos deixar claro, no início deste trabalho, que apenas seriam apresentadas as regras básicas de organização, competência e funcionamento do Tribunal Penal Internacional.

Em verdade, como dito anteriormente, as normas que regem o Tribunal Penal Internacional traduzem um modelo próprio, bem diverso do nosso modelo processual, com previsões cuja aceitação exige de nós um despir de preconceitos. Estão sujeitos à competência da Corte crimes que envolvem centenas, por vezes milhares de vítimas. O perfil do Tribunal não é apenas o de uma Corte punitiva. Tem por objetivo, além da punição dos violadores de direitos fundamentais, a reparação das vítimas, que assumem no processo papel por nós jamais reconhecido e regulamentado.

Não bastasse a dificuldade em assimilar-se um modelo novo de processo penal, estamos diante de um conjunto de regras que, num primeiro exame, poderiam conter especificidades que contrariassem normas de garantia da nossa lei maior, como a proibição da prisão perpétua e de extradição de nacionais. Ainda de tipos penais que não prevêem pena delimitada.

Em nosso meio, grande é o debate sobre a compatibilidade da pena de prisão perpétua com a disposição constitucional inscrita no artigo 5º, inciso XLVII, , que a proíbe. Se tal previsão constitucional aplica-se ou não aos delitos internacionais, ou às decisões proferidas por Cortes internacionais, é matéria a exigir o mais sensato exame. Afinal, é também princípio inscrito no texto constitucional o de que o país se rege, no plano internacional, pela prevalência dos direitos humanos. Logo, a hipótese de que a vedação constitucional dirige-se apenas ao legislador interno, não impedindo assim a submissão do país e de seus nacionais às previsões de uma Corte supranacional, não é de ser afastada de plano.

Ademais, nossa Constituição contém previsão de pena de morte para os autores de crimes militares praticados em tempo de guerra. Os crimes previstos em nosso Código Penal Militar descrevem condutas que, embora assemelhadas às dos crimes de guerra, nem de longe alcançam a gravidade e o dano dos crimes de guerra descritos no Estatuto. A interpretação sistemática do texto constitucional pode levar o intérprete a vislumbrar, na exceção constitucional, a autorização para a punição dos crimes estatutários de forma até menos gravosa, como é a pena de prisão perpétua.

Quanto à alegada ausência de individualização das penas, já que a todos os delitos pode ser aplicada pena de até trinta anos de reclusão, não se pode vislumbrar vício de inconstitucionalidade. Nossa Carta Maior não define as formas de individualização, sendo que nossa doutrina consagrou a forma trifásica: a legislativa, a judicial e a de execução. Ora, a criação doutrinária, a qual aliás entendemos a mais adequada ao princípio da justa retribuição, não impede que outras formas de individualização das penas sejam reconhecidas. No sistema do common law , a exemplo, entende-se que a individualização deve ser realizada exclusivamente na fase judicial, cabendo ao Juiz, no exame de cada caso concreto, das condições do agente e das circunstâncias do crime, definir a pena justa. Esse o modelo escolhido pelo Estatuto, que, portanto, não fere o princípio da individualização das penas, mas opta por outro critério, consagrado na legislação de países avançados e de perfil igualmente democrático.

Quanto à suposta vedação constitucional que estaria a contaminar o instituto de entrega de pessoas à Corte a discussão centra-se em haver ou não identidade entre o instituto da entrega de pessoas à Corte e o de extradição de pessoas a outros Estados. Há disposição constitucional expressa no sentido de que não podem os brasileiros ser extraditados, nos termos do artigo 5º, inciso LI, Constituição Federal. Portanto, é no exame sereno dos dois institutos que se encontrará resposta. Pelos termos expressos do Estatuto, extradição e entrega não se confundem, tanto que, havendo concorrência entre ambos, a segunda prefere à primeira (art. 90, 2). Também o artigo 102 do Estatuto, talvez por prever dificuldades na interpretação dos institutos, cuida de explicitar o que se deve entender por “entrega” e por “extradição”. A extradição, como sabido, é ato resultante do exercício da soberania, por tratados firmados entre Estados, sendo aí reconhecido o que se convencionou denominar “relações horizontais” entre tais Estados soberanos. A entrega de pessoas, tal como prevista no Estatuto, estabelece “relações verticais” entre a Corte e os Estados, sendo que estes, ao ratificarem o Estatuto, concordam voluntariamente em submeter-se às suas regras e a atuar sob o regime da cooperação. A Corte não é outro Estado, mas uma instituição supranacional, e exerce sua jurisdição por deliberação dos Estados. A nosso ver, portanto, não é possível a confusão entre os dois institutos.

De outro lado, cresce a pressão da comunidade internacional para a adesão de todos os Estados ao Estatuto, a começar daqueles que adotam o modelo de Estados democráticos, a fim de que a Corte possa ser instalada e a punição aos crimes que ofendem toda a comunidade internacional tenha seu foro próprio. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional não admite a oposição de reservas (art. 120), o que significa que a ratificação é incondicional. Portanto, essa é a tarefa que se nos coloca à frente: a aceitação de um Tribunal Penal Internacional de caráter permanente, com jurisdição complementar, resultado da evolução histórica da luta pela internacionalização dos direitos e garantias fundamentais a que vem se dedicando a humanidade há mais de um século.

O fato é que o Brasil insere-se na comunidade internacional, e tem por princípio, inscrito no artigo 4º, II, da Constituição Federal, reger-se nas suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos. A Constituição Federal, no artigo 7º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, afirma que o país propugnará pela formação de um Tribunal Internacional de Direitos Humanos. Esse Tribunal é o Tribunal Penal Internacional, criado pela Conferência de Roma.

É, à toda evidência, um modelo novo de justiça penal, que não despreza as conquistas da dogmática do direito penal moderno, mas agrega características de um modelo construído a partir das experiências judiciais criadas para o julgamento e a punição dos autores de violações massivas de direitos humanos por que passou a humanidade no século XX. Por outro lado, é um modelo que traz maiores garantias em relação aos Tribunais ad hoc , a que todos os Estados estão sujeitos por força das competências do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas e que, aliás, tem primazia sobre as jurisdições internas dos Estados.

Se temos consciência de que o modelo atual de justiça penal internacional não é o adequado para dar as respostas buscadas por um sistema penal efetivamente independente e imparcial, resta-nos examinar, com o espírito desarmado, as normas trazidas pelo Estatuto do Tribunal Penal Internacional, cujo modelo nos parece compatível com a justiça penal internacional a que almejamos.

(1) – Gregorio Peces Barba Martinez, Derechos y derechos fundamentales, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1993, pp. 326/327.

(2) – Fernando Barcellos de Almeida, Teoria geral dos direitos humanos, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editores, 1996, p. 47.

(3) – Christophe Swinarski, Direito internacional humanitário, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1990, p. 28.

(4) – Fabio Konder Comparato, A afirmação histórica dos direitos humanos, São Paulo, Saraiva, 2001, pp. 54/55.

(5) – Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, São Paulo, Malheiros, 1998, p. 523.

(6) – Norberto Bobbio, A era dos direitos, Rio de Janeiro, Campus, 1992, p. 5.

(7) – Carlos Weiss, Direitos humanos contemporâneos, São Paulo, Malheiros, 1999, p. 129.

(8) – Antonio A. Cançado Trindade, ” The contribution of international human rights law to environmental protection, with special reference to global environmental change”, in Environmental change and international law, Tokio, Edith Brown Weiss ed., United Nations University Press, p. 245.

(9) – Idem, p. 250.

(10) – Francisco Ortega Vicuña, “Changing perspectives of international law in areas of global concern: the oceans, Antarctica and the Environment”, in O direito internacional no terceiro milênio, coord. Luiz Olavo Baptista e José Roberto Franco da Fonseca, São Paulo, LTr, 1998, pp. 903/904.

(11) – Na versão oficial em inglês, Pre Trial Chamber, Trial Chamber Appeal Chamber . Na tradução espanhola, Sala de Cuestiones Preliminares, Sala de Primera Instancia Sala de Apelaciones . Aqui transcreve-se a tradução oficial do Estatuto, que acompanhou a Mensagem Presidencial enviada ao Congresso com pedido de autorização para ratificação.

(12) – The International Criminal Court – The Making of the Rome Statute, org. Roy S. Lee, Kluwer Law International, 1999, pp. 319/344.

(13) – ” Non prejudice provision “.

(14) – “Normas internacionais de direitos humanos e a jurisdição interna”, in Revista Especial do Tribunal Regional Federal da 3ª Região , 1997, pp. 25/38.